- Ó Branco, já não és português, és angolano. Um Branco de segunda ou de terceira.
- Creio que só uma vez em trinta anos me enviaram cadernos eleitorais. Sinceramente, não sei o que pensar dessa democracia. Sinto que, como cidadão não existo. Tal como lá e cá, sou desprezado. Sinto-me como um pária.
O Almirante aprofunda a questão:
- Antes era colonialismo. Para continuar a escravidão anterior inventaram a democracia, para a nova escravidão. Não se alterou nada, apenas mudou o nome. A prova disso é os desempregados, os esfomeados, as prostitutas, as importações. Tudo vem do exterior, o jindungo e até a água para beber, com tantos rios que temos, vêm de fora.
Um carro passa com um caixão. Pára num óbito mais à frente. O Almirante profetiza:
- Vamos ter no próximo ano uma taxa de falecimentos que será a maior do mundo.
- Já alguém disse: o que ganha facilmente se entrega facilmente. – Disse o Filósofo.
- Vais ganhar o Prémio Nobel do alcoolismo. – Prometeu o Poeta.
- Para viver neste mundo, temos que ser bêbados, drogados, preguiçosos, gatunos, ter mais que uma mulher, e sermos ateus. – Zombou o Almirante.
- A culpada disto tudo foi a Tétis. Mergulhou-nos pelos calcanhares no rio Kwanza, é por isso que somos muito vulneráveis. – Acusou o Filósofo.
- Não é nada disso. Somos fracos porque estamos sempre a mostrar os nossos calcanhares. – Defendeu-se o Almirante.
Uma jovem mestiça sai do carro e caminha na direcção de uma vendedora. Compra duas cervejas e um pouco de jinguba que leva num papel. O Vodka observa:
- Oh! É parecida com aquela misse mestiça que…
O Almirante interrompe:
- Isso é um erro grave que estamos a cometer. Nunca deveríamos permitir essas coisas. Não é possível num país com milhões de negras eleger uma misse mestiça.
O Branco não se contém:
- Toda a sociedade desorganizada está exposta ao racismo. Há regimes que nos governam e a todo o momento somos confrontados com os crimes que nos oferecem. É o que resta das teorias comunistas. Estas quase acabaram, mas alguns ainda insistem na sua permanência. O comunismo orgulhava-se de manter a sua população na miséria. Mesmo assim ainda lhe lançava impostos. Era a satisfação, a cópia do regime nazi. Como exterminar as populações sem dar nas vistas. Ideologias da miséria.
- Nunca digas a ninguém que estás na miséria. Vão-te desprezar. – Bradou o Vodka.
- A nossa revolução deu-nos a liberdade de roubar e de beber. Isso significa que somos livres. – Lamentou o Hepatite.
O Almirante apega-se à fortaleza da sua vasta cultura:
- A procura do ser humano será sempre eterna, na demanda milenar pelos caminhos da liberdade, a qual jamais encontrará. Este é o nosso verdadeiro caminho. Outras Idades Médias estão à nossa espera. Os progressos científicos não nos trazem melhorias. Basta ver a fome da nova liberdade. Cada nova revolução é uma nova escravidão. O pouco da liberdade que nos resta devemo-la a John Locke.
- A nossa liberdade já foi um arquipélago. Depois uma cidade. Em seguida cortaram-lhe os braços e as pernas. – Acrescentou o Filósofo.
- Só falta cortar-lhe a cabeça. – Sentenciou o Poeta.
- Não é preciso, está cheia de bebida. – Garantiu o Hepatite.
John Locke e Voltaire deram-nos a liberdade. Entretanto, uma televisão, um jornal e uma rádio continuam no caminho glorioso da Revolução Francesa. – Contestou o Filósofo.
- Marat, Danton e Robespierre reencarnaram. Estão no seu devido lugar. – Apoiou o Poeta.
- Mais pragas, mais pragas, mais desgraça. – Propôs o Pragador.
O Almirante acende outro Angola Combatente. Bebe mais uísque e diz:
- As piores desgraças da história da humanidade não são os terramotos, os ciclones, os maremotos, as epidemias, a fome.
- Então quais são? – Quis saber o Vodka.
- Jesus Cristo e Karl Marx.
- Não vou votar… vou votar no partido dos alcoólicos. – Jurou o Pragador.
