Já estava completamente restabelecido, e alguns
colegas que vieram ver-me disseram-me que tive sorte porque adoeci no fim da
especialidade. Caso contrário teria que a repetir. Aliás esse era o meu receio.
Como havia um enfermeiro que nos facilitava a vida a troco de uma gorjeta
apeteceu-me beber cerveja, que aqui era a Super Bock, que podíamos afirmar era
a cerveja nacional do Porto. Também pedi um prego. Quando a encomenda chegou,
depois de comer e beber senti-me quase como novo. Impacientemente aguardava o
dia da saída, o que aconteceu. No regimento fui informado dos últimos
acontecimentos. Dentro de poucos dias acabaria a especialidade. Depois disso
seria enviado para outro local. Entretanto veio a ordem de mobilização. O meu
destino seria Angola. Mas antes faria parte de uma companhia que já estava a
ser formada em Santa Margarida.
Dupla ironia do destino. Santa Margarida ficava
próximo do Tramagal. Antes enviei uma carta à Belita. Aparentemente mostrou
satisfação, mas eu mantinha as minhas reservas. Apesar de tudo era minha prima.
Dir-se-ia que a proximidade era para me despedir dela. A outra ironia era o
Mota para Moçambique, o Quitério para a Guiné e eu para Angola. Será que a Pide
sabia do nosso relacionamento e enviou cada um para um local distante para que
não pudéssemos estar juntos? Ou foi apenas mera coincidência? Talvez que nunca
o saiba.
Mais quinze dias de campo a viver em tendas para
nos prepararmos – como diziam – para a guerra em Angola. Despedi-me da Belita e
do seu namorado, que sabedor da nossa relação não a deixava um só momento. Ele
evitava falar comigo. Na presença da minha tia durante um momento em que
estivemos sós, ela chamou a atenção da Belita dizendo que não gostava nada dele,
e que me preferia. Que não iria dar muita atenção a esse homem porque era muito
maldoso.
Acabadas as despedidas o navio Vera Cruz estava
atracado, à nossa espera para mais uma viagem rumo a Angola. Fui promovido a 1º
Cabo radiotelegrafista devido aos testes finais. Antes fui à praça do Cais do
Sodré e comprei uma grande quantidade de caracóis pequenos e grandes, - as
caracoletas - os orégãos e uma caixa de camarão que pessoalmente cozinhei para
todos, como sendo a despedida final.
O meu pai e a minha mãe faziam questão de ir ao
embarque. Recusei e expliquei que isso me entristeceria muito. De facto quando
o Vera Cruz lentamente iniciou as manobras para se libertar e encontrar mais
espaço para navegar, uma multidão na amurada saudava com lenços brancos
agitados ao vento, no que era correspondida por outra em terra. Isto fez-me
lembrar os navios bacalhoeiros que partiam na sua faina para a pesca do
bacalhau.
Soube depois que o destino em Angola era São
Salvador do Congo. Mas não era verdade. Por motivos de segurança quando se
questionava o nosso destino a resposta era essa. Confesso que gostaria de ver
os meus pais em terra. Não resisti e as lágrimas vieram-me aos olhos. Será que
nunca mais os verei? Uma grande tristeza se apoderou de mim. Quando voltaria a
ver a minha acolhedora casa? Os meus irmãos e irmãs? Os meus amigos? Enfim,
tudo abandonado pela força das circunstâncias. Até quando? Mas que mal fiz eu?
Apenas pretendia estudar. Ler muito e com isso satisfazer as minhas dúvidas
constantes. Sentia-me muito feliz com isso. E para onde ia não existiam livros.
Os dias passavam e o Vera Cruz prosseguia a sua
rota. A bordo nada havia de realce a assinalar. A rotina era confrangedora. Um
dos nossos furriéis informou-nos que quando chegássemos à zona do Equador
sentiríamos a mudança devido ao calor. De facto assim foi. O calor instalou-se
a bordo. Quanto mais navegávamos mais sentíamos o desconforto, devido à
humidade que se colava nos nossos corpos. Luanda estava próxima.
CAPÍTULO
IV
A GUERRA
Luanda,
Angola 9 de Agosto 1971
Atracámos. As escadas fazendo lembrar uma ponte
levadiça desceram. Enquanto poisávamos em terra, algumas senhoras do Movimento
Nacional Feminino ofereciam-nos um estojo composto de um isqueiro, que era
famoso pelo nome –Ronsom da picada – um pincel e um tubo com creme para a barba
e algumas lâminas que cortavam tudo menos a barba. Depois de uma curta viagem
até ao Grafanil ficámos à espera do MVL-Movimento de Viaturas Ligeiras,
efectuado por civis que em camiões nos levariam ao destino. As camas eram de cimento
quase ao ar livre. O desconforto era evidente.
Os camiões chegaram. Mais uma viagem. O destino
era Quibala do Norte. Fui num camião junto com a minha bagagem. Arranjei um
local para me sentar em cima da carga. Instalei-me o melhor que era possível. Parámos
no Caxito. Fiquei surpreendido com a quantidade de crianças que nos pediam
algo. Atirei-lhes com alguns pacotes de bolacha da minha caixa de ração.
Prosseguimos viagem. A paisagem até ao destino tinha capim muito alto. Vi pela
primeira vez os misteriosos embondeiros. O asfalto já terminara, passámos por
mangueiras cujos ramos batiam na viatura. Aproveitei e colhi muitas que ia
comendo pelo caminho. Agora eram picadas que constantemente faziam baloiçar o
camião. Continuar sentado tornava-se um incómodo. À medida que penetrávamos
pelo mato denso comecei a pensar que estávamos em terra de ninguém, porque não
se divisava nenhuma habitação nem ser humano. E se rebentasse alguma mina? Ou
podíamos ser atacados porque este local era ideal para isso. Instintivamente
segurei com mais cuidado na G3. Concentrei-me nos barulhos e nos movimentos da
vegetação. A viagem nunca mais acabava. Ia literalmente todo partido. Muito
cansado. Finalmente chegámos. Durante um horrível ano esta seria a minha nova
casa.
Imagem: Fiorella Matteis
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