- A minha crónica na Ler, dedicada a Rafael Marques, autor de "Diamantes de Sangue", livro que tanto irritou um grupo de generais angolanos.
No coração do Inimigo
Quando o conheci, no início dos anos noventa, em Luanda, ele era um rapaz tímido, que acabava de descobrir o teatro e a poesia. Lembro-me de o ver na primeira fila do Teatro Elinga, para assistir a uma encenação do Equus, do Peter Shaffer, da responsabilidade de Maria João Gonot – hoje, Maria João Moises Ronildo Ganga Apareceu tantas vezes para ver a peça, e sempre tão concentrado, demonstrando um tal interesse, que a Maria João acabou por o abordar. Foi ela, creio, quem nos apresentou. Três ou quatro anos mais tarde voltei a encontrá-lo,em Portugal, como ator do Elinga. Sei disso porque comecei a escrever um diário em 1995, e dei com o nome dele numa entrada, a 13 de Junho: “Fui almoçar com o Rafael Marques, jovem jornalista e ator angolano que estará esta noite, na Malaposta, com o grupo Elinga. Escutar alguém como ele, tão jovem, falar de Angola, a Angola real, com tanta coragem, e com tanta verdade, causa-me ao mesmo tempo admiração e desgosto”.
A 26 de Junho de 1998 almocei no restaurante da Piscina de Alvalade, em Luanda, com o jornalista da Lusa, Eduardo Lobão. Em Angola viviam-se tempos de ansiedade: “Fui entrevistado, de manhã, pelo Sena Santos, para a Antena Um. Falei sobre a situação tensa que se vive aqui em Luanda – estamos todos à espera da guerra”, escrevi no meu diario. Lobão contou-me que estivera no dia anterior no Andulo, pequena cidade do interior, controlada pela guerrilha. Um sujeito branco, responsável pela manutenção da pista, contou-lhe que, três dias antes, um OVNI, com quatrocentos metros de diâmetro, flutuara por ali durante breves instantes. Lobão estava cansado. Queria regressar a Portugal. Ainda antes de terminarmos o almoço apareceu Rafael Marques na companhia de duas jovens norte-americanas. Ofereceu-me um livro de poesia que acabara de publicar. O título agradou-me: “No Coração do Inimigo“.
Nessa mesma noite o mundo foi informado da morte, num misterioso acidente aéreo, na Costa o Marfim, de Alioune Blondin Beye, representante especial do Secretário Geral das Nações Unidas para Angola. O súbito desaparecimento do principal mediador do processo de paz, um homem exuberante, independente e muito respeitado, não podia deixar de ser entendido como uma coincidência terrível e funesta. Efectivamente, a guerra recomeçaria, meses depois, prolongando-se até à morte de Jonas Savimbi, a 22 de Fevereiro de 2002.
Rafael Marques permaneceu no coração do inimigo. Ao longo dos anos foi ganhando prestígio como jornalista e pesquisador, recolhendo, analisando e divulgando informações sobre corrupção e atentados aos direitos humanos em Angola. Enfrentou, durante todo esse tempo, o ódio do regime de José Eduardo dos Santos. Tem sido insultado e ameaçado em artigos publicados na imprensa angolana. Esteve preso. Foi impedido de viajar e sequestrado por militares e agentes da polícia política. Em determinada ocasião, viajando pelo norte de Angola, enquanto recolhia informação sobre a violência praticada contra garimpeiros ilegais por empresas privadas de segurança, escapou por um triz de um atentado.
O ano passado publicou com a chancela da Tinta da China, “Diamantes de Sangue – Tortura e Corrupção em Angola”. Enquanto escrevo esta crónica, a diretora da Tinta da China, Bárbara Bulhosa, aguarda ser chamada ao Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP), para ser ouvida como arguida num processo-crime aberto em Portugal por generais angolanos visados no livro. Trata-se de um daqueles exercícios de hipocrísia, brutal e arrogante, que nos humilham a todos – cidadãos livres do mundo. Mas, sobretudo, é um gesto que deveria envergonhar os portugueses.
Uma noite, em Luanda, um diplomata português disse a Rafael Marques, em tom de ameaça, que tinha dúvidas de que ele viesse a festejar os quarenta anos. Rafael está agora com 42. Espero que viva o tempo suficiente para ver a democracia triunfar em Angola. Espero que viva o tempo suficiente para ver a cobardia e o cinismo derrotados em Portugal.
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