O Almirante votou na saga do bom prelector:
- Olhem para essas folhas que estão nos ramos. Para que as árvores fiquem verdes, não necessitam de pedir autorização a ninguém. Apenas dependem de nós no fundamental que é regá-las de vez em quando. Nisso nem a Natureza é completamente livre. Dependemos sempre de qualquer coisa. Infelizmente muita gente finge não se aperceber disso. Esta civilização herdou o egoísmo e a hipocrisia de quem? Gostaria de saber, mas não me preocupo muito com isso. Porque para beber não dependo de ninguém. Quem paga a próxima?!
- Já está paga. – Responderam todos.
E continua:
- Muitas pessoas sentem-se realizadas na vida porque compraram um jipe cheio de brilho. Acho que se sentem como o céu numa noite clara com muitas estrelas a brilhar. Na Grécia e em Roma os heróis eram valorizados. Os heróis de hoje nem os restos de um fardo de palha têm para comer. Há pessoas que trabalharam toda a vida e não conseguiram amealhar um pouco de dinheiro. Enquanto meia dúzia de outras em poucas semanas ficaram ricas. Não há tempo a perder. Que vença, desculpem, que roube o melhor. Nesta batalha só há vencidos. Escravos como o Job bíblico que depois de passar a vida na miséria, estando já no fim é recompensado, mas nada ganhará com isso. Com isto, as religiões continuam a alimentar a escravidão. Estão felizes por terem milhões de Jobes.
- Ah! Como são insondáveis os caminhos do dinheiro. – Reflectiu o Filósofo.
- Como é que conseguem dinheiro para beber? – Perguntou o Branco.
- Temos mais que uma mulher. – Insistiram, responderam quase todos.
São quase duas horas da manhã. O barulho das garrafas e das latas continua. É preciso continuar a beber. Ouve-se o ladrar de cães por todo o lado, devido a pessoas suspeitas que se aproximam das residências com maus intentos. A energia eléctrica tinha sido restabelecida, mas não durou muito tempo. O Almirante diz:
- São problemas do PT.
O Branco tenta ir ao fundo da questão:
- Disso não há dúvidas. Tiram-nos tudo… até já me garantiram que o Drácula vai investir num banco de sangue. Disseram-lhe, que aqui chupar sangue é fácil e tão delicioso, que há uma grande oferta de clientes e… que loucura, isso do PT. Desses que os chineses montaram e continuam os problemas com a luz?
- Não é bem assim. Os chineses não são culpados. Montaram os PTs que lhes encomendaram. Fizeram isso. A distribuição não é da sua responsabilidade, a não ser que lhes digam para mudarem todos os cabos eléctricos das ruas. Isto é uma operação de propaganda para justificar os quinze por cento da angariação do contrato.
- E para onde vai esse dinheiro? – Quis saber o Branco.
- Para as misteriosas ilhas encantadas.
O Branco acrescenta:
- Simulam falhas de luz para nos obrigarem à compra de geradores. E devido a isso, aquilo com que nos alimentamos, os preços sobem porque os que importam se acham no direito de incluir os quinze por cento. É isso: somos a república generalizada dos quinze por cento. Já nos apelidaram de R15.
O Presidente ajeita os óculos. Olha para a Treze Anos e comenta:
- Nós encontramos a cada passo militantes do MPLA… Desde que nós vencemos a guerra, toda a gente é do MPLA… mas alguns só dizem que são militantes do MPLA. Toda a gente se lembra da época das demarcações: quando aparecia um comerciante qualquer, ia demarcar a lavra de um cidadão angolano e depois, no dia seguinte, vinha o Administrador e dizia: «Sim, senhor. Tirem daí as suas casas, porque o terreno pertence agora a este senhor que está aqui». Em vez de termos exploradores colonialistas, como havia antigamente, teremos exploradores angolanos. Porque os maus sentimentos não existem numa só raça. E portanto, não é com bons sentimentos que se resolvem os problemas políticos. É preciso impor regras que sejam rigorosamente seguidas: se vamos esperar que cada um tenha bons sentimentos, não vamos resolver os nossos problemas… In Agostinho Neto. 5 De Fevereiro de 1977. Discurso na assembleia de militantes em Ndalatando.
Imagem: Postado Originalmente no site: Pequena Infante
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