«Noutros ordálios fica inocente quem consegue extrair uma agulha do fundo
de uma panela de água
a ferver. Outras vezes,
submetem-se à «prova da agulha»:
se não sai sangue
depois de picar
a língua, o lóbulo
da orelha ou
as pálpebras, fica provada a sua inocência. Também é inocente
quem consegue pisar
com lentidão, várias vezes, as brasas,
sem queimar
os pés.
Mais perigosa,
aterrorizante e frequente a prova do veneno, usada sobretudo para esclarecer a acusação de feitiçaria.
Em muitas regiões
de Angola denominam-se «mbambu». Só o adivinho
conhece as propriedades altamente venenosas de certas
plantas.
Outras vezes, dependuram o cadáver, atado de pés
e mãos a um
pau ou
colocam-no numas andas. Dois
ou quatro
homens passeiam-no pela
aldeia. Diante
de toda a assistência
silenciosa e aterrada, o adivinho pergunta ao cadáver: - Quem
te matou?
O cadáver quase
sempre se detém diante
duma pessoa e se move bruscamente.
Não há dúvida,
aquele indivíduo
foi o feiticeiro.
Estas práticas originam vinganças, arbitrariedades,
abusos e um
medo generalizado. É que
o acusado não pode apelar,
visto que
o bantu admite um tipo
de feitiçaria inconsciente,
como vimos, e, além
disso, nunca pode demonstrar
a sua inocência
ante uma prova
tão irrefutável
prestada desde o além-túmulo
por um
defunto ou
seus antepassados.
Acusam em especial
os indivíduos anti-sociais,
misantropos, apáticos, defeituosos, irascíveis, a quem
os familiares ou
o adivinho odeiam, e os mais ricos.
Realizam assim uma assepsia
social e uma circulação
de bens.» In Cultura Tradicional Bantu.
Pe. Raul Ruiz de Asúa Altuna. Ed. Paulinas
À hora do almoço
ela apresenta-lhe um
prato e sugere:
- Querido, se o jindungo não chegar, está aqui mais.
Depois do almoço sentaram-se com os olhos na TV. Viam-se imagens
de Taiti, depois Hiva Ao. Falavam de
Paul Gauguin e mostravam pinturas dele: Mulheres
do Taiti na Praia, Mulher
com uma Manga,
Boatos Fúteis, e Quando
é que você se
casa? Gauguin, que
desprezava a civilização porque isso
significa destruir. A civilização
da espoliação para ganhar
dinheiro. Arrasar com povos, civilizações que
apenas amavam a natureza e não davam valor
ao ouro e diamantes, a não ser para
enfeites cerimoniais.
Os considerados inferiores eram na realidade superiores.
Ainda hoje
essa condição se mantém, basta observar o que se passa com a exploração
das populações onde
existem petróleo e diamantes.
Ele, sem tirar
os olhos da TV enceta um diálogo:
- De manhã naquela praia
do Taiti, uma gaivota acreditava que estávamos sós.
Como se o mar
não existisse. Aproximou-se a gaivota confiante.
De repente lembrou-se que nós éramos humanos. E voou aterrorizada prolongando a sua fome.
Deixando-nos a pensar que
depois dela, já
antes lá
estava.
Ela alinha solidária no
mesmo tom, alia-se na mesma irmandade:
- Desfilava o cortejo de um funeral imbecil,
com um
caixão imbecil,
contendo um imbecil
morto. Dizem que
em vida
foi um hábil
negociante. Enganou este mundo e agora
vai enganar o outro.
O funeral era
acompanhado por
uma grande multidão
à qual ele
muito prometera, mas
nada lhes
deixou. Meia dúzia
de nobres que
com ele
muito lucraram e todos
os seus lacaios
tentavam passar despercebidos.
Mais adiante
seguia outro funeral,
o de um HOMEM
que durante a sua vida nunca se cansou de ensinar. Hoje
ninguém liga
aos ensinamentos, só se preocupam com
petróleo e diamantes, por isso
acompanhavam-no apenas meia dúzia de pessoas.
Aquelas que aproveitaram o que ele
ensinou.
Ele lastima-se:
-Deixem-me ver as aves voarem e
poisarem nas árvores. Deixem-me voar onde não há estradas.
Ela corrige-o:
- As estradas são
necessárias para o bem da
humanidade. São
também óptimas para a passagem
de exércitos que
depois as destroem, para que o inimigo não as possa utilizar.
Ele segue-lhe o
raciocínio:
- Sim… vendem-se armas a prestações.
Qualquer ditador pode assim garantir o fornecimento do seu
exército. E os fabricantes
terem incentivos para
produzir mais.
É uma guerra feita
a prestações. Deve-se encorajar
o fabrico de armamento pois
há sempre alguém
que diz: as armas
são necessárias para
o desenvolvimento do nosso país. Onde há guerra não existe amor.
Ela lembra algures já passado:
- Encontrámo-nos por acaso e tudo surgiu por
acaso. Primeiro
amámo-nos numa eternidade de silêncios. Depois
o mar estava tão
próximo, tão debaixo de nós.
Como a esteira
onde nos
deitámos e ficámos desfeitos pelo universo do amor. Prometemos depois
que o nosso
amor seria uma sinfonia
eterna. Podemos nas noites
escuras ser claros, transparentes
nos nossos
diálogos, então
as noites escuras podem ser
claras.
