A ideia com
que se fica da actual hereditária governação é a de um treinador, e a população
os jogadores. Quer dizer, Angola ainda não é uma nação, é um estádio de
futebol. Só que a população continua muito mal treinada. É por isso que Angola
acumula um infindável rosário de derrotas a todos os níveis. A derrota da
miséria é o exemplo mais ultrajante, apesar das receitas do estádio
petrolífero.
Sim, claro
que para qualquer país não é muito difícil organizar o campeonato mundial de
futebol. Dinheiro não falta, até abunda em demasia. Os milhões
gastos nos estádios de futebol recuperam-se rápido. Porque os crentes gastam
até ao último centavo, penhoram ou contraem empréstimos para assistirem aos
pontapés nas bolas. Agora organizar o campeonato mundial das universidades, ou
o campeonato mundial da luta contra a corrupção e a miséria dela resultante,
isto sim é imensamente complicado de realizar.
Destaca-se uma grandota que
milagrosamente acessou jurisdição universitária. E advoga o Direito
Natural:
- Estás feito com os Ufolos, né!? Já
vais ver!
E celebrou voz
de comando latinizado.
- Argumentum baculinum. Quero dizer: chega de conversa,
cacete neles. Vai ser pior que as
Termópilas. Minhas queridas… A ELES!!!
E caiu uma chuvada
que alagou as caras policiais com chapada. O oficial, o inimigo
principal, foi o eleito da discórdia.
Desabaram-lhe trovoadas de cacetada e
socada. A policiada desprotegida manobrava as mãos,
defendia-se por instinto.
Apelar às armas
virou impossibilidade porque o esquadrão feminino
mantinha-se em guarda. Atentamente
desarmados pelas corajosas, derreados e
aterrados solicitaram forças aos membros inferiores.
Ao levantarem para debandarem, a jurisdicional
invocou a voz do mulherio da Revolução Francesa:
- Só mais um! Só mais um!
Acobertadas de glória
pelo término favorável da batalha
no gueto, olhavam sem
horizontes para
os destroços vendíveis. Escapulidas no recomeço
da luta sem
alternância, sugeriu-se o inventário dos acontecimentos:
- Não dá para conferir. Num bairro onde ninguém gosta
de confusão, repentinamente
vem à tona mais
um episódio
da Guerra de Tróia.
- Nunca se
investiu, instituiu tanta fome como nestes tempos
badalados, baldados. Muitos guetos sem futuro, como este, serão os formigueiros que
alimentarão o reencontro inexorável da Guerra
de Tróia. Os esfomeados não temem a morte, ela
abastece-os regularmente com cestas
básicas aeriformes, de fomes. Está sempre latente nos corações a revolta candente.
Será uma grande revolta
mundial, juridicamente universal. Quem a impossibilitará de terminar?
Não haverá muralhas,
fossos, mares
que lhe
resistam. Multitudinários esfomeados mutados em
baratas, moscas,
ratos. Afasta-se um,
vem dois, três.
Assim falará o próximo salmo da nova Guerra de
Tróia.
- Deve ser por isso que os romanos
não gostavam de Cartago.
O barqueiro
Caronte reservava uma barca, sempre preparada
para singrar no rio Idas. Levava nas ondas os restos
das almas dos ousados
sábios ou
opositores. Erradicara-se definitivamente qualquer
manifestação de sabedoria
ou oposição.
Os Politburo nasciam sábios, congeniais
autorais. Dominavam, fustigavam as epístolas
da oposição. Mas
os trovadores, exilados internos sem mácula pedravam letras.
De chofre aparecia-lhes o barqueiro Caronte, esfregava as mãos
de avarento, e inquiria se havia almas para as Idas. Se respondiam, por
enquanto ainda
não, Caronte impacientava-se.
- Não brinquem com a ludologia. A política
não é arte de
cartomantes. Daí não
advém futuro. Da outra
Revolução Francesa que
há-de vir, enviam-me muitas almas.
