Prefácio
Ilha do Mussulo, Luanda, Angola.
A Ilha do Mussulo era, já não é, o local adequado para
aventuras piscatórias, e o paraíso perdido de Adão e Eva. Recordo-me quando entrava pelas Palmeirinhas, e depois feria-me nos
mangais para pescar alguns pargos e roncadores. Ou
quando entrava pelo
embarcadouro, o barco
que nos
transportava acabava a deslizar na areia, na praia.
Areia muito
fina que
ao caminhar, facilmente deixava enterrar
os pés. Sentava-me, preparava a minha cana de pesca, e aguardava que
algum peixe
distraído ficasse no anzol. À minha esquerda e direita
via o ondular dos coqueiros porque a brisa marítima
sempre assinava o livro de ponto… ondulavam satisfeitos
pelo convite do vento. A água era transparente, via-se o fundo
como que
apregoando silenciosamente, a convidar, que podia mergulhar à vontade.
O silêncio era
quase absoluto.
Depois
chegaram os nostálgicos, os continuadores da gloriosa
Revolução Francesa. Confiscaram, e
edificaram construções porque entendiam, entendem, que
assim é que
ficava, fica bem. Acabaram por
privatizar o que
não lhes
pertence. Esse
pedaço de terra que sempre foi livre, hoje
perdeu a sua liberdade.
Nalguns locais, ou
quase todos,
construíram muros, fortalezas,
acabando com o que
é pertença de todos.
Já não
se pode caminhar na margem,
porque os donos
do mar têm seguranças
privados. Os donos
da vida fácil insistem em tornar-nos a vida
difícil. Três
dias de bebedeira
e quatro a dormirem. Assim se passam os sete
dias da semana.
Nos
tempos áureos
revividos, da magia “mussológica”, conheci um inglês que lá me contou episódios,
creio que interessantes, da vivência que
manteve com algumas das nossas beldades.
E aproveitei para reportar
a prostituição, a vida
fácil, que
na realidade é a vida
difícil.
G.G.
CAPÍTULO I
A TEMPESTADE
Recebi
um convite para passar o fim-de-semana na Ilha do Mussulo. Já navegávamos no barco
de recreio. Na realidade era quase um pequeno iate. Tinha dois motores fora de borda, para no caso de um falhar, entrava o outro em funcionamento. Zarpámos do clube
militar. A bordo
iam apetrechos de pesca
suficientes para
uma boa pescaria. Os víveres aguardavam-nos devidamente
armazenados nas instalações em terra.
A distância não era longa, por isso
rapidamente chegámos ao nosso destino. O barco ficou na margem seguro por uma corda
amarrada num pequeno pilar
em terra, construído para o efeito. O fim
do dia aproximava-se. No horizonte surgiam nuvens
muito escuras. Voltei-me e do lado contrário era a mesma coisa. Parecia que a noite seria regada por
uma grande tempestade.
Fui
convidado por três amigos
a instalar-me confortavelmente. Enquanto
arrumávamos algumas roupas e artigos de higiene pessoal
que retirávamos dos sacos
que transportámos, notei que o vento aumentava de intensidade. A noite
preparava-se para uma grande
chuvada. Os meus
amigos eram sócios
de uma empresa que
prestava serviços de comunicações tácticas.
João
veio de Moçambique. Muito
alto e magro,
com quarenta anos,
raramente ria.
Falava o estritamente necessário e ia embora. Primeiro, foi chefe
de vendas de uma grande
multinacional europeia de
electrodomésticos. Devido ao seu inglês impecável, e aos contactos que
tinha com
várias empresas europeias, era o sócio ideal para dirigir
as comunicações.
Roque
nasceu no Sumbe. Ainda criança vendia jornais
para sobreviver.
Estudou contabilidade. Depois tirou um
curso de perito
contabilista. Conseguiu namorar,
e depois viver
com a secretária
de uma grande empresa
americana de informática.
Ela passou-lhe todos
os segredos que
sabia. Ele lançou-se na informática. Tinha
trinta e cinco anos.
Baixo e forte.
A sua cabeça
tinha metade
do cabelo. Era
muito despistado, muito
trapalhão, daquelas pessoas
que tem a mania
que sabem tudo.
Os seus sócios
diziam que não
era honesto
com eles.
Era o chefe
da informática e das finanças.
Virgílio
era natural
da Cela. Alto
e forte, com
trinta anos. Quase
sem nenhum
cabelo na cabeça.
Coxeava ligeiramente, mas disfarçava muito
bem. Fingia que
estudava economia e informática.
