sexta-feira, 26 de junho de 2015

O PARAÍSO PERDIDO A OCIDENTE (16)







Para trocar ideias tentei algumas vezes aproximar-me de algum oficial, mas desisti. Era proibido, mórbido, um oficial manter relacionamento com um recruta. Na cantina não havia televisão. Livros, revistas, biblioteca eram impensáveis. O fundamental era manter a soldadesca na ignorância, no embrutecimento. Nalguns fins-de-semana quando me dava conta estava só. Todos saíram. Tentava apanhar uma boleia perguntando aos meus companheiros se havia um lugar disponível para Lisboa. Mas não, todos os lugares estavam ocupados. Outros iam para a estrada e tentavam boleia, conseguiam. Não tinha paciência para isso.

Tentava adaptar-me a esta nova vida que me foi imposta. Mas por mais que tentasse não conseguia. Ia à cantina, comprava uma sandes com algumas rodelas de chouriço. O pão era bem confeccionado e o chouriço muito saboroso, melhor do que o de Lisboa. Acompanhava com uma gasosa e enquanto comia meditava na minha mãe, no meu pai, nos meus irmãos. Quantas saudades sentia do café do Frederico, do Mota, do Quitério. Aqui uma grande tristeza me invadia. Sem ninguém para conversar. À medida que a tristeza enchia o meu coração, sentia grande revolta, e pensava: Mas que mal fiz eu para me enviarem, longe da minha casa para aqui? Que tinha eu a ver com as aventuras dos senhores da guerra? Quando terminaria este pesadelo? Quanto tempo mais demoraria este sonho horrível? Mas o que é que eu estou aqui a fazer? E a Belita, tanto tempo sem a ver. Será que a veria mais? Algumas lágrimas começaram a inundar a minha face.

- Olha. Mandaram-nos formar para fazermos os testes psicotécnicos. – Disse o Dário.
Era uma série de perguntas escritas às quais respondi de acordo com os meus conhecimentos. Pessoalmente pensei que não lhes dariam qualquer valor.
- E amanhã vamos ter tiro real. – Disse mais uma vez o Dário.
Antes da minha incorporação, um alferes que terminou o serviço militar ofereceu-me dois livros do curso COM-Curso de Oficiais Milicianos em Mafra. Um, era, Técnica do Tiro, e o outro falava sobre a guerrilha e contra-guerrilha. Sobre este dei pouca atenção, porque já estava familiarizado com o tema devido às leituras que fazia sobre a guerra do Vietname de Jean Lartéguy. Prestei atenção ao do tiro: Como efectuar um bom tiro: A arma deve ficar bem fixa no ombro. Tira-se a folga do gatilho. Suspende-se a respiração e mira-se o alvo. Se a arma estiver em condições o tiro será certeiro. Foi assim que procedi quando chegou a minha vez na carreira de tiro. O alvo foi devidamente atingido.
- Pelo menos vais para atirador especial. – Profetizou-me o Dário.

Um dos treinos difíceis e que eu mais temia era o corta-mato de 10 quilómetros. Uma corrida que parecia não ter fim. Apesar de estar em boa forma física, fui advertido que os fumadores, o que era o meu caso, não aguentariam. Passado pouco tempo as pernas recusavam-se a prosseguir. Eu e mais alguns já estávamos bastante distanciados. Deixámos de ver os que iam à frente. O aspirante Abreu disputava a corrida com alguns que estavam isolados, antes de serem recrutas praticavam atletismo em alguns clubes desportivos, e o aspirante confessava que não os aguentava. Retrocedeu, aproximou-se de nós e gritou:
- Não passam de umas grandes merdas. Não sobreviverão nos matos do Ultramar quando forem mobilizados.
Mandou parar a corrida e deu voz de descansar. Era isso mesmo que eu esperava. Que grande alívio.
Depois veio a semana de campo. Fomos acampar num campo vasto cheio de eucaliptos. Ao fundo havia um rio. Precisava de passar o tempo. Fazia longas passeatas de investigação ao longo da margem. Isto fazia-me bem, porque durante longos momentos me esquecia onde estava. Quando regressava à realidade para junto dos meus companheiros pensava: Deixa-me lá ir aturar estes parvalhões. Que ordens virão a seguir. Sempre a obedecer a ordens imprevisíveis.

O frio começou a apertar. Acenderam-se fogueiras onde nos resguardávamos. Dormíamos em grupos de três nas tendas. Juntávamos os nossos cobertores para ficarmos mais quentes, mas isso não era suficiente porque a cada dia que passava o frio aumentava. Custava-me a entender o porquê deste tormento. Pois que, nas colónias era ao contrário. Calor não faltava. O curioso é que surgiu um preconceito. Quem se deitasse no meio dos outros dois era considerado paneleiro. Pensei logo que estes tipos são mesmo parvos, e a sorrir decidi aproveitar a ideia. Deitei-me no meio e não passei mais frio, porque recebia o calor dos dois corpos que me aqueciam. Não queria saber que pensassem o que quisessem.
Lembrei-me de uma coisa que o Quitério me tinha contado quando esteve no curso de sargentos milicianos em Tavira. Chamei o Dário:
- Dário queres ouvir esta?
- Conta lá.
- Parece anedota mas não é. Não me lembro bem se era o oficial Robles Monteiro, ou o Esteves Pinto. Bom, era um deles. Quando ia atender o telefone saltava do segundo andar, porque o telefone estava no rés-do-chão.
- Grandes malucos.
- E ficaram famosos pelos estragos que fizeram no Ultramar. Na guerra existe de tudo. É por isso que se chama guerra.
Ouve-se uma voz:
- Vamos a formar. Vamos embora. Acabou a semana de campo.
- Até que enfim, parece que isto nunca mais acabava. – Desabafei.

O dia do juramento de bandeira aproximava-se. Depois alguns de nós seriam escolhidos para tirar uma especialidade. Preocupado vi-me com a especialidade de atirador especial. Como já iria sair velho da tropa, ao menos que me dessem uma especialidade que depois aproveitaria para arranjar emprego na vida civil.
Na parada um frio de rachar. Todos formados para o juramento de bandeira. Já há muito tempo em pé senti que o meu corpo não aguentaria muito mais. Fiquei sem entender o que pretendiam. Seria que nos queriam matar desta maneira? E aconteceu um desmaio. Depois outro e mais outro. Pensei que se íamos morrer, então seria preferível revoltarmo-nos. A cerimónia acabou. A seguir, o nosso destino seria a estação do comboio de regresso a casa onde ficaríamos alguns dias.

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