Akalesela
fortalecia a sua alma com dois passatempos:
tocar alaúde e compor poesia de laivos
medievais. Acariciou o instrumento e viajou
- mas precisa de viajar mesmo? - para a Idade Média. Ela
gostava imenso de o ouvir. Às vezes
ficava pior que
o gato nas carícias.
Podia-se até dizer que pareciam um casal de gatos.
Ele cantou-lhe:
Saltitante a minha princesa
no tumulto da multidão
Agitado, perseguia-me
o seu sem coração
Perguntei à multidão
Viram-na, ela, o meu amor?
responderam-me:
Ficaste sem coração, um príncipe
levou-a
para o seu reino sem oração
do enquanto eterno amor
petrolífero
O
telemóvel toca, ela atende-o.
- Sim, faz favor.
- Preciso de um feitiço para praticar o sessenta-e-nove.
- Quem é que fala?
Mas já
do outro lado não havia ninguém.
Akalesela aborrecido, frustra-se:
- No nosso e-mail
passa-se a mesma coisa.
- Podes
estar tranquilo que
vou fazer a um
deles sabes o quê?
- Não.
- Muitos
seiscentos e sessenta-e-noves.
Ele continua-lhe a alaudar:
O príncipe saiu do seu
castelo
do seu reino à caça
duma princesa
da sua
amargura
Milhões
de esfomeados
perseguiram-no
à fartura
Entretanto
a sua princesa
não o
aguardava ansiosa
deliciava-se
com outro
na sua
cópia de segurança
Contrariava-se
quando
fujia, fingia o encontro
com o seu cavaleiro
depois de muitos anos (?)
Resistindo às peripécias
do amor petrolífero
do seu cavaleiro diamante
que tinha muitas damas
Finalmente não compreendeu
que a princesa do amor tinha
um novo-rico
Ela trouxe duas cervejas. Sacou-lhes as tampas e poisou-as. Depois
abraçou-o ternamente e beijou-o várias vezes nos lábios. Estava a excitar-se, a exercitar-se. Ele liberta-se, ouve barulho e diz-lhe que estão a bater
à porta. Ela foi escancará-la. É Injandanda
que fala num tom muito sério.
- Uma senhora quer falar com Akalesela.
- Diz para esperar.
Rapidamente arrumam
o local. Ela
enfia um mini vestido
pela cabeça.
Ajeita o cabelo enquanto
se mira no espelho
colocado logo a seguir
à porta de entrada.
Ordena para Injandanda:
- Manda entrar.
Entra uma senhora com cerca de quarenta anos, baixa e bem
nutrida. Kakulu-Ka-Humbi, antes espreitou
pela cortina
da janela e viu um
soberbo jipe,
desses da moda. Identifica o perfume dela: sem
dúvida alguma, é Coco Chanel número cinco de
1922. Veste uma blusa
transparente azul-escuro onde sobressai um sutiã branco
que se esforça por suportar os seios opulentos.
Uma saia de linho
leve revela-lhe as coxas
protegidas por um
saiote. Como
manda a praxe
um par
de sapatos de salto
alto combinam com
a blusa. Akalesela faz as honras da casa:
- Queira desfrutar o que temos
para lhe agradar.
- Que bom, muito
agradecida.
Akalesela convida-a
com galantaria:
- Acomode-se por favor.
Ela optou pelo
aconchego de uma extremidade do sofá, enquanto ele ocupou a outra.
Kakulu-Ka-Humbi sentou-se na cadeira do computador a aguardar pelo rol dos acontecimentos. A visita parece pretender iniciar o diálogo sem
cerimónia:
- Senhor… Aka…
- Akalesela.
- Esse nome é
Sul-africano?
- Não, é mwangole…
angolano.
Ela aperta as pernas
e encolhe o corpo com
receio do gato que entretanto optou pela vigilância
ostensiva. Ela olha-o e sente receio por causa dos seus olhos: Ele tranquiliza-a:
- É um korat tailandês. É suave
e manso, de olhos verdes
grandes e luminosos.
Na Tailândia dizem que trás sorte. Aqui a sua função principal é afugentar os ratos.
- É, costumam
garantir-me que os ratos têm muito feitiço.
- Creio que querem é obrigar-nos a que
os “ratos” façam parte das nossas famílias.
Akalesela olhou-a um tanto ou quanto atrevidamente.
Ela sentiu porque
se remexeu. Ele sacanamente torna-se incisivo:
- Admiraveis dotes
físicos... faltam os atributos da sua linhagem.
Ela entendeu e antes de se apresentar
olhou para o quadro e desvaneceu-se:
- Ai
meu Deus, essa pintura dá-me arrepios... chamo-me Sadina Ma Yuan Elizabeth
Dupont Abu Bakar
- Muito bem…
divorciou-se de um português, de um chinês, de um inglês, de um francês
e de um árabe.
- É complicado, nada
disso… parece-me que quer imitar o Sherlock
Holmes. Bom… mudei de nome. É a moda actual para abrir
as portas em
qualquer ministério.
Sabe, eles são
muito sensíveis
a estrangeirismos.
- Diria, seguidores do surrealismo.
- Não, do atavismo.
- Então como prefere…
- Bom, deixe-me ver. Dada a
actual conjuntura pode tratar-me por Ma
Yuan.
Claro que Akalesela duvida.
Calcula que é mais uma amante de um novo-rico. E
envereda pela tentação do óbvio.
- Creio que tem boas ligações… boas experiências patrimoniais.
- Sim, não me posso
queixar. Aproveitei bem a nossa independência.
- Essa aspiração que todos desejam mas
só poucos
beneficiam. Tem ocupação profissional?
- Sou médica e oficial
da polícia. Mas,
por favor não me pergunte
como consegui isso.
- Com feitiço… deduzo.
- Claro, claro… com muito
feitiço.
Ela assustou-se. Apontou com
o dedo para o
tecto. Recolheu-o e colocou a palma da mão na boca. Ele socorre-a.
- Não receie. É uma vulgar
osga inofensiva que
come insectos. Apanha mosquitos,
ajuda-nos a evitar o paludismo.
A energia
eléctrica retornou. Kakulu-Ka-Humbi diz que
vai desligar o gerador.
Ma Yuan devaneia:
- Como se chama um governo que nos rapina
a água, a luz,
nos espolia as casas,
as terras e deposita tesouros na Ilha do Conde de Monte Cristo?
- Um governo para o povo das cavernas.
Ela examina os tempos novos:
- Nos tempos de hoje é inconcebível. Mas ainda
existem dessas coisas. Acho que é um governo de militantes militarizados. Não acredito que
seja possível existir democracia, quando os mesmos
que fizeram a guerra conduzem o poder. Como não querem
passar à reserva, acham que são imprescindíveis para continuarem o ciclo cavernoso.
Kakulu-Ka-Humbi
apressou-se porque sentia a infernal curiosidade
feminina. Ligou o disjuntor
geral e abismou-se na conversa:
- África negra dos lamentos
eternos. Com
a liberdade renascida e sempre recusada, a retroceder
nos milénios perdidos.
Ma Yuan acrescenta:
- África negra do oiro, dos diamantes
e do petróleo. Dos rios
e das terras vastas e férteis onde se
morre de fome e de sede.
Akalesela replica
ultra convencido:
- A melhor
maneira para
aguentar esta coisa é imaginar
que estamos na selva.
- De facto assim
é. – Confirmou Ma Yuan.
Imagem: unblivre.blogspot.com
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