Eis o
nevoeiro da Nova Vida. «O Presidente José Eduardo dos Santos convidou os
habitantes a transformarem Luanda numa cidade bonita e num bom lugar para
viver, onde cada um faça a sua parte, salientando que é possível situar Luanda
ao nível de todas as cidades belas e modernas da África Austral e do mundo.»
E via-se
claramente um nevoeiro cerrado, também cenário ideal do filme, O Nevoeiro, de
Stephen King. Eis a insustentável poluição da morte da matéria-prima da única
actividade industrial: os geradores que no domingo, todos os dias já não são
domingos, depois de mais um corte de energia eléctrica de doze horas para
manutenção. Imaginemos um dia, dois dias, três dias sem luz… a morte não é,
será certa. Temos que fazer outra independência porque esta já não presta.
Depois esticou bem a cabeça e os braços,
elevou-os e falou para as alturas.
- Ó vós que viveis nos vossos palácios,
cercados pelos
dias, noites e por seguranças esfomeados. Vigiados por
milhares de guerreiros que vos protegem dos medos.
Parto para Flégeton… lá nos
reuniremos… e rolaremos nas suas ondas de fogo.
A quantia humana parecia um
comício habituado, habitado pelo quase poderio meio centenário, abelhas numa colmeia. Os
comentadores do quotidiano desfraldam notícias.
Esta função é-lhes sumariamente
atribuída. Têm o direito de não se calarem.
- Ih, ih, essa telenovela
é vinculada demais, não
vou deixar que
arrefeça.
- Isso é propaganda Carnaval,
eleitoral dos Politburo.
- O nosso eterno Politburo não
precisa disso… já
ganhou as eleições.
O jovem alterou
a postura, silenciou para
a multidão. Afagou com
as mãos a dizer
adeus. Depois
colou-as no coração, e a pique
foi pela aceleração
da gravidade afundar-se no abismo eterno,
a salvação dos suicidas. No solo um pequeno regato
de sangue vermelhava a terra,
que colidiu, juntou-se ao lixo, ao juramento dos
libertadores imorais que prometeram que seríamos livres.
Que jamais
nos faltaria liberdade, que as terras seriam só nossas, que não existiriam mais
musseques. A colecção humana
desagregou-se. Alguns intrigados curiosos não
arredaram teimosos. Ninguém
atentava para actos suicidas.
Andavam na moda.
- Que odisseia Mentor, que imagens espelhadas tão
desiguais.
- Verás muito mais. Olha, a morgue principal está cheia de cadáveres
desconhecidos. Já
apregoam que Caronte, o barqueiro dos Infernos, está midas. Os falsos médicos que os Politburo contrataram, dão grande
apoio a Caronte.
É notabilíssima a aptidão que
os Jingola têm pela poesia,
como uma desgraça
colectiva. Na caminhada moldada,
distanciada, ouço-os animados de bocejos alargados, pomposos.
- Já
correm réditos no teu
livro de poemas?!
- Ainda
não abastaram angariadores.
- Torna-te fácil,
elogia os feitos do Grande Mago do
Politburo.
Ou ainda:
- Feitorei quatrocentos poemas,
não consigo
ludibriá-los, publicá-los.
- Também
agonizei mais de mil,
poesia dos combates…
não sei se estás a ver!
- Hum, hum!
- Se publicar um livro de poesia, serei eleitor
da Academia de Letras
Politburo. A garinada fartará com lascívia, eu idem. Serei lisonjeado, admirado, invejado pelos meus amigos. Nas igrejas
repicarão sinos, porque
se pariu um grande
escritor avatar.
Farei um figurão
heráldico. O meu
nome literário
será gravado na toponímia e a rua onde nasci chamar-se-á Rua
do Poeta.
- Ah! … Os poetas
Jingola são tão
diferentes, como
punhais indiferentes.
- Discordo! A nossa
poesia é celebrada nos
punhais importados, espetados,
frustrados de corrupção. Freados mas combativos demoramos convencimentos.
Inda não
zarpou para lá
das Colunas de Hércules de Viana, porque nos falta tempo de limpar o sangue
acumulado nas noites destes tempos do rei tão reais.
- Dos pés à cabeça, poesia vitoriosa e derrotas
concordantes.
- Até ver!
- A pé firme!
- Sai uma glosa
debatida, declamada, motejada do meu
vanglorioso corcel bibliotecário.
A nossa negra esperança
desmonta
desponta primeiras pernas primaveris infindas, inusitadas
Iluminadas pelo
branquear sotaque
do seu
biquíni desalmado,
armado e equipado
acalorado, transparente
de suado
Olhe! Executa ela ansiosa ao redor
talvez que
alguém pasmado à solapa
se deleite,
a espreite
Nada acontece. Os bajuladores e os novos-ricos
cansaram-se, desregraram-se
na habitual
amnésia lacunar, apunhalar
Fugitivos, proscritos desta
negra sem esperança
O vento semeava a poeira dos condomínios que mais pareciam catedrais de construções
flutuantes. New Deal, projecto nova
vida, nova corrida
ao homem dourado.
