O assalto a
uma empresa rendeu-lhe cerca de quatro milhões de kwanzas, mas alguém anotou a
matrícula da motorizada do jovem assaltante. Não foi difícil a sua localização
pela polícia. Dois indigitados fardados vão na missão do cumprimento do seu
dever. Na morada onde a motorizada estaciona abordam um jovem que se identifica
como sobrinho, que bem aprisionado desvenda o esconderijo do tio assaltante. Os
polícias capturam-no, encontram o dinheiro e livres de testemunhas enchem-no de
balas. Depois na esquadra relatam que mataram o bandido porque ele
resistiu-lhes com bravura. E o comandante quis saber do dinheiro, claro, e
eles: «não vimos, não sabemos de nada, o dinheiro desapareceu».
Na senzala, as
senzaleiras espevitam-se. Elas e os ratos naufragam na pequenez
da ruela esfrangalhada. Uma senzaleira sem
tempo para se
coçar, encosta-se no restante tapume.
Concerta a carapinha,
ajeita o pano, enxota as moscas com a vassoura de mateba. Apela
excitada:
- Que vergonha meu Deus! Ó caçulinha da mamã traz a escova
e a pasta de dentes!
Vou entrevistar-se na rádio!
À velocidade de
super-mulher os dentes cariados são escovados. O dentífrico não
cumpriu a sua missão porque não se
notou mudança no alvar
dental. Era de fabrico ocioso, clone
chinês. O repórter batia com o pé no chão, pressionado pelos
estúdios que
queriam e não sabiam se deviam despejar o saco da publicidade para o vácuo. A dama
encima o hálito renovado no microfone.
- Prontos!
Posso dentar!
- Minha senhora, bom dia!
- Sim,
bom dia!
- Como
se chama?
- Teresa Maka.
- Tanta
comoção, porquê?
- Desde as quatro matinais
que estamos com
isto, desconseguimos mais nos dormir.
Estampa-se tiroteio.
A ruela força-se, abala-se com a rusga pessoal e
impessoal. Os desordenados saltam como coelhos na
demanda das luras,
perseguidos por caçadores do defeso. A senhora, à fula exclama maldizente:
- Ah, já chegou
a política Politburo!
Os perseguidores dos ideais
da lei, homens
nascidos, crescidos, educados e com históricos tiroteios
contínuos rebaptizados, calejados nos
dedos indicadores, movem-se como gatos retesados de salto
sobre os ratos.
O oficial, aprumado,
nivela por baixo
o zelo da leitura
dinâmica da lei.
Tem o hábito de perguntar.
Sem perguntas,
sem interrogatórios não
é possível cumprir
a lei. Interroga a Teresa Maka que está com a esperança renascida.
- Esse estupefaciente está drogado?
- É… é memo!
- Está a tirotear
assim porquê?
- Quando
engatilha, diz que se liquida.
- Inda não se matou? É pena!
Os polícias
estão oásicos, agradáveis, bem acomodados em seguras trincheiras.
Não intentam ofensiva.
Teresa Maka exaspera-se:
- Estão a me estressar,
avancem, lhe apanhem!!!
- Estás maluca
ó quê? Não
quero ser balado!
- Ah, afinal vocês têm medo da
pistolada?!
- Absolutamente!...
Sim… não…
não é isso…
estamos à espera que
o gajo se distraia, ou
adormeça, depois enchemo-lo de buracos. Garantidamente que
tem o tempo contado, não se lembrará do registo de nascimento. Lembrar-se-á
do dia em
que morreu.
Mentor, social
e religiosamente aprecia factual:
- É a civilização
da bala no cumprimento
do seu destino.
O mais fácil
que existe, e não
são necessários
cursos, escolas,
universidades… é carregar no gatilho.
A nossa civilização e as nossas vidas dependem apenas
de um dedo
encostado no gatilho de uma arma. São as armas que
decidem o nosso futuro.
Qualquer de nós
arrisca-se a cada momento
no mau caminho.
Sem humanismo a vida
não tem sentido.
Os nossos sonhos
dourados, desejados, desaparecem nos anseios de um qualquer com qualquer
arma.
Onde há muitos seguranças é porque
há muita insegurança.
São estátuas
humanas empertigadas para segurar
o que se rouba,
o que não
se dá aos esfomeados. Parei junto a dois
deles, ouvi diálogo edificante.
- … Filmei tudo!
Mandaram-me lá fazer
serviço de emergência
nessa noite.
