Gutta cavat lapidem. A gota acaba por furar a pedra .
O cavaleiro Luaty estava como Cristo nos demoníacos
braços do comité de especialidade da aniquilação dos presos políticos. Estava
nos interrogatórios preliminares, os seus algozes esforçavam-se por lhe
arrancarem uma falsa confissão a troco de uma montanha de dólares, um bruto
carro, um bruto imóvel e brutas brasileiras importadas para lhe darem gozo
sexual. Mas o cavaleiro resistia-lhes e os seus algozes também. E prosseguiam
com o teatro próprio de um regime ultra autoritário:
- Então Luaty, não confessas quem te patrocinou
para o golpe de estado e assassinato do nosso Grande Inquisidor?
O cavaleiro não queria acreditar no que ouvia.
Como era possível tal acusação pois se nem uma arma tinha em seu poder, apenas
um livro com o título, Como Exorcizar um Ditador. E Luaty respondeu-lhes:
- Sim, confesso que tenho um patrocinador… a
minha mente ansiosa pela liberdade que depois da independência nos prometeram,
e que afinal nos conduziram para o hediondo e fantasmagórico espectro colonial
do qual lutamos outra vez para os destruir de uma vez por todas.
- Mas, temos provas mais que suficientes para acreditamos
que te vendeste aos nossos inimigos, àqueles que querem a todo o custo
desestabilizar o nosso governo democraticamente eleito – essa das eleições
fraudulentas é de pobres diabos frustrados, pois a santíssima oposição
declarou-as como justas, isto é, nada mais tendo a exigir ou reclamar - e
vender o nosso povo e a nossa soberania às potências ocidentais e ao seu líder,
os Estados Unidos da América. Não é senhor cavaleiro Luaty?
- Pois… como posso vender um regime dos mais
corruptos do mundo se ele já se vendeu e nos vendeu. Onde há epidémica
corrupção, há aos presos políticos feroz, mortal perseguição. Já agora, quantos
milhões de dólares receberam do Grande Inquisidor por essa invenção do golpe de
estado e do assassinato do vosso Inquisidor. É que alguém das vossas forças
armadas me disse que precisam urgentemente de criar um conflito bélico, uma
outra guerra para abastecerem os bolsos de dinheiro, pois estão a ficar vazios.
E que se não conseguirem mais uma guerra, inventam outra à pressão, de qualquer
maneira. Têm que criar uma outra guerra por todos os meios possíveis, mesmo com
falsas informações ao vosso Grande Inquisidor. Aliás, esse vosso Grande Inquisidor
só vive de mentiras e invenções e de falsos golpes de estado ao longo de quarenta
anos de um partido que antes era do trabalho e que agora é o partido do pleno
desemprego. O mais importante é sugar dinheiro mesmo que para isso tenham que
eliminar quem quer que seja. Estamos como nos anos sessenta… nos anos de 1975.
Viver em ruínas não é possível.
- Ó camarada Luaty.
- Camarada?! Foda-se, vão para o caralho, vão
para a puta que os pariu!
- Mano Luaty.
- Eu, vosso mano? Porra! Vocês estão malucos, só
pode. Mano de corruptos e de facínoras, nunca, JAMAIS! Onde houver injustiça
tem que haver alguém que faça justiça.
O cavaleiro Luaty lembrou-se das imensas
riquezas de Angola concentradas numa família e mais alguns seus servidores. Na
realidade um vasto séquito de parasitas e de bajuladores que tudo faziam –
melhor, nada, absolutamente nada faziam – para saquearem tudo o que fosse Angola.
Na verdade Angola tornou-se num imenso e poderoso império empresarial, assim o
nome real deveria ser, República dos Donos de Angola, Sarl. Viviam à farta,
todos eram milionários, e costumavam ameaçar que quem se lhes interpusesse no
caminho, a sua vida seria de imediato ceifada e que os defensores dos direitos
humanos internacionais calariam a boca com apenas um milhão de dólares. Era por
isso que os opositores políticos desapareciam e depois apareciam mortos
algures, e que as suas mortes se deviam à actuação de bandidos, conforme
comunicados das autoridades judiciais. E quem tentasse investigar a verdade
seguiria, acabaria no mesmo caminho.