Sempre foi assim,
sempre assim
será.
Os Politburo subiam os degraus do poder
sem esforço.
No altar cultuavam as vastas sobremesas das multidões
sem história.
Que de mãos
estendidas, flácidas, migalhavam o culto
da fome. Tudo
é composto de convicção.
- Não há
nenhuma revolução que
nos vença, que
nos convença, ou
que nos
tire do lugar. Governamos demasiado, porque
o tempo só
conta enquanto
estamos vivos. Governamos mal? Os acólitos
aplaudem-nos pela boa governança. Outros povos, especialmente este
que dirigimos, os Jingola, envolvem-se,
deixam-se levar na felicidade
que lhes
prometemos nos discursos
de fim de ano.
Antes viviam na extrema
escravidão, hoje
estão libertos. É verdade
que existem alguns
constrangimentos, mas
o sorvedouro dos milhares
de leis decretadas solucionarão a emancipação dos povos.
Finalmente a miséria
acabará, atingiremos, bateremos as metas
dos recordes do desenvolvimento.
- É?! Acontece que
fiz um grande
investimento na compra
de duas mil barcas e muitos barqueiros
para as conduzirem, que
correm o risco de perderem os empregos. Não estão a cumprir o contrato, exijo indemnização. Arranjem aí umas epidemias,
esquadrões da morte, matanças de criminosos, qualquer coisa…
não se sobrevive sem
cadáveres.
- Velho Caronte,
não escorregue, cadáveres
não faltarão. Fique calmo
que brevemente
tombarão outra vez
mil por
dia.
- Não acredito em tal maldição! Vão fazer outra revolução?
- Nem tanto a Norte… vamos fazer outra guerra mais devastadora.
- Pendo dessa garantia.
Importa-me que cumpram as normas contratuais.
- É verdade que demasiamos a honrar
os nossos compromissos,
mas quando
os lesados nos pressionam, vasculhamos a papelada e
accionamos o pagamento. Só
trabalhamos debaixo de pressão.
Somos como uma locomotiva
a vapor.
- É!.. São bons crentes,
confiam na divindade que
rege o Universo. Naquele que é a origem
do cadinho, que
nos criou, nos
originou. Sois os Politburo que aceitam um só deus mas
que seguis as doutrinas do feitiço. Tudo é decidido e explicado pelo feitiço. Concedo-vos prazo
de mais de trinta anos para
acabarem a contenda. Depois exijo que
façais eleições senão…
- Senão o quê?!
- Altercarei a dívida
com juros
muito pesados. O vosso
corpo será mais
pesado que o chumbo e não o podereis suportar.
- E perdidos nos
encontraremos desarrumados. Malditos gregos que inventaram a democracia e mais
as eleições.
Os Jingola acessavam uma emissão
de rádio, onde
amiúde proclamavam, desabafavam vicissitudes incomensuráveis.
Apesar dos esforçados Politburo para a silenciar, ela resistia bravamente.
Era o rumo
dos sem rumo,
assim divinizavam a Rádio
Oráculo. Alguns
casuístas comparavam-na a Asterix o Minigaulês, que
resistia arrumado, aprumado num cantinho
sombreado da mafumeira. Os Politburo
rabulavam que a Rádio
Oráculo era o
seu calcanhar
de Asterix. Os circuitos dos
telemóveis mais íntimos da governação
paladinavam que era
o calcanhar da função
do real.
Jingola propagandeava a epidemia
de cólera que militava com muitos aderentes para o interior do reino.
Como praga
ratada sem navios
mercantes. Frechei-me com grande constrangimento: ninguém
ousa explicar que
a principal causa da cólera… é a fome.
A epidemia cadastrou até ao infinito
KK de Jingola. A Rádio Oráculo
solicitou anuência para
implementar o seu
feixe hertziano
a todos os ouvidos
Jingola, para que
as populações se informassem,
acautelassem, sanassem a epidemia. Os Politburo liminarmente recusaram. Cartaram, selaram,
pergaminharam para a Rádio
Oráculo.
