27 de Março
Muito exausta, a
energia eléctrica iluminou-nos às 00.10 horas. Abandonou-nos às 09.18 e assomou
timidamente às 11.51 horas.
Acabo de ouvir
horrores no atendimento das clínicas privadas. Como por exemplo, numa delas
apenas um médico para atender muitos doentes. Angola está doente e as pessoas
também, está tudo doente. Há quem afirme que é preferível ir para os hospitais
públicos. Entretanto o nível de crianças afectadas pela malária cresce
horrorosamente, fala-se de epidemia, o que não é nenhuma novidade.
28 de Março
Ao meu redor só
oiço falar de pessoas, vizinhos, amigos, familiares que estão com paludismo.
Mas que epidemia, santo Arquitecto da Paz. Estou receoso, acho que também não
vou escapar.
A luz voou outra
vez às 18.06, regressou às 19.10 horas.
A Fula vende os
seus hortícolas no mercado livre da rua. Escolhe um passeio e instala-se. Já lá
vai algum tempo que ela exerce a sua actividade na rua das Sirenes, junto à
conhecida rua dos Apagões. Hoje veio com equimoses na cara. Uma habitual
cliente pergunta-lhe o porquê, mas prevendo de antemão qual será a resposta: «O
meu marido vive com mais duas… tem mais duas mulheres. Ontem chegou bem boiado
e perguntou-me pelo dinheiro da renda da casa. Eu disse-lhe que está difícil,
que vai lá nas outras tuas mulheres, elas que paguem a renda. E o gajo, o
sacana de merda surrou-me.
No outro dia, a
Fula confessou que o gajo lhe voltou a surrar, mas com menos intensidade, assim
tipo surra de fingir. Três clientes e algumas kinguilas decidem que ela deve
exigir-lhe um ultimato, e então: «Olha, você manda esse gajo à merda, para a
puta que o pariu.» «Sim, é isso mesmo que já estou a fazer, disse-lhe que não
lhe quero mais.»
No outro dia, as
clientes e as kinguilas ansiosas sondam-na: «Então o gajo, como é?» «É manas!
Ele não está a aguentar, está a ficar maluco. Hoje ameaçou-me que se eu lhe
abandonar ele vai-se enforcar. Manas! Não é a fingir, é mesmo verdade. Ele está
mesmo muito atrapalhado, chora-me que sem mim vai-se matar mesmo.»
29 de Março
Jovem ardina que
me costuma trazer o Semanário Folha 8, há quatro semanas que não aparece.
Liguei, liguei, liguei para o telemóvel dele, e nada. Já lhe dei como mais um
manifestante desaparecido, fuzilado, nesta guerra do Artigo 47º.
30 de Março
O mwangolé está
na presença de uma portuguesa chefe, são tantas, do pessoal. Ele aguarda que
ela lhe diga o porquê de uma dúvida no seu processo individual, mas ela
aborda-o desconexa: «Sabes, eu sou muito competente, sou licenciada, estou aqui
em Angola porque sei trabalhar. Sei muita coisa, estudo muito, não sou como
vocês que não ligam a essas coisas, não preciso que ninguém me ensine nada. Eu
sou a chefe do departamento do pessoal, e como te disse sou muito competente.»
Até hoje o mwangolé nunca entendeu porque é que ela o chamou. Mas salta aos
olhos, não é? Quem usa essa conversa é sem sombra de dúvidas mais uma pobre
alma sem habilitações, mais um pobre diabo para chicotear escravos.
31 de Março
De repente a
maliana começa a surrar selvaticamente o seu filho de cinco anos. Era pancada
nas costas, na cara, por todo o corpo do tipo, hoje mato-te. Ninguém gostou da
selvajaria, e dois mwangolés mais ousados chegaram ao pé dela, e chamaram-lhe a
atenção, ao que ela de chofre num tom eloquente esclareceu-os: «Mas o que é que
vocês querem? O filho é meu, posso muito bem matá-lo. Se vocês o quiserem podem
ficar com ele, tenho outro aqui na barriga.»
No mercado dos
congolenses, um cliente pergunta a uma vendedora porque é que as que vendiam
cigarros já lã não estão. Ela disse-lhe que morreram. E uma mais-velha também
pergunta à vendedora porque é que já não vê também muitas outras pessoas que
ali vendiam, a vendedora esclarece-a: «Mana, morreram, está a morrer muita
gente.»