Muito dinheiro,
muita redundância
bancária. Destruir,
construir, destruir. Construir uma árvore
é mais difícil,
é mais fácil
construir um
prédio. Senti começo
de inflamação das conjuntivas.
Com apetite fármaco entrei numa farmácia.
No fundo do balcão,
o farmacêutico conversa
molemente com
uma cliente. São
jovens, parecem disfarçar, namorar.
Disfarço-me também e percorro o mostruário
até conseguir
ouvir a conversa. A jovem activa-se, sacode-se, sobe o tom da voz.
- Não
tenho direito ao emprego porquê?!
- Sabe…
- Sei o quê!?
Passei nos testes
de admissão. Mandaram-me apresentar
ao serviço hoje,
e aqui estou.
- Você
não entende as coisas.
- Repito! Não tenho direito
ao emprego porquê?!!
- Sabes… se fosses mais clarinha… terias o emprego.
Ela levantou uma mão
na intenção de lhe despedir uma chapada. Vacilou, arreou, ausentou-se espantada. A lacrimejar na porta
de saída, esforçou as cordas vocais.
- Essa não!
Essa não!
Aviei-me com o medicamento e reencontrei-me na rua.
Soltei-me das ilicitudes dos ventos contrários.
- Que Deus nos acuda!
Outra vez
Nero incendiará Roma e culpará os Cristãos!
Entretanto, no cume de uma antena quatro aves de rapina
aguardam maré de rosas.
Alguns pombos
distraídos voam perto.
Então, duas rapinadoras alçam voo, preparam arraial
alado. Pairam sorrateiras, os
columbiformes detectam-nas e janelam.
As zungueiras em
fila indiana
espalham fervores nos
seus andores.
São jovens
apetitosas que estudam nas ruas das universidades
paralelas. Carregam livros
de ouro, líquidos
nas suas panelas.
Imensas filas de viaturas
esperam, desesperam. As estações de fornecimento de combustível
são insuficientes.
Aproximo-me do grande esgoto.
Nota-se que era uma rua extensa. Está um
imenso estendal, lodaçal.
Bem nutrido, alimentado sem
encargos régios.
Bóiam restos de lixo.
Colónias de lagartas colonizam, fazem ambiente. A grata
entomologia promove o desenvolvimento social
das espécies. Um
camião recém-chegado estacionou, estatelou com
as rodas traseiras
ao léu. Conseguiu engolir-se no espólio
crateriforme. O seu condutor
aprendeu com o rei
David, que o abismo chama
o abismo A engrenagem parecia um dos rios dos
Infernos.
- Meu
Mentor… é a versão do Apocalypse Now?
- Não…
é o nosso mar
sem existência.
- Sem
ondas? Sem
pescadores?
- A rua foi
saneada quatro vezes.
Instruíram como se deve morar
num prédio. Os locatários
fazem ouvidos de Jingola. Os saneadores cansaram-se, abandonaram-nos à sorte. Falta ignição para estas coisas e loisas. São
vernáculos, venatórios primevos. Utilizam-se disso como
estratagema de vingança.
Fruem o prazer mórbido
da destruição.
É indubitável que há mais
seitas religiosas que
campos em Jingola semeados. Infindáveis sementeiras do nosso chefe semeador, sem
lavrador. Muita semente,
poucos lavradores, muitos importadores.
As seitas religiosas não nos ensinam a cultivar campos, promovem, vivem da fome
dos crentes. Seitas, igrejas
improvisadas mas mais tarde bem abastadas. As vozes, fiéis berradas fazem com
que as cabeças e os corações se rompam como porões. Sempre
pregadas no Mens divinior, o influxo divino! Lembrei-me disto, porque
aproximo-me da casa do meu amigo, Bispo do Imobiliário. É um
soberano novo-rico, sócio dos especuladores imobiliários locais e
internacionais. Costuma ditar-me a ponte
do postulado da sua
confraria social. Que as igrejas crescem proporcionalmente à quantidade
de analfabetos que fabricamos. Há malas endinheiradas dos e das fiéis dizimadas, aviadas.
Muito maná
dos obcecados que bem
utilizado na agro-pecuária extirparia a fome
material do êxodo Jingola. De certeza que
chegou, já aqui
está. Vou escutá-lo, reverenciá-lo.
O Bispo do Imobiliário
orava numa mansão que
lhe era
extensivamente reservada.
Ostensivamente muralhada e reforçada com seguranças das empresas privadas da nomenclatura. Sempre a obrar, alargar espaços. Derrubar muros,
casas-casebres e construir outros
porque as fronteiras
se expandiam. Aproximação da mansão ou intromissão desconhecida
era aventura
fatal. Algumas almas-danadas tentavam profanar o santuário,
mas ocultas câmaras
de vídeo sempre
vigilantes filmavam-lhes os momentos
inglórios do fim num buraco de terra desconhecida, que fortalece os vivos
e apodrece os mortos.
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