«Então meu jovem como é que vai a vida na nossa
Luanda-Somália? Os police continuam a roubar as coisas?» «Não meu kota, os
police estão a roubar as mulheres. Os police mataram os bandidos todos lá no
meu bairro. Agora já se pode andar à vontade às dezanove horas.»
- Instalam aparelhos
de ar condicionado potentes,
os cabos queimam, incendeiam, ficam sem luz.
Insistem, os cabos eléctricos da rua, os fusíveis,
as casas ardem e ainda
insistem
- Dizem que a culpa é do governo.
Moradores em pânico ganham asas,
voam, aterram na segurança da rua.
Exclamam-se em lamentações:
- A minha
ventoinha está a arder!
- A minha
aparelhagem foi-se!
- A minha
geleira ardeu!
- O meu
DVD, acabado de comprar…
- Mentira,
você roubou-o!
- E você,
faz o quê!
- Ó raça,
é fugir, o prédio
parece que vai explodir!
Esperam que os bombeiros cheguem, que
consigam desengarrafarem-se do trânsito e pouco
ou nada
restará. Quando chegarem, e a água que trazem
acabar, não
poderão fazer mais
nada, porque
não há bocas-de-incêndio. Se existissem,
delas não sairia água.
Apesar de duas bocas-de-incêndio institucionalizadas: Dum lado
o inferno do governo,
do outro o inferno
da oposição. Há muitos
incêndios devido
a curto-circuitos. Os Jingola pós-parto são excelentes engenheiros electricistas.
O meu avanço encortina-se por
remoinhos de fumo. Alguém
pegou fogo a um
monte de lixo na tentativa
de o eliminar. Dentro
de pouco tempo
as redondezas serão
engolidas pelo fog lixento. A zungueira solitária
orienta a carne na banheira
solidária. Enxota as moscas, que não se cansam de fazerem ziguezagues.
Alguém não
está satisfeito com
isso e com ela.
- Essa carne
está podre, estragada. Vocês compram-na nos armazéns
dos sênê (senegaleses) por preço baixo,
lavam-na com muito
detergente, põem-lhe muito sal, e
vendem-na como se fosse chispe.
- Ah!.. Você quer-se complicar comigo, estragar o meu negócio?!
O rádio acompanha-os, zune propaganda
plurianual. Cozido
principesco, habitual.
- Vamos criar colonatos e
compramos o excedente da produção,
depois armazenamos em
silos para as épocas
de crise.
Com certeira, matreira convicção,
como anjo
da anunciação que parangonava.
- Os preços do petróleo
sobem muito. Isso
é bom para nós.
E muito mau para nós. – Repicaram os sinos
dos celeiros vazios.
A chuvada
teimosa aligeirou várias famílias.
Expurgadas dos bens, imploravam ao
Altíssimo que reparasse as fugas das águas
dos canos onde Deus
habita. Clamavam por ajuda terrena,
do governo da terra. A expectativa
atenuava-se com a recomendação,
que por
agora não
era possível
fazer nada, porque existiam situações
gravosas.
O dirigente terreal solenemente
desvenda aos rostos desabrigados a
recordação da inundação.
- Antanho aqui florescia magnificente
eucaliptal. Um
dique providencial,
que segurava, desviava, acorrentava a correnteza das águas.
Sem apelo
arrancaram-nos, das suas carnes postaram negócio.
Acenderam carvão para
cozinharem e para venderem.
A rabugice da idade
anciã sem cidadania
também se desabriga.
- A luz da terra prometida tarda.
Não podemos conservar
comida. Arrancámos só
alguns eucaliptozinhos para
apoiar a nossa
deglutição.
- Os nossos venerandos amigos
chineses instalaram os cabos eléctricos.
Acabaram o trabalho, os Órfãos roubaram tudo. Acabou-se a celestial
iluminação.
- Ser independente
é o quê?! Escravos independentes
é o quê?! Somos escravos, donos do nosso destino… como os
cães.
A informação
disseminava a antologia da cólera.
Os Jingola sem luz,
sem dinheiro para pilhas, não tinham acesso
às ondas de Hertz.
O tempo colava-se, escoava-se na atenção constante
do vender subserviente. A
cólera impava pela
atenção emprestada. Os direitos de superfície
catapultavam longânimes. A principesca informação
minoritária aplaudia o defeso contra os
desterrados. No fim do dia a fome em sociedade com a morte
cobra a dívida, faz o balanço da mortandade.
Os números mortais das epidemias, das fomes,
deixaram de impressionar. Deixam motivos para a soberba se alegrar. Muitos rios a reinar, muita água, muita gente a morrer de cólera, porque não tem água. Aprofundam-se as caves
do poder mas, temos fórmulas para o deter.
Junto do banco
de urgência do hospital,
as pessoas abandonadas pela
independência aguardam pelos seus familiares
doentes. Dormem dementes, dependentes do
chão, em
papelões. Produzem aparas, restos
de comida, fezes, urina.
É que reconstruíram o hospital, esqueceram-se dos sanitários externos.
O administrador desata-se:
- Já lhes disse para saírem
daqui. Parece-me que são surdos, ou simulam. Todos
os dias nisto… já
estou cansado. Não
sei que gente
é esta, quanto mais
lhes falamos, fazem pior.
A nossa população
não está preparada
para viver em
sociedade. Nem
com um
exército de seguranças
consigo impor-me.
Ruas com condutas de água
rebentadas jazem concorrência desleal aos reservatórios
de água instalados no céu. Se acabassem os charcos,
lagos imundos,
ruas lamacentas, purulentas, as crianças ficariam infelizes,
sem estes
jardins infantis. Ilhadas, neste campo
bem concentradas.