Claro que o nosso cavaleiro não sabia onde se
encontrava. E claro que os governos ditatoriais fazem tudo por tudo para
esconderem os seus pretensos inimigos em prisões ditas de alta segurança, tal
como fizeram por exemplo, com Nelson Mandela, e apregoarem a todos os ventos
que a justiça democrática funciona e que os mais elementares direitos dos
presos políticos são respeitados, sempre sublinhando que os direitos de
qualquer preso são respeitados conforme está pregado na Constituição.
E os inquisidores voltaram à carga municiados de
falsas ideias, de falsos argumentos:
- Camarada mano Luaty, então não sabes, claro
que desconheces que a República de Angola é um Estado de facto e de jure, e que
como tal tem o direito de se defender?
- Condói-me ver que como sempre estão muito mal
informados. Apontem-me apenas um caso de alguém da oposição que apresentou
queixa na vossa justiça e o caso foi julgado a seu contento, sabendo de antemão
que os pressupostos legais estavam claramente identificados e a seu favor, a
causa seria ganha facilmente. Mais, sem educação e justiça vejam no que dá. A
África contribui apenas com um por cento para a comunidade científica mundial…
numa palavra, a África - e muito menos Angola – não têm cérebros, ou melhor
tem-nos em grande quantidade, mas como está infestada de ditaduras, vive num marasmo
intelectual aterrador. E ainda mais, isto já deixou de ser República de Angola,
é república do Uganda. Idi Amin presente! Porque quem não é do petróleo é
contra ele, quem não concordar com o Grande Inquisidor é contra ele. É repressão
contra toda a população. Angola, onde até os bispos são corruptos. Os bispos de
Angola não semeiam a palavra de Deus, semeiam corrupção, convulsão, e nisto são
hábeis milenares. E mais, mais ainda, quando os portugueses e chineses dominarem
o tecido empresarial – pouco lhes falta – então assim é que vai ficar bom. Cantinas
e negociatas similares, tudo em poder dos asiáticos.
No local onde se encontrava – onde seria?, ninguém
sabia – ouviam-se os choros de uma criança que pareciam não ter fim. O cavaleiro
Luaty pensou que, será que prenderam uma mãe com a sua criança e que estando
ela numa sessão de tortura, a criança abandonada chorava, pressentindo o
sofrimento da sua mãe. Sim, numa ditadura totalmente insensível tudo é possível.
Luaty arrepiou-se ao pensar que como é possível, regimes totalmente corruptos
funcionarem e serem aceites pela comunidade internacional. Alguma coisa – muita
coisa - não está bem, e que esta civilização necessita de facto de uma grande
revolução, e isto quer se queira quer senão é inevitável, tal como as ondas do mar
que incessantemente batem nas rochas até as desfazerem, numa revolução
permanente de acordo com as leis da natureza. Porque tal como disse Lavoisier
(1743-1794), na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma.
Chegou um corpulento inquisidor mascarado,
acercou-se do cavaleiro e sem aviso desferiu-lhe uma bruta chapada na cara. O
nosso cavaleiro sentiu que ia desmaiar devido à potência de tal choque. Mas
como um herói aguentou estóico e ainda com a face como que a se desfazer disse
a sua inabalável verdade:
- Os corruptos perseguem os honestos, e como se
não lhes bastasse ainda os prendem. Saibam que a indisciplina, a ignorância, a incompetência
e a irresponsabilidade conduzem à miséria e à fome. E também saibam que difícil
não é viver. Difícil é viver sob o governo de aldrabões que nos fazem a vida difícil,
impossível. E que enquanto vós distribuís as vossas riquezas entre vós, nós
distribuímos a miséria e a fome entre nós. Nos tempos que correm isso já não é
admissível, assim brevemente tombareis sob o aguçado aríete do descontentamento
geral, impossível de suportar. Pois, onde há milhões de esfomeados há o pleno estatuto
dos desordenados.
Imagem: Setenta anos da Coreia Do Norte. ELPAIS
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