Reverendíssimas Excelências
da Rádio Oráculo:
Havemos um contrato com o barqueiro Caronte. A epidemia
da cólera faz as vítimas
suficientes, as almas
que o barqueiro
necessita a contento. Sentimo-nos felizardos. Se o sinal
da vossa fé
se digladiasse pela rádio
e por toda a Jingola se espalhasse, não cairiam vítimas
da cólera. Contamo-nos peremptórios firmados, e esse
vosso pretenso
vento é… não aceite. Alvejamos a certa
teologia do querem ir
mais longe,
para além das
redondezas, dos limites
de Delfos. As distâncias curtas por vezes
tornam-se longas. Permitimos que
funcionem devido à frequência democrática que
nos foi imposta.
Encetámo-la no compêndio das contrariedades.
Estendemos-lhes um
dedo, agora
querem a mão, depois
o corpo. Para convencer
que somos democratas anunciámos que se realizariam eleições.
Notem bem: que
se realizariam… em qualquer
momento, em
qualquer época.
Tudo depende da nossa
íntima vontade.
Não é a claridade
de qualquer oráculo
que nos
leva ao cume
solar e eleições datar. Uma coisa é incerta: o princípio
da incerteza eleitoral.
Os nossos insignes
patrulheiros e marinheiros vigiam atentamente
as proas do vosso
ecletismo. Pretendem entreabrir
a janela da noite
escura para a missa
de manhã. Fazer
muita luz para
jorrar nos
espíritos, com tanta vela por aí à disposição. Estamos à vela.
Abundantes Saudações Revolucionárias. Jingola, Frimário, Ano II. Ano da Vida
Incerta.
Resposta da Rádio
Oráculo:
Depois de consultado, o Oráculo
revelou-nos:
Parafraseando o ainda perfume opiado, marxista de
Bertolt Brecht, acertemos: temos governantes que
são corruptos
num dia, e são
bons. Temos outros governantes
que são
corruptos durante
um ano,
e são melhores.
Temos outros governantes que são corruptos durante
muitos anos,
e são muito
bons. Mas, há outros
governantes que
são corruptos
toda a vida…
esses são
os imprescindíveis. Assim como se mutam
os climas, também se mudam as tempestades. Tudo
é composto de ciclones.
Injectadas saudações. O Directório. Jingola, 9 Termidor. Ano da emissão da nossa
Rádio a todo
o Reino.
A ponte
projectava magnitude louvável. Debaixo, uma multidão
de pilares humanos
olhava com altitude.
No tabuleiro em
cima, um
jovem mimicava, distendia continuamente
as mãos. Chegavam, juntavam-se mais olhares.
Davam-se alvitres e palpites.
Explicar porquê,
ninguém conseguia, sabia. Alguém mais palpiteiro azedava que
ele era
maluco, drogado.
Um alvitreiro
tinha a certeza
que era
um actor que
filmava uma cena para
a telenovela da TPA nacional, de Jingola habitual. Ele
desacelerou os acenos, elevou as mãos ao céu e num sacerdócio
pregou a vaidade da verdade:
- Fui um grande lutador… sempre
até ao último
momento. Não
engulo esta vida de miséria,
de fome, porque vejo os Politburo a comerem tudo. Até uma ilha pequenina,
aquela lá no Futungo, a filha da FAMÍLIA vai comprar (?). Verdadeiramente é
agora… isto é que é o verdadeiro colonialismo, o outro era de brincar. Pois…
não consigo estudar,
não há emprego, fui corrido pelos
chineses que acabaram agora de sair das cavernas. Os Politburo desvivem-nos,
cortam-nos os anseios, as asas… ó singular
desesperança! O barqueiro
Caronte espera-me. Não terei ninguém para me colocar as moedas nos olhos.
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