Para
trocar ideias tentei algumas vezes aproximar-me de algum oficial, mas desisti.
Era proibido, mórbido, um oficial manter relacionamento com um recruta. Na
cantina não havia televisão. Livros, revistas, biblioteca eram impensáveis. O
fundamental era manter a soldadesca na ignorância, no embrutecimento. Nalguns
fins-de-semana quando me dava conta estava só. Todos saíram. Tentava apanhar
uma boleia perguntando aos meus companheiros se havia um lugar disponível para
Lisboa. Mas não, todos os lugares estavam ocupados. Outros iam para a estrada e
tentavam boleia, conseguiam. Não tinha paciência para isso.
Tentava
adaptar-me a esta nova vida que me foi imposta. Mas por mais que tentasse não
conseguia. Ia à cantina, comprava uma sandes com algumas rodelas de chouriço. O
pão era bem confeccionado e o chouriço muito saboroso, melhor do que o de Lisboa.
Acompanhava com uma gasosa e enquanto comia meditava na minha mãe, no meu pai,
nos meus irmãos. Quantas saudades sentia do café do Frederico, do Mota, do
Quitério. Aqui uma grande tristeza me invadia. Sem ninguém para conversar. À
medida que a tristeza enchia o meu coração, sentia grande revolta, e pensava:
Mas que mal fiz eu para me enviarem, longe da minha casa para aqui? Que tinha
eu a ver com as aventuras dos senhores da guerra? Quando terminaria este
pesadelo? Quanto tempo mais demoraria este sonho horrível? Mas o que é que eu
estou aqui a fazer? E a Belita, tanto tempo sem a ver. Será que a veria mais?
Algumas lágrimas começaram a inundar a minha face.
- Olha.
Mandaram-nos formar para fazermos os testes psicotécnicos. – Disse o Dário.
Era
uma série de perguntas escritas às quais respondi de acordo com os meus
conhecimentos. Pessoalmente pensei que não lhes dariam qualquer valor.
-
E amanhã vamos ter tiro real. – Disse mais uma vez o Dário.
Antes
da minha incorporação, um alferes que terminou o serviço militar ofereceu-me dois
livros do curso COM-Curso de Oficiais Milicianos em Mafra. Um, era, Técnica do
Tiro, e o outro falava sobre a guerrilha e contra-guerrilha. Sobre este dei
pouca atenção, porque já estava familiarizado com o tema devido às leituras que
fazia sobre a guerra do Vietname de Jean Lartéguy. Prestei atenção ao do tiro: Como
efectuar um bom tiro: A arma deve ficar bem fixa no ombro. Tira-se a folga do
gatilho. Suspende-se a respiração e mira-se o alvo. Se a arma estiver em
condições o tiro será certeiro. Foi assim que procedi quando chegou a minha vez
na carreira de tiro. O alvo foi devidamente atingido.
-
Pelo menos vais para atirador especial. – Profetizou-me o Dário.
Um
dos treinos difíceis e que eu mais temia era o corta-mato de 10 quilómetros.
Uma corrida que parecia não ter fim. Apesar de estar em boa forma física, fui
advertido que os fumadores, o que era o meu caso, não aguentariam. Passado
pouco tempo as pernas recusavam-se a prosseguir. Eu e mais alguns já estávamos
bastante distanciados. Deixámos de ver os que iam à frente. O aspirante Abreu
disputava a corrida com alguns que estavam isolados, antes de serem recrutas
praticavam atletismo em alguns clubes desportivos, e o aspirante confessava que
não os aguentava. Retrocedeu, aproximou-se de nós e gritou:
-
Não passam de umas grandes merdas. Não sobreviverão nos matos do Ultramar
quando forem mobilizados.
Mandou
parar a corrida e deu voz de descansar. Era isso mesmo que eu esperava. Que
grande alívio.
Depois
veio a semana de campo. Fomos acampar num campo vasto cheio de eucaliptos. Ao
fundo havia um rio. Precisava de passar o tempo. Fazia longas passeatas de
investigação ao longo da margem. Isto fazia-me bem, porque durante longos
momentos me esquecia onde estava. Quando regressava à realidade para junto dos
meus companheiros pensava: Deixa-me lá ir aturar estes parvalhões. Que ordens
virão a seguir. Sempre a obedecer a ordens imprevisíveis.
O
frio começou a apertar. Acenderam-se fogueiras onde nos resguardávamos.
Dormíamos em grupos de três nas tendas. Juntávamos os nossos cobertores para
ficarmos mais quentes, mas isso não era suficiente porque a cada dia que
passava o frio aumentava. Custava-me a entender o porquê deste tormento. Pois
que, nas colónias era ao contrário. Calor não faltava. O curioso é que surgiu
um preconceito. Quem se deitasse no meio dos outros dois era considerado
paneleiro. Pensei logo que estes tipos são mesmo parvos, e a sorrir decidi
aproveitar a ideia. Deitei-me no meio e não passei mais frio, porque recebia o
calor dos dois corpos que me aqueciam. Não queria saber que pensassem o que
quisessem.
Lembrei-me
de uma coisa que o Quitério me tinha contado quando esteve no curso de
sargentos milicianos em Tavira. Chamei o Dário:
-
Dário queres ouvir esta?
-
Conta lá.
-
Parece anedota mas não é. Não me lembro bem se era o oficial Robles Monteiro,
ou o Esteves Pinto. Bom, era um deles. Quando ia atender o telefone saltava do
segundo andar, porque o telefone estava no rés-do-chão.
-
Grandes malucos.
-
E ficaram famosos pelos estragos que fizeram no Ultramar. Na guerra existe de
tudo. É por isso que se chama guerra.
Ouve-se
uma voz:
-
Vamos a formar. Vamos embora. Acabou a semana de campo.
-
Até que enfim, parece que isto nunca mais acabava. – Desabafei.
O
dia do juramento de bandeira aproximava-se. Depois alguns de nós seriam
escolhidos para tirar uma especialidade. Preocupado vi-me com a especialidade
de atirador especial. Como já iria sair velho da tropa, ao menos que me dessem
uma especialidade que depois aproveitaria para arranjar emprego na vida civil.
Na
parada um frio de rachar. Todos formados para o juramento de bandeira. Já há
muito tempo em pé senti que o meu corpo não aguentaria muito mais. Fiquei sem
entender o que pretendiam. Seria que nos queriam matar desta maneira? E
aconteceu um desmaio. Depois outro e mais outro. Pensei que se íamos morrer,
então seria preferível revoltarmo-nos. A cerimónia acabou. A seguir, o nosso
destino seria a estação do comboio de regresso a casa onde ficaríamos alguns
dias.
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