Ainda
com todos os acontecimentos bem gravados na minha memória, no outro dia, todas
as pessoas que via inchavam-me de medo, porque os meus pais diziam que as
bruxas eram demónios que viviam na Terra para nos matarem, e depois beberem o
nosso sangue, e assim sobreviviam. Como os meus pais eram muito religiosos –
era tudo religioso – começaram a rezar o terço muito concentrados e com muita
intensidade. Depois a minha mãe chamou a minha avó para ajudar nas preces a
Deus, para que nos livrasse dessa terrível bruxaria.
Numa
carroça de bois que o meu pai conseguiu arranjar, transportámos os nossos
parcos haveres e rumámos para uma aldeia próxima de nome, Crucifixo. A
habitação era pequena mas servia-nos bem. Tinha também um pequeno espaço de
terra, e no centro uma figueira. Algumas habitações idênticas contíguas
lembravam uma imensa carruagem de um comboio. Eram as habitações típicas dos
mais pobres e miseráveis.
Em
frente havia um vasto pinhal que se espaçava para muito além, e no seu mais
profundo nascia uma verdadeira floresta.
A
fome continuava a assolar-nos, de tal modo que nem um pouco de pão havia para
comer. A minha avó conseguiu montar um pequeno forno e começaram a sair os
primeiros pães de milho, grandes e pesados. Trazia-nos alguns, e durante meses
foram a nossa única alimentação.
Crianças
para brincar eram raras e assim continuei sozinho. De vez em quando ouvia a
minha avó falar com a minha mãe de que tinha havido uma grande guerra, mas eu
não fazia ideia do que isso era.
Numa
tarde decidi aventurar-me pela floresta de pinheiros. Andei, andei o mais que
pude e não consegui atingir o fim. Pensei que a floresta era interminável. Vi
plantas pequenas que brotavam, brancas, acinzentadas, com uma sombrinha,
rodeadas de musgo. Apanhei algumas que depois entreguei à minha mãe. Mas ela
assustou-me:
-
Não apanhes mais dessas plantas nem as comas, porque algumas são venenosas…
chamam-se cogumelos. Os que servem para comer são os brancos, mas mesmo assim
alguns são venenosos. Estes aqui são bons para comer fritos ou cozidos, mas
quando fores apanhar mais, tens que me mostrar.
Continuando,
aprendi a distinguir os que eram bons para comer, até que me fartei e fiquei
enjoado. Também havia muitos espargos que fritos eram deliciosos.
Claro
que o único local onde me podia divertir era na floresta de pinheiros. Decidi
aventurar-me pelo seu mais profundo sem parar. Andei, andei até me sentir
cansado, até ouvir o vento uivar nos ramos dos pinheiros, até sentir o que
nunca antes experimentei, e pareceu-me que os pinheiros falavam entre si.
Pareciam vozes humanas a murmurarem que havia um estranho no seu seio. Comecei
a sentir medo, a querer fugir receando que estivesse perdido num outro mundo.
Distingui
muito no profundo da floresta, um local muito escuro e pareceu-me ouvir vozes
humanas. Vi que afinal não estava só. Pensei que eram trabalhadores que
cuidavam da floresta. Aproximei-me e vi uma pequena clareira com luz muito
intensa. Vi um senhor de idade avançada sentado numa cadeira, e ao seu redor o
que pareciam ser anjos rodeados de estrelas. Tomado de grande pânico iniciei
uma grande correria de regresso a casa. Não contei nada à minha mãe nem à minha
avó. Nessa noite dormi muito mal, carregado de pesadelos, com imagens que não
me deixavam dormir. Senti muito medo.
De
manhã, ao acordar, decidi que pela tarde iria ao mesmo local para ver com mais
pormenor o que seria aquilo. Demorei-me, já era quase fim de tarde, o céu
ameaçava chuva, mas mesmo assim fui. Quase ao chegar, a escuridão veio de
repente, do céu desabou uma grande chuvada, e os raios que a acompanhavam
iluminavam tudo ao meu redor. Faziam os pinheiros e a vegetação parecerem
horrendas criaturas que se moviam, como querendo agarrar-me. Já encharcado até
aos ossos vi a tal clareira. A mesma luz intensa mantinha-se, e o cenário
também. Consegui esconder-me debaixo da vegetação, o que para além de observar
sem ser visto, também me ajudava a proteger da chuva.
Lá
estava o mesmo senhor idoso rodeado, do que pareciam ser anjos. Tinham auréolas
à volta das cabeças, círculos de luz pairavam-lhes, estrelas de luz muito
intensa subiam e desciam, e quando estavam prestes a tocar o solo
transformavam-se em pessoas iguais às que via em alguns quadros religiosos, e
que me diziam serem anjos. De repente tudo escureceu. Pensei que fosse o
causador dessa desdita. Aterrorizado, pensei que descobriram o local onde
estava. Só tive um pensamento, fugir. Ajudado pelos raios da trovoada que
iluminavam de vez em quando o local, fugi muito rápido, o quanto as pernas me
permitiam. E já estava muito escuro devido ao avanço da noite.
Quando
me aproximei da saída da floresta ouvi alguém gritar pelo meu nome. Era a minha
avó que decerto preocupada com a minha ausência temia o pior. Receoso, respondi
ao seu chamado e quando se aproximou de mim pegou-me pelas orelhas e assim
quase me arrastou. Tirou um dos tamancos e bateu-me bem até quase se cansar.
Fui-me deitar com o rabo bem dorido.
De
manhã, a minha mãe e a minha avó muito preocupadas disseram-me para nunca mais
ir para esse local, para brincar apenas ao pé de casa, porque mais para longe,
lá na floresta era muito perigoso, e que as outras pessoas também tinham medo.
Ganhei coragem e falei-lhes do que vi na clareira, lá muito no fundo da
floresta. Olharam uma para a outra, e limitaram-se a responder-me que nunca
mais fosse para esse local, porque aí era morada do demónio. Por mais que
tentasse saber nos dias seguintes o que ali se passava, nunca ninguém me
explicou nada, mantinham-se sempre no silêncio.
Já
tínhamos mais algo para comermos, porque a minha avó começou a vender tremoços,
e como sempre nunca se esquecia de nós.
Durante
este tempo, o meu pai andava por Lisboa a tratar de arranjar melhores condições
para nós. E quando chegou levou-nos de visita ao meu tio no Tramagal. Era
proprietário de uma barbearia, e pelo caminho o meu pai dizia que ele era um
grande comunista, e que tinha muito medo de falar com ele, porque
arriscávamo-nos a sermos presos. Nunca consegui saber se era militante ou não,
apesar de o meu pai dizer que mantinha reuniões com os comunistas na sua casa.
Mas
pelos diálogos que mantinha, notava-se que tentava aumentar os adeptos do
Partido Comunista Português.
Chegados
à barbearia fomos recebidos pelos meus tios e pela minha prima Belita. Enquanto
o meu pai se sentava na cadeira para o meu tio lhe cortar o cabelo, ele diz-lhe
que ouviu na Rádio Moscovo que os comunistas de todo o mundo deveriam unir-se
para acabar com a exploração do homem pelo homem. E que Salazar deveria deixar
o poder porque Portugal estava muito atrasado. O meu tio insistia que a língua
Esperanto deveria ser a língua universal. Assim, o comunismo seria mais
facilmente entendido em todo o mundo. Tentou oferecer um exemplar impresso em
Esperanto ao meu pai que o recusou de modo brincalhão:
-
Nunca mais chove!
Imagem:
samuel-cantigueiro.blogspot.com
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