Chove, as pontes paliativas desabam e reinauguram-se. A travessia do negócio
é ágil. Quando passar
pelo grande esgoto, estarei mais
ou menos
a meio do caminho
até Tule, ali para os lados de Viana.
Algumas zungueiras desesperadas movem a leveza
das bacias vazias.
- Ai minha irmã!.. que
será de nós. Os lagos
onde sai o cacusso… o peixe, estão contaminados com
a cólera. Vamos passar
fome!
- É mentira deles, querem
roubar-nos o negócio.
Disfarçam a tristeza com caudais de risos naturais,
sem beneplácito.
De repente desencaixam-se, piram-se,
entrecruzam-se. A fuga de novos rumos
desperta. A tenaz da conspícua lei
do Politburo acerca-se. As sobras dos seus panos
arrastam-se pelo chão.
Na atrapalhação as crianças são atiradas
de qualquer maneira
para as costas.
As bacias e as chinelas
parecem fugir-lhes das mãos e dos pés. Uma nuvem
de poeira misturada
com lixo
levanta-se. Parece um ciclone ou um tremor de terra. Fiscais e polícias trazem a aparição
da grei triunfal… a perseguição.
Elas usaram um estratagema surpreendente.
Discorreram, correram para um
lago da chuva.
Pararam quando a água
lhes subiu por
cima dos joelhos.
Estavam… como se aguardassem o baptismo
no rio Jordão. Os filhos
às costas, as bacias
nas cabeças, olhavam sorridentes, desafiadoras. Estavam num excelente
refúgio. A fiscalidade e os polícias desistiram, sem
coragem para a aventura. Receavam baptismo de água
impura.
O assédio
terminou, elas fizeram algazarra por mais uma vitória conseguida. A guerra
da fome é injusta,
desigual. Elas
voltariam a lutar contra
o atrevimento da fome da comida e da
ditadura.
A nossa luta continua, com
os olhos quase
sempre no chão.
O que resta
das ruas e das armadilhas dos buracos, que
parecem ter acontecido uma imensa
chuva de meteoritos.
Os pés têm que
ser muito
cuidadosos. Alguns afogaram-se, apareceram cadavéricos
nas covas aterradoras.
Uma grande agitação surgiu. Para aí uma dezena de cavalos de Tróia metálicos,
cavalgados por guerreiros
fortemente armados. Desmontam, assediam
as desmuradas casas. Os Jingola imploram
o nome do rei… em vão!
Fogem das tocas, do desmoronamento
marcial. A conspurcada demolição teve efeito, o pretexto
de que são
necessários hotéis para
alojamento de turistas. Habituados ao pavor libertador,
há quem escarneça.
- É para alojar
os ratos de hotel
deles. Caminhamos, outra coisa
não se vê.
- Com tanta espécie
de ratazanas mundiais aqui apontadas, dá para construir um museu de mastozoologia.
A derrota da democracia segue frígida,
sem eleições.
Como o cavalo,
trota, salta. O cavaleiro
medieval instituído catapulta.
Os reinantes
emanciparam-se com a produção
petrolífera. Para
sobreviverem, os Jingola emanciparam as suas
esposas. Elas assumiram, dosearam com estoicismo
a hercúlea irresponsabilidade
do deus protector das lareiras. Heroicamente inventaram qualquer
coisa para venderem.
Tresmalhadas, conseguem comer algo
durante o dia,
à noite não.
Sacrificadas, obedientes à fome, superaram casebres,
compraram geleiras a prestamistas, ventoinhas
para silenciar, afastar a mosquitada. Ganharam grande amizade com a fome, para adquirirem o martírio
de assistirem à programação da TV
Jingola, e a ilusão da paixão sentida
das telenovelas. Aparelhagem
para dançar, batucar. Dependiam da má vontade, da arrogância, da ganância
dos reinantes, do gosto
de ver tudo
às escuras. Perdiam episódios
novelísticos, devido às intermitências voltaicas, e desgarravam-se.
Os Órfãos das guerras do regime apertavam vigilância. Movidos pelo apetite voraz dos pertences de outrem,
esgueiravam o ónus das pias Jingola.
Eram vãos os protestos.
As almas-danadas pedravam.
- Tudo
confiscado. Vocês compram, nós roubamos. Não
se incomodem com os prantos.
Uma jovem
desbloqueia-se.
- Tudo
surripiado. Nós compramos, vocês levantam. Calceteiros
na terra de ninguém.
Os Órfãos habituados, nascidos, crescidos,
desenvolvidos nas guerras da negritude estalinista não debandaram
sub-repticiamente. Foram-se como se
saíssem dos seus pardieiros.
A multidão desacoita-se, amontoa-se às dezenas, centenas.
Duas moçoilas desalinhadas requebram-se.
- Foi a polícia
do Fouché, do Estaline?
- Sua
parva, pensas que
estás aonde? Foi a política
dos Politburo.
- E há alguma diferença?
Um embriagado e recém-chegado pelos
dotes da rapina
neocolonialista saúda:
- Não queremos casebres! Não queremos casas de chapas! Não queremos
palhotas! Vivam as casernas dos Lares
Patriotas! Vivam os da Nova Vida! Vivam os Zangados!
Protestos impopulares são enviados.
Uma onda vozeira ecoa pelos retintos labirínticos. As tolas entontecem.
- Não queremos
casernas? Não queremos cavernas? Viva
o ar milionário da Ilha do Cabo? Viva a má vida?
Então querem o quê!?
A foto é a da Nova Vida e das suas centralidades no Lubango, Huíla.
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