Não lhe
foi difícil licenciar-se na ciência económica. Sentia-se envergonhado quando o tratavam por
doutor. Foi admitido como sócio devido à sua família estar bem posicionada em alguns ministérios.
As suas funções
eram variadas. Pode-se afirmar que
era o logístico.
João
olha à sua
volta e sugere:
-
Isto está um bocado apertado. O nosso amigo vai ficar com o George.
Volta-se
para Virgílio e pergunta-lhe:
-
O George já chegou?
-
Parece-me que sim,
vou ver.
Virgílio
volta pouco
depois:
-
João, o George já chegou.
Fui
devidamente apresentado a George, ele convidou-me a instalar-me. George era engenheiro
de uma grande empresa
inglesa de comunicações tácticas. Há vários anos que residia em
Luanda. Baixo e forte
com cerca
de quarenta anos. Tinha
casado com
uma espanhola, mas depois
divorciou-se. Dominava razoavelmente a língua
portuguesa. Prosseguiu na tarefa de me por à vontade, dando-me algumas explicações:
-
A luz vem do gerador
que está lá
fora. A água
está armazenada num depósito, e circula através de electrobomba. Na despensa
temos vários produtos
enlatados. Na arca frigorífica
temos carnes e mariscos congelados.
As
janelas bateram com
muita força.
Uma grande ventania
arrastava tudo o que
podia. George gritou:
-
Ajude-me a fechar as portas
e as janelas, vem aí uma grande chuvada!
Pouco tempo depois
a água começou a invadir
tudo. George diz:
-
Isto não é chuva, é um dilúvio. Se continuar assim vamos ter problemas.
O vento mudou de direcção e fazia com
que a chuva
entrasse por baixo
da porta. Colocámos alguns
panos no chão.
De repente ficámos às escuras. Batem à porta. Vou abrir, é o nosso vizinho
João que anuncia:
-
Tivemos que desligar o gerador por motivos de segurança. A água está a subir.
Nunca vi chover assim. Trouxe-lhes um candeeiro a gás. Como é que estão as
coisas por aqui?
Respondi
que estávamos bem.
Acendemos o nosso candeeiro
e preparámo-nos para passar
a noite. George já
estava com duas suculentas lagostas. Tirou as tampas
a duas garrafas de cerveja
e ofereceu-me uma. A chuva abrandou um pouco.
Comemos, e bebemos mais algumas cervejas.
-
George, a lagosta estava deliciosa.
-
Vou fazer café, queres?
-
Acho boa ideia, aceito. Pensei que ias servir chá. Não é assim que os ingleses
fazem?
-
Hoje apetece-me beber um bom café.
O café estava delicioso.
George explicava que era um dos melhores cafés
enlatados produzidos pelos americanos, o Maxwell Coffee Ground. Depois da lata
fechada o seu cheiro
ainda permanecia no ambiente.
George trouxe dois cálices:
-
Vamos beber um bom conhaque.
Estávamos
bem confortados. George faz-me um
pedido:
-
Dá-me um cigarro.
-
Pelo que notei até agora, tu não fumas.
- Fumo um de vez em quando.
George
colocou o cigarro nos
lábios. Estava desajeitado
com o seu
isqueiro. Acendi o meu.
Encostei-lhe a chama no início do cigarro.
George aspirou o fumo profundamente. Tal
como esperava foi invadido por um ataque de tosse. O seu rosto
parecia uma chaminé. Fez-me um convite:
-
Vamos para o sofá. A conversa será mais confortável.
Encostou-se
profundamente. Voltou a colocar
mais conhaque
nos copos.
Cruzou as pernas e disse:
-
Infelizmente não temos luz. Gostaria imenso de ouvir música medieval.
Ia
responder mas
fui interrompido por
um relâmpago
de luz intensa
que iluminou tudo
à nossa volta.
Depois seguiu-se um
violento trovão,
que nos
deixou assustados. Olhei para o relógio
de parede. Pouco
passava da meia-noite. Disse apreensivo:
-
George, parece que vem mais tempestade.
- Assim parece. Creio que
vai chover toda
a noite.
Os
relâmpagos continuavam a dar
um tom
irreal à cena.
Nós e os objectos mudávamos de cor continuamente. Parecem ouvir-se pancadas na porta.
Ficámos confundidos porque achámos que era o barulho da trovoada.
Os sons na porta
voltam a ouvir-se, mas desta vez parecem ser de uma chave que bate insistentemente. Talvez
para que nós não
tenhamos dúvidas de quem
é. George vai abrir:
-
Boa noite George. Como estás? Tudo bem por aqui? Dás-me licença? Ah! Pelo que
vejo estás acompanhado.
Imagem: Luanda-Ilha do Mussulo
angolabelazebelo.com
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