Aqui no Sertanejo
dizem: o homem mais admirado do mundo é africano. E o escravo mais admirado do
mundo é angolano.
Sabemos,
pesquisamos tudo, mas continuamos sem saber nada de nós. Olhamos para as folhas
de uma planta, poucas restam de verdes, estão a secar, como nós, que nunca
saberemos quem somos.
A morte chega e
sobra para todos.
Há uma coisa que
aqui não entendo. Se uma pessoa para sobreviver está difícil, como é que os
estrangeiros conseguem, tão fácil?
Quem escreve
utilizando aspas amiúde, esses textos estão carregados de lixo, distrai a
atenção do leitor, e os textos perdem todo o interesse. Isso não é escrever, é
entristecer. Aqui neste Sertanejo tem muito disso. São escrevinhadores de
aspas, atropeladores, abalroadores das palavras, militantes do tempo dos
punhais espetados nos olhares emparedados.
E Lady Marli e o
Cavaleiro Mwangolé foram detidos por integrantes de uma milícia armada,
havia-as por todo o canto, porque a revolução tinha que continuar, e qualquer
para arrastar, ensacar. Abordaram o casal de modo muito sumário, muito
sinistro, como um pelotão de fuzilamento. «É pá, venham cá! Estão presos para
identificação e interrogatório por tempo indeterminado.»
Era muito natural
que Marli e o Cavaleiro levantassem suspeitas porque trajavam de modo muito
estranho, como extraterrestres que saíssem de um disco voador, ou mascarados
para a edição do Carnaval da Vitória – um acontecimento anual que se festejava
sem se saber bem o quê, qualquer coisa como a derrota do inimigo imperialista
que ainda não tinha terminado, e por isso mesmo a luta continuava, uma
revolução permanente, consequente, pois que há revoluções que são eternas,
passam de pais para filhos – Marli apresentava indumentária à Robin dos Bosques
com o célebre chapéu encimado por uma pena e, claro, com o arco e flechas. O
Cavaleiro com um traje muito parecido com um cavaleiro da Idade Média com uma
espada na bainha.
E lá chegaram na
esquadra popular – era tudo ainda popular porque as estruturas governativas
assim funcionavam como um partido político único por longos, longos, muitos e
longos anos – foram recebidos pelo chefe que logo lhes sentenciou:
- Aqui neste
Sertanejo não adianta ameaçar pelo vosso advogado, porque a lei sou eu, somos
nós. E não tentem armarem-se em espertos porque os nossos torturadores são
impecáveis… hã, desculpem, muito impiedosos, sim é isso… muito impiedosos. Como
podem ver ainda sabemos falar a vossa língua. Bom, sentem-se aí no que resta
dessas duas cadeiras, as que tínhamos aqui em condições, alguém as roubou para a
sua casa, coisa aliás muito vulgar, pois por aqui a única coisa que ainda
funciona a cem por cento é o roubo. Assim como: a arte de espoliar é a virtude
de bem governar.
E o casal sentou-se
em duas cadeiras com muito cuidado porque a qualquer momento poderiam
desintegrar-se. Pareciam recuperadas de alguma violenta calamidade, ou das
investidas que os fiscais faziam contra as mulheres que vendiam e trocavam
dólares – as kinguilas – as mulheres bazavam e os fiscais pegavam nas cadeiras
e espatifavam-nas contra o chão. Ficavam assim como que mutiladas de uma
guerra.
E o chefe da
esquadra lembrava perfeitamente o hinário sem lei, o paradigma marxista-leninista
sempre vigente:
- São jornalistas disfarçados
de espiões, disso não tenho a menor dúvida!
Ouvia-se o barulho
de crianças presas. Ao fundo um cartaz dominava o alto da parede com os dizeres
bem visíveis: EM SERTANEJO NÃO HÁ VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS.
A corrupção não é uma flagrante violação dos direitos
humanos? Pensou o Cavaleiro.
Entretanto, o chefe
parou com o interrogatório para atender o telemóvel, decerto pata receber
ordens directas de algum general. O Cavaleiro Mwangolé serve-se do interregno e
diz para a sua companheira.
- Num Estado de
revolução permanente, o estado de emergência também está omnipresente, o que dá
direito a perseguir qualquer cidadão que não seja do agrado do Poder. Tudo serve
de pretexto para dar voz de prisão arbitrária. Na realidade é um Estado
terrorista conforme o moderno conceito de democracia. Desde que tenham petróleo
e o escoem para os guardiões da democracia, tem legalidade para ordenar o linchamento
sumário de quem quiserem, incluindo crianças. O mais caricato é quando de um
momento para o outro se auto-intitulam de Estado democrático. Então, sob esta
fachada, ataca tudo e todos sob o argumento de que é necessário defender a
democracia.
E Marli ajunta, enquanto
o chefe se ri de alguma piada, ou da indicação de alguma tortura especial que
experimentará no casal.
- Este é o Governo
onde até um governador provincial, para comprar um vulgar parafuso tem que
pedir ao governo central autorização para o fazer. Um país que parece viver
apenas do pensar só de uma cabeça.
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