O
meu pai comprou um carro, um velho Citroen. Com o meu pai e a minha mãe lá
fomos de viagem até Tramagal. Íamos de visita à terra onde nasci. Quando
chegámos, depois dos tradicionais milenares cumprimentos, a minha tia piscou-me
um olho cúmplice e mandou chamar a Belita que estava algures nas redondezas.
Ela já sabia do nosso namoro.
Quando
chegou aguardei que estivesse só e inundei-a de beijos. Aproveitei e acariciei-lhe
os seios. Ela sentiu-se envergonhada e baixou a cabeça. Depois encostou-se a
mim e assim ficou durante uns momentos, mas com receio que nos vissem. Depois
fomos passear, namorar. A vizinhança espiava-nos nas portas e janelas, a Belita
sorria e comentava:
-
Que grande falatório vai sair hoje e nos próximos dias.
E
ela sentindo-se liberta do ambiente de aldeia global que era Portugal
extremamente hostilizado pela religião e pelo mar do milagre de Fátima, que se
estava marimbando para o que dissessem. Era o ambiente típico de uma aldeia,
apesar de o Tramagal ser uma freguesia. Quando estávamos sós não perdia as
oportunidades favoráveis para lhe desvendar a virgindade do seu corpo. Ela
suspirava, sentia desejos de prazer quase desmaiava.
O
meu pai chamou-me para provarmos uma água-pé que dizia estar mesmo no ponto.
Trazia latas de conserva de sardas em molho picante. Eu gostava muito. Era um
bom petisco e o picante aumentava o desejo de beber. Era uma água-pé deliciosa.
Quando bebia demais começava a falar muito. Sentia uma alegria estranha. E o
meu pai:
– Nunca mais chove!
Chegava
a hora da partida, despedia-me da Belita com promessas de amor, e ela num
sorriso encantador do jardim do paraíso, revelava-me os mistérios do seu amor.
O
meu pai já tinha o carro carregado com batatas e outros produtos. O carro ia
bem carregado. O meu pai conduzia com muito cuidado, não gostava de
velocidades.
No
café do Frederico o Quitério despedia-se. Foi mobilizado para a Guiné. Mas
tranquilizava-nos dizendo que devido ao seu coxear ficaria em Bissau como
furriel amanuense. O Mota ia para Moçambique. Via os turnos de incorporação
passarem um após outro e não me chamavam. Pensava por vezes que se tinham
esquecido de mim. O meu pai dizia:
-
O meu filho vai sair da tropa velho. Estão a desgraçar-lhe a vida. Que fará um
homem já velho quando sair da tropa?
E
no último turno do ano lá me chamaram. Fui à inspecção militar. Mandaram-me
despir, pesar, medir a altura, tirar fotografias. Deram-me a chamada injecção
de cavalo. Passado mais algum tempo saberia onde iria fazer a recruta. Nunca
mais veria os meus queridos amigos, Mota e Quitério. Todos os nossos projectos
ficaram adiados para sempre. Podíamos ter fugido para a Suécia como outros
fizeram, mas o Quitério não concordou. Disse-nos que era melhor irmos para
conhecermos a realidade no terreno, e assim estarmos em condições de falar com
conhecimento de causa. Não como aqueles políticos que falavam muito das
Províncias Ultramarinas sem nunca lá terem estado.
CAPÍTULO III
A TROPA
Castelo Branco, 19 de Outubro de 1970
A
recepção à chegada foi cortar o cabelo na carecada com a máquina zero. Depois
receber vestuário e calçado. Uma camisola interior e outra de tecido grosso.
Calças que me ficaram largas, uma camisa, um blusão, meias, um quico, botas e
sapatilhas. Roupa e sapatos de saída. Ficámos alojados no que era, assim
parecia, um armazém. Praticamente uns em cima dos outros. Parecia uma lata de
sardinhas gigante. O barulho era ensurdecedor. Ler um livro era impossível no
meio de tanta confusão. Por isso a concentração, pensar não era possível.
Chegou
um cabo a dizer-nos que agora já não tínhamos nome. Devíamos fixar o nosso
número mecanográfico que saiu no sorteio até ao fim do nosso serviço militar.
Era a nossa despersonalização. Felizmente o chefe do pelotão, o aspirante
Abreu, e um sargento miliciano eram boas pessoas. Começámos a aprender ordem
unida. Ao contrário de outros oficiais o nosso chefe ensinava-nos com
brincadeiras à mistura. Estava sempre a rir. Ao contrário de um alferes que
quando estava de oficial de dia, ou a dar instrução era um terror. De rosto
sempre mal-encarado, nunca o vi sorrir. Não valia de nada pedir-lhe fosse o que
fosse, porque a sua resposta era sempre não. Os recrutas do seu pelotão
acabavam sempre a ordem unida todos partidos e desconjuntados. Tinha imenso
prazer nisso. Como se vingasse de qualquer coisa que ninguém sabia. Quando
chegava a hora das refeições muitos comiam de tal modo que pareciam nunca terem
comido. Para eles a tropa era boa porque donde vinham raramente comiam. Aqui
sentiam-se felizes com casa e comida gratuita. Engordavam rapidamente. Por
causa disso chamavam-lhes lateiros. Eram alvo de continuas chacotas. O dinheiro
que tinham era bem guardado, bem poupado. Não bebiam uma gasosa ou uma cerveja.
Não faziam gastos nenhuns. Isso surpreendia-me porque como é que uma pessoa
assim conseguia viver sem gastar o que quer que fosse.
O
nível cultural dos meus colegas era muito baixo. Não conseguia manter uma
conversa. Sentia-me imensamente deslocado. Quantas saudades do Mota e do
Quitério. Nos primeiros quinze dias ninguém podia sair do quartel. Depois disso
foi uma debandada geral. Também saí. A estação dos caminhos-de-ferro era bem
próxima. Bem organizada e poderia confessar bem bonita, bem asseada, muito
convidativa devido aos vasos de flores. Várias vezes aqui me sentava nos
assentos disponíveis e aproveitava para ler. Próximo, era a avenida principal
ladeada por uma montanha. Para um recruta pouco mais havia para onde ir. Posso
assegurar que era uma cidade bonita e pacífica. Em frente ao quartel os
arruamentos eram de pedra calçada muito bem conservados. As vias principais
eram asfaltadas.
O
único colega com quem conseguia manter algum relacionamento era o Dário, mas
não podia aprofundar as conversas devido às suas limitações. Um vizinho da sua
terra natal também recruta constituiu motivo de curiosidade, porque achava
difícil dois vizinhos serem incorporados na mesma unidade. Eram de uma
rivalidade confrangedora. Passavam o tempo a dizer mal um do outro. Quando me
dei conta já era confidente de ambos. Passavam o tempo nisso. Cheguei ao ponto
de já não os poder suportar. Evitava-os a todo o custo. Mas num ambiente tão
fechado em que éramos obrigados a estar e conviver, constituía um exercício
insuportável. A minha mente sofria com tal perturbação.
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