01 de Abril
Circular por
Angola de carro está demasiado perigoso, uma catástrofe. Angelino Serrote, o
porta-voz da Polícia de Trânsito, informou que nos três últimos dias, 30, 31 de
Março e 01 de Abril, nas estradas de Angola devido a acidentes morreram vinte e
cindo pessoas, em Luanda foram dezassete, e ficaram feridas noventa e oito. O
automóvel está a ficar muito perigoso, um caixão ambulante.
A criança de
seis anos está na escola com paludismo. Diz na professora que se sente muito
cansado, adormece, claro que não consegue prestar atenção, nem fazer os deveres
escolares, e a professora na sua sapiência de regime totalitário: «Não fazes os
deveres?, não te bato porque estás doente!» E assim a criança ficou até à hora
de saída, quase incapaz de se mover, a custo chegou em casa e a primeira coisa
que fez foi deitar-se, já com 39,5 de febre. Que apologia da morte neste ensino
escravo, analfabeto.
02 de Abril
Um luso-angolano
foi na embaixada portuguesa tratar do seu BI e do cartão consular. Chegou às
07.00 e saiu de lá às 16.00 horas. Já ninguém sabe trabalhar, não é?! A
mediocridade toma conta de tudo e ninguém a enfrenta.
Será que a banca
em Luanda tem o prazo expirado?
Esta manhã, no
banco BAI em Luanda, duas agências não tinham sistema, e nestas duas e mais
uma, não tinham cartões de crédito multi-caixa.
15.45 horas, 33
graus à sombra. Uma zungueira mais velha, já com idade de descansar pelo dever
cumprido durante a sua vida, carrega uma banheira com frutas na cabeça. Nota-se
claramente que se esforça para andar, porque as suas forças estão em baixo, mas
ela insiste, não desiste, e continua a arrastar-se como uma moribunda à espera
que os abutres a cacem e devorem o que resta do seu corpo. E eles de repente
aparecem, não a voarem mas numa carrinha dos fiscais do Governo de Luanda, e
brutalmente puxam-lhe pela banheira que cai no cão, os fiscais apanham-na e
metem-na na carrinha e fogem. Ouve-se de repente um grande coro de vozes, tipo
Igreja Universal, de revolta, de condenação, de estupor, de campo de
concentração. A mais velha chora de mãos na cabeça, porque era a única coisa
que conseguiu para vender para não morrer de fome. Graças aos ensinamentos do
petróleo, a selvajaria está muito evoluída, muito instruída. Este petróleo tem
a cor da fome, da morte.
22.00 horas. A
jovem Sónia estaciona o seu carro no largo das Sirenes. Prepara-se para sair,
uma moto-rápida com dois jovens encosta-lhe e um deles bate-lhe no vidro com
uma pistola, fazendo-lhe sinal para abrir. Ela abre o vidro e o jovem da
pistola diz-lhe peremptório: «Fica calada, não tentes nada. Passa o teu saco.»
Ela entrega-lho e eles muito rápidos desaparecem na noite, protegidos pelos
apagões. Ela sai do carro a cambalear, quase a desmaiar: «Levaram-me todos os
meus documentos, incluindo o meu cartão do multi-caixa, o meu telemóvel, e
outras coisas. E agora, que será de mim?»
O mwangolé foi
renovar o seu bilhete de identidade nos Combatentes, actual Avenida Comandante
Valódia, mas toda a gente a chama de Avenida dos Combatentes. O seu BI saiu com
tudo, ou quase tudo errado, coisa muito natural por aqui. Refizeram-lhe o BI,
teve que ser outro novo. O mwangolé esteve todo o dia nisto, das oito até às
dezoito e trinta. De facto onze anos de paz são muito pouco até para conseguir
um BI.
03 de Abril
Existem em
Angola, salvo erro, vinte e três bancos. Alguém me sabe explicar o porquê desse
número tão elevado?
Quase quarenta
anos depois, os mwangolés usam as traseiras dos prédios e similares, para
atirarem o lixo, águas imundas, etc. Essas traseiras são de facto monumentais
lixeiras. Isso deve-se a quê? A uma conjuntura de lixo?
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