segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

O PARAÍSO PERDIDO A OCIDENTE (15)






O meu pai comprou um carro, um velho Citroen. Com o meu pai e a minha mãe lá fomos de viagem até Tramagal. Íamos de visita à terra onde nasci. Quando chegámos, depois dos tradicionais milenares cumprimentos, a minha tia piscou-me um olho cúmplice e mandou chamar a Belita que estava algures nas redondezas. Ela já sabia do nosso namoro.
Quando chegou aguardei que estivesse só e inundei-a de beijos. Aproveitei e acariciei-lhe os seios. Ela sentiu-se envergonhada e baixou a cabeça. Depois encostou-se a mim e assim ficou durante uns momentos, mas com receio que nos vissem. Depois fomos passear, namorar. A vizinhança espiava-nos nas portas e janelas, a Belita sorria e comentava:
- Que grande falatório vai sair hoje e nos próximos dias.
E ela sentindo-se liberta do ambiente de aldeia global que era Portugal extremamente hostilizado pela religião e pelo mar do milagre de Fátima, que se estava marimbando para o que dissessem. Era o ambiente típico de uma aldeia, apesar de o Tramagal ser uma freguesia. Quando estávamos sós não perdia as oportunidades favoráveis para lhe desvendar a virgindade do seu corpo. Ela suspirava, sentia desejos de prazer quase desmaiava.

O meu pai chamou-me para provarmos uma água-pé que dizia estar mesmo no ponto. Trazia latas de conserva de sardas em molho picante. Eu gostava muito. Era um bom petisco e o picante aumentava o desejo de beber. Era uma água-pé deliciosa. Quando bebia demais começava a falar muito. Sentia uma alegria estranha. E o meu pai:
 – Nunca mais chove!
Chegava a hora da partida, despedia-me da Belita com promessas de amor, e ela num sorriso encantador do jardim do paraíso, revelava-me os mistérios do seu amor.
O meu pai já tinha o carro carregado com batatas e outros produtos. O carro ia bem carregado. O meu pai conduzia com muito cuidado, não gostava de velocidades.

No café do Frederico o Quitério despedia-se. Foi mobilizado para a Guiné. Mas tranquilizava-nos dizendo que devido ao seu coxear ficaria em Bissau como furriel amanuense. O Mota ia para Moçambique. Via os turnos de incorporação passarem um após outro e não me chamavam. Pensava por vezes que se tinham esquecido de mim. O meu pai dizia:
- O meu filho vai sair da tropa velho. Estão a desgraçar-lhe a vida. Que fará um homem já velho quando sair da tropa?
E no último turno do ano lá me chamaram. Fui à inspecção militar. Mandaram-me despir, pesar, medir a altura, tirar fotografias. Deram-me a chamada injecção de cavalo. Passado mais algum tempo saberia onde iria fazer a recruta. Nunca mais veria os meus queridos amigos, Mota e Quitério. Todos os nossos projectos ficaram adiados para sempre. Podíamos ter fugido para a Suécia como outros fizeram, mas o Quitério não concordou. Disse-nos que era melhor irmos para conhecermos a realidade no terreno, e assim estarmos em condições de falar com conhecimento de causa. Não como aqueles políticos que falavam muito das Províncias Ultramarinas sem nunca lá terem estado.


CAPÍTULO III
A TROPA


Castelo Branco, 19 de Outubro de 1970

A recepção à chegada foi cortar o cabelo na carecada com a máquina zero. Depois receber vestuário e calçado. Uma camisola interior e outra de tecido grosso. Calças que me ficaram largas, uma camisa, um blusão, meias, um quico, botas e sapatilhas. Roupa e sapatos de saída. Ficámos alojados no que era, assim parecia, um armazém. Praticamente uns em cima dos outros. Parecia uma lata de sardinhas gigante. O barulho era ensurdecedor. Ler um livro era impossível no meio de tanta confusão. Por isso a concentração, pensar não era possível.

Chegou um cabo a dizer-nos que agora já não tínhamos nome. Devíamos fixar o nosso número mecanográfico que saiu no sorteio até ao fim do nosso serviço militar. Era a nossa despersonalização. Felizmente o chefe do pelotão, o aspirante Abreu, e um sargento miliciano eram boas pessoas. Começámos a aprender ordem unida. Ao contrário de outros oficiais o nosso chefe ensinava-nos com brincadeiras à mistura. Estava sempre a rir. Ao contrário de um alferes que quando estava de oficial de dia, ou a dar instrução era um terror. De rosto sempre mal-encarado, nunca o vi sorrir. Não valia de nada pedir-lhe fosse o que fosse, porque a sua resposta era sempre não. Os recrutas do seu pelotão acabavam sempre a ordem unida todos partidos e desconjuntados. Tinha imenso prazer nisso. Como se vingasse de qualquer coisa que ninguém sabia. Quando chegava a hora das refeições muitos comiam de tal modo que pareciam nunca terem comido. Para eles a tropa era boa porque donde vinham raramente comiam. Aqui sentiam-se felizes com casa e comida gratuita. Engordavam rapidamente. Por causa disso chamavam-lhes lateiros. Eram alvo de continuas chacotas. O dinheiro que tinham era bem guardado, bem poupado. Não bebiam uma gasosa ou uma cerveja. Não faziam gastos nenhuns. Isso surpreendia-me porque como é que uma pessoa assim conseguia viver sem gastar o que quer que fosse.

O nível cultural dos meus colegas era muito baixo. Não conseguia manter uma conversa. Sentia-me imensamente deslocado. Quantas saudades do Mota e do Quitério. Nos primeiros quinze dias ninguém podia sair do quartel. Depois disso foi uma debandada geral. Também saí. A estação dos caminhos-de-ferro era bem próxima. Bem organizada e poderia confessar bem bonita, bem asseada, muito convidativa devido aos vasos de flores. Várias vezes aqui me sentava nos assentos disponíveis e aproveitava para ler. Próximo, era a avenida principal ladeada por uma montanha. Para um recruta pouco mais havia para onde ir. Posso assegurar que era uma cidade bonita e pacífica. Em frente ao quartel os arruamentos eram de pedra calçada muito bem conservados. As vias principais eram asfaltadas.

O único colega com quem conseguia manter algum relacionamento era o Dário, mas não podia aprofundar as conversas devido às suas limitações. Um vizinho da sua terra natal também recruta constituiu motivo de curiosidade, porque achava difícil dois vizinhos serem incorporados na mesma unidade. Eram de uma rivalidade confrangedora. Passavam o tempo a dizer mal um do outro. Quando me dei conta já era confidente de ambos. Passavam o tempo nisso. Cheguei ao ponto de já não os poder suportar. Evitava-os a todo o custo. Mas num ambiente tão fechado em que éramos obrigados a estar e conviver, constituía um exercício insuportável. A minha mente sofria com tal perturbação.

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