- Põe no play.
- Porra! Custa aceitar.
- Oh, fala
lá meu!
- Nunca pensei ficar assim destoado.
- Que coisa? Já estou
desassossegado!
- Foi na Ilha de Luanda… casais… de marido
e mulher. Elas
afastavam-se, a porem os pés na estrada,
como leoas berrantes
que atraem a caça
noctívaga. Os carros paravam com olhos de lince, surripiavam uma, o marido
esfregava as mãos de contente, aclamava feliz: «já levaram a minha!
Já levaram a minha!».
Quando a outra
se contentava, estava com sorte, o consorte
rejubilava: «Hoje vou encaixar
cerveja!». Elas
faziam rapidinhas o serviço social, e entesouravam nos
maridos.
- Eh! Eh!
Bem feito!
Acreditámos nas promessas do Politburo…
vamos enfastiar-nos de colonizadores.
- Ó meu, novos colonizadores novas
linguagens.
- E eles sabem falar a nossa língua?
- Não! Temos que aprender a língua deles.
- E vamos ter tempo para estudar
tantas línguas?!
- Para quê?
Temos a linguagem corporal.
Para ferverem as mágoas
do sistema nervoso
central, cumpliciaram numa bebida transparente que uma
vendedora esquinava.
- Senhora, passa aí duas bombas.
São dois saquinhos de plástico transparentes.
Bem visíveis
saltam letras maiúsculas:
Bad Whiskey. 43% Volume. Rápidos, entornaram a uíscada pelo
túnel estomacal.
O lirismo invadiu-os. Descolaram mais dois saquinhos que emborcaram. Os desejos
reprimidos extravasaram.
- Porra pá! Esta merda é demais!
- Puta que o
pariu!
- Hum, se alguém
me chata,
vamos se matar!
- Apetece-me uma pistolada!
- Eu também!
- Vamos se torrar!
As palavras espumavam
bucais nos
antes pacatos
servidores dos bens
alheios. A desfaçatez
estonteou-os.
- Ó senhora, bombeia mais dois. Pagamos amanhã.
- Já
estão admirados, desestruturados, os olhos
orbitados… não vão
reassegurar a empresa?
- Quero lá
saber da empresa!
- Vamos se encostar
no quarto mundo
do passado, no presente,
sem futuro.
As minhas
passadas seguem o habitual
ritmo compassado
da luta continua… do cantar
de José Afonso:
Ó cantador
alegre
que é da tua alegria?
tens tanto
para andar
e a noite
está tão fria
Degeneração moral
é vista como
inevitável na ausência
de controlos sociais contra ganância
e competição. William Golding
O homem
aprendeu a dominar, a piorar,
amarrou a Natureza. Julgou-a como um banco de fundos
ilimitados. Saques, saques
a fundos perdidos. Finalmente
abandonou-a, divorciou-se, desamou-a. A Natureza
domina o homem, ele
surge nela como planta
daninha. Está a mais,
não faz parte
da equipa. Deus criou os homens para divertimento.
Sorri, vendo-os exterminarem-se com as armas que todos os dias
inventam. Hipocritamente inventaram a esperança,
a espera contínua
da morte. Dizem carregados de profunda
maldade, que
é a ultima coisa que
resta. É a maldade
sem limites.
Matam e depois choram os mortos.
Oh, esta saudade,
esta tristeza do alvor da
perdida Natureza.
Para quê tantos instrumentos
sofisticados, se basta observar
formigas para prever as inclemências do tempo
que nos
desassossegam.
Desentendo porquê
os seres humanos
estão sempre muito
ocupados. Falta-lhes tempo para observarem uma árvore.
As religiões
estão ultrapassadas, nada mais têm a desdizer, temos que as substituir por aquelas que
amam a Natureza.
O alarde
altipotente: vamos trabalhar, viver,
conviver diariamente com a hipocrisia
e a vigarice? Não
é possível desumanizar
assim! Temos que
refutar, reabituar,
resgatar a insolvência da nossa
sobrevivência. Lutar
antes do entardecer.
A limpeza de alma
da Natureza ciclicamente destrói os homens. Poupa alguns
para recomeçar o ciclo do deixar o circo pegar fogo. Os elementos
da Natureza conscientizam-se: «eis que retomam a multiplicação,
um nunca
acaba, vão hostilizar,
cometer as atrocidades
anteriores arquivadas no déjà-vu. Quanto
baste, acabamos com eles».
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