Ele rejubila:
-Vemo-nos, vejo-te todos os dias, sempre tão
íntima, sempre tão
distante. Como
sol protegido
pelas nuvens do teu
ser. Como bem-querer e ficar quase desfeito
nas escarpas dos teus
cabelos. Como
ver o teu corpo vestido
na nudez do teu
vestuário.
Ela mostra
o seu esplendor:
- Sentado olhavas para o infinito do teu rosto, no teu canto silencioso como
o teu olhar.
Os teus cabelos
quase dispersos
no quase infinito do teu tempo.
Olhavas para dentro
de ti e não te
encontravas. Perdido nas tuas manhãs da
tua busca sempre
ansiosa. O teu
cabelo caía como
flores acariciadas nas minhas mãos.
Lutei contigo para
colher uma. Consegui colhê-las todas finalmente.
Ele sente uma visão
repentina:
- E finalmente Deus
lançou os últimos raios
de fogo sobre
a Terra, e já não havia ninguém para os receber.
Mas os anseios e
devaneios em Jingola depressa se desvanecem, porque há um chamamento, um apelo
contante ao demónio.
- Que barulho é este? O que é que eles estão a
fazer agora?
Parece que estão a rebentar
granadas. Kakulu-Ka-Humbi vai lá ver.
Ela subiu, falou com os vizinhos
e desceu:
- Estão a derrubar a parede que construíram na sala.
Dizem que estão sempre
a chegar mais
visitas e precisam de mais espaço.
- Santo Deus! Quando acabará este
tormento?!
- São os ala mu muxitu. (Estão na mata,
na selva, no bosque,
na floresta.)
Injandanda
faz-lhe o serviço de segurança, posta-se na sua trazeira e tranquiliza-a:
- Vou ficar mais afastado,
estou com medo
dos destroços.
Akalesela
acha preferivel abandonar o ambiente desolador, de destruição permanente. Do
colocar Jingola como depois de uma grande tormenta climática.
- Vamos
investigar o prédio
enfeitiçado.
Já
estavam a caminho, ela previne-o:
- Vou sozinha, deixa-me em
casa da minha
avó. Como é próximo, vou a pé. Não vale a pena esperares. Nesta cidade
já não se pode andar de carro.
Depois apanho um
táxi para casa.
Ma Yuan
esperava-a porque foi prevenida com antecedência
da visita. Mirou Kakulu-Ka-Humbi de alto a baixo e
observou:
-
Querida, quem me
dera ter o teu
corpo.
- Um não te chega?
Ma Yuan
parece não ter
gostado do comentário. E rápidamente mudou de
conversa.
- Já avisei os vizinhos
que virias, podes começar
o trabalho.
A
inspecção terminou quase duas horas depois. Ao
sair do prédio
pára porque próximo
está o que parece uma força-tarefa.
Dois carros fortificados e cinco
homens bem
armados com coletes
à prova de bala
preparam-se para a recolha
das receitas do dia
de uma operadora de telemóveis. Um está no
interior do estabelecimento, outro no passeio, outro
na esquina, outro
mais afastado e finalmente
outro encostado nos carros da escolta. O
que transporta as receitas
move-se rápido. Os outros
preparam-se para disparar.
Não deixam ninguém
aproximar-se. O perigo é intenso
porque ninguém
sabe se a qualquer momento
sairá um disparo
acidental, e mais
uma vítima inocente
deixará de viver. Os carros
partem parecendo uma cena de um filme. Num repente,
Kakulu é cercada por
quatro jovens.
Um deles entoa ameaçador:
- Passa o telemóvel.
Ela prepara-se para
se agachar e morder-lhe os testículos.
Desiste porque vê
que estão armados. Deixa
que lhe
tirem o telemóvel. Eles retiram-se
rapidamente do local. Ela não se dá por vencida e exclama:
- Akúlu
Tutulukisenu! (Antepassados mandem ficar mudado.)
De repente transforma-se em
águia. Sobe e mira facilmente os malfeitores. Paira sobre
eles e ataca com
uma garra o que
tem o telemóvel. Retira-o e com a outra garra livre aperta-lhe o pénis. Os meliantes
fogem. Ouvem-se dois comentários:
- Nunca vi um
telemóvel enfeitiçado.
-
Avisei para não
fumarmos a droga que
veio da Nigéria.
A águia eleva-se e voa para casa. O Joaninho miava muito
agitado. Akalesela ouviu um guincho conhecido no exterior.
Abriu as portas da varanda
completamente. A majestosa
águia entra e poisa no poleiro. Depois
de fechar as portas
o mais rápido
que lhe
é possível, volta-se e vê que
Kakulu-Ka-Humbi já está sentada no sofá. Batem à porta
de entrada, ele
abre-a, é Injandanda. Este anuncia:
- Ala mu muxitu quer falar com o vizinho.
O
vizinho vem com uma menina.
- A minha filha diz
que viu entrar
uma águia e quer brincar
com ela.
- Deve ser engano.
-
Desculpe vizinho, esta criança só tem oito anos e já mente assim.
Dá-lhe
uma chapada na cara
e ameaça-a:
- Você está a ficar feiticeira, vamos
queimar-te e atirar-te para a lixeira.
- A luz foi-se. – Lamentou ela.
- Sem electricidade a fome
é! – Exclama ele.
- Certa! – Juntou ela.
Imagem:
João Stattmiller
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