domingo, 20 de abril de 2014

O PARAÍSO PERDIDO A OCIDENTE (06)





Voltámos lá mais uma vez. Entretanto, um dos meus amigos disse-me que encontraram algumas moedas, mas alguém, talvez um historiador ou arqueólogo que por ali apareceu açambarcou-as. Acho que essas grutas serviam para as fugas históricas dos cercos de Lisboa, ou para penetração de forças para o seu interior.
À noite, um dos meus amigos convidou-me para assistir a um filme que estava a dar na televisão. Era o Homem Invisível de Herbert George Wells. Mas tínhamos que ir a outro café que ficava a cerca de dois quilómetros, porque a mercearia próxima já não deixava entrar menores. Lá fomos e chegados ao café deparamo-nos com um empregado a fazer de segurança na porta para evitar que não entrássemos.
A televisão intencionalmente ficava por cima da porta de entrada, e quando o empregado servia algum cliente nós aproveitávamos e víamos o filme aos bocados, porque quando ele vinha enxotava-nos para a rua. Fazíamos o jogo do entra e sai. Para a minha idade o filme tinha muito suspense, deixava-me muito medo. Porque ver uma pessoa invisível a bater noutra, a tirar as ligaduras para ficar invisível, ou quando tirava os óculos e nasciam-lhe dois buracos nos olhos.
O pior era quando o filme acabava e de regresso a casa punha-me numa correia louca porque o homem invisível perseguia-me. Mas não desistia quando chegava o dia da sua emissão na televisão, e lá ia assistir mais uma vez. Novamente no regresso a casa o terror aumentava, as correrias também, porque não existia iluminação pelo caminho nem nas habitações. Nunca pensei que um filme me metesse tanto medo.
A minha mãe disse-me que no quartel dos militares - não me lembra o nome, creio que se chamava RAL1, Regimento de Artilharia Ligeira 1 - à noite davam sopa e que ia lá muita gente, na maioria mulheres. Deu-me uma panela. Quando lá cheguei já se encontravam algumas mulheres à porta, outras estavam num local próximo, escuro, guardado pelo arvoredo. Ouvi murmúrios de prazer, aproximei-me e vi que os militares estavam em cima delas. Os soldados aproveitavam-se da miséria e em troca da sopa, as mulheres prostituíam-se. Entretanto um soldado viu-me e correu comigo dali. Perguntou-me onde estava a minha mãe, mostrava nervosismo, aflito por pensar que ela estaria ali. Disse-lhe que não, que não estava, que vim sozinho. O soldado tratou de me despachar, encheu a minha panela, e disse-me que se eu quisesse mais sopa, teria que vir com a minha mãe.
A minha mãe gostou da sopa, eu, a minha irmã e os meus dois irmãos também. Ainda estava bem quentinha. Disse-lhe que para nos darem mais sopa ela teria que lá ir. E ela foi, mas quando se apercebeu do que os soldados queriam nunca mais lá apareceu. Confessou-me depois: «Que para conseguirem sopa as mulheres tinham que fazer poucas-vergonhas, e eu não sou mulher para fazer isso.»
Aos nove anos acabei a quarta classe da instrução primária. O Horácio, meu colega habitual das brincadeiras de caubóis, tinha cerca de dezoito anos, arranjou-me emprego na construção civil. Falou com o meu pai. Disse-lhe que como eu tinha acabado de fazer a quarta classe, também me poderia arranjar emprego e o meu pai concordou.
E lá fui na companhia do Horácio para o meu primeiro emprego. O local ficava muito distante, tinha o nome de Telheiras, onde edificavam muitas construções. Primeiro tínhamos que chegar ao quartel do Regimento de Artilharia, depois apanhar uma azinhaga e passar por inúmeros terrenos baldios. Quando chovia parecia um milagre chegar ao local de trabalho, porque os pés enterravam-se de tal modo na terra barrenta, que para os retirar constituía um pesado fardo.
No início custou-me a entender o porquê de uma criança com nove anos sujeitar-se a trabalho tão pesado, que consistia em carregar baldes de massa pelas escadas do prédio em construção, para que o pedreiro edificasse as paredes com os tijolos que eu também carregava. Mas logo notaram que eu não conseguia carregar um balde de massa. Perante o esforço descomunal que efectuava, e perante o olhar do encarregado da obra, alguém gritou que a criança não podia com o balde, e assim passei a carregá-lo pela metade. Tive sorte, porque já estava para ir para o olho da rua. Em pouco tempo cheguei a ajudante de pedreiro, já edificava paredes com tijolos perante a satisfação do meu mestre.
Depois passei a ajudante de ladrilhador, profissão mais digna e mais bem paga. Antes disso levei várias chapadas na cara. Um pedreiro zangado comigo por ter passado para esta profissão, considerou isso como um acto de desprezo da minha parte. Depois do almoço regado com muito vinho tinto, resolveu atirar-me do segundo andar para cima da massa no rés-do-chão. Perante o meu choro e ameaças de que iria queixar-me ao meu pai, ele ainda me deu mais bofetadas.
O meu pai foi mesmo pedir-lhe satisfações, e por entre desculpas e promessas de amizade acabaram a beber uns copos, e os pedreiros a jurarem que me tratariam com o devido respeito. O salário era pago à semana e já ganhava algo considerável. Quando recebia entregava tudo à minha mãe. Ela dava-me alguma quantia que me permitia já uma certa independência. Também era ela que me comprava a roupa. Assim já ia ao cinema, jogava matraquilhos nas feiras, bebia gasosa… e comecei a fumar. Algumas moças já me lançavam olhares lascivos, mas nunca me comprometia por timidez. A minha mãe dizia-me que o dinheiro que ganhava já dava para o pão de casa, porque filhos eram oito, e eu era o mais velho.
Num sábado depois de receber o meu salário, achei que devia ver um filme de caubóis, daqueles que prometiam muita pancadaria com os índios, conforme os cartazes de propaganda afixados. O filme creio que se intitulava, Emboscada do Perigo, e terminava com muito dinheiro a ser lançado ao ar, e o herói enquanto beijava a sua amada, dizia: «Tu e eu vamos para Sonora.»
Claro, cheios de dinheiro que até dava para espalhar pelo ar.
Havia um senão. É que depois do filme tinha que passar por uma azinhaga cerca da meia-noite, ladeada por muros de pedra altos, e ao circular qualquer um seria presa fácil de assaltantes que segundo informações já tinham emboscado algumas vítimas. Destemido movi-me por entre a noite, não sem antes ter colocado o dinheiro nos sapatos, e preparado um canivete de ponta muito afiada para o que desse e viesse.
Como um grande aventureiro avancei. Para espantar o medo assobiava durante o trajecto tentando convencer que se me assaltassem mataria quem quer que fosse que me atacasse. Quando cheguei ao fim da azinhaga não queria acreditar, estava salvo.
Entreguei o dinheiro à minha mãe e contei-lhe tudo o que se passou, e como já era muito tarde fui-me deitar.
Mais uma vez mudámos de casa. Não me recordo o nome do local, era ali para os lados de Loures. Lembro-me que a habitação tinha três andares. Ficava no alto de uma colina e quando chovia era complicado sair ou entrar. Lama por todo o lado arrastada pelas águas devido às construções que estavam a ser efectuadas, e as terras acordadas do seu longo silêncio libertavam-se e daí o deixarem-se arrastar pela rua abaixo.


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