sexta-feira, 7 de agosto de 2015

O PARAÍSO PERDIDO A OCIDENTE (17)



O comboio chegou. Embarcámos, e o Dário disse-me que iria procurar um compartimento com aquecimento. Aguardei, ele veio apressado e disse que tínhamos que ser muito rápidos porque só alguns compartimentos tinham aquecimento, e a viagem seria muito longa. Segui-o, e ocupámos os nossos lugares. O compartimento era muito acolhedor, muito quente. Nem apetecia mais sair só de pensar no frio que lá fora fazia. Mas depois algo aconteceu. No compartimento começou a fazer frio. Devia ser uma avaria. Depois começou outra vez a aquecer. Passado pouco tempo acabou de vez. A partir daqui frio por companhia. Recordo-me quando parámos na estação da Pampilhosa, era gelo por todo o lado. Os carris estavam possuídos de branco. Era a primeira vez que assistia a tal acontecimento real. Em alguns locais alcançava altura de mais de vinte centímetros junto à linha do comboio. A viagem prosseguiu. Como a bordo o frio se mantinha, conclui que desligaram o aquecimento com más intenções. Que outra explicação havia? Pois que ninguém informava nada sobre mais esta desgraça. Acho que era para nos habituarmos a viver nas mais horríveis condições. Não é com isso que as ditaduras sentem enorme prazer?!

Parecia uma eternidade o tempo que passou quando voltei ao Café do Frederico. Muitos jovens que o frequentavam embarcaram no barco sem destino da tropa. A palavra de ordem era: vão para o ultramar e mantenham, defendam o segredo de Fátima e da Igreja. Sem o Quitério e o Mota não via nenhum interesse em permanecer no Café do Frederico. Só ocasionalmente lá ia. Passava a maior parte do tempo em casa, em silêncio, a pensar o que seria do meu futuro.
O meu pai chamou-me e disse-me que iríamos passar o dia na praia de Carcavelos, e que depois de um banho almoçaríamos em casa de um casal amigo na mesma localidade, o dono da casa era colega dele na TAP. Exercia as funções de oficial de tráfego. O meu pai tranquilizou-me dizendo que eram muito amigos. O almoço foi abundante, do tipo, o meu filho vai algures para o ultramar e como não sei se ele voltará, aproveito para me despedir dele para sempre, convicto de que jamais o verei. Terminámos com lagosta… coisa que há muito já não me lembrava. Quem comia lagosta era considerado muito rico. Depois fiquei intrigado quando fui convidado a beber uísque. Não era muito apreciador de bebidas fortes e era a primeira vez que bebia tal bebida. Despejei um pouco no meu copo e bebi como se fosse água. Não senti nenhum efeito, o que me levou a concluir que afinal de contas esta bebida não era tão desagradável como diziam. E bebi mais e mais. Depois dei-me conta que já estava a falar de mais.

Depois dos agradecimentos e da despedida, o meu pai e o seu colega na rua miravam o carro do anfitrião. Também decidi dar a minha opinião. Disse que era um carro moderno. A porta do lado do passageiro estava aberta, enquanto eles continuavam a conversar decidi fechá-la. Fi-lo com tal força que o vidro se partiu. Depois das desculpas necessárias e promessas de pagar as despesas, foi-me dito que não era necessário. Até hoje nunca consegui encontrar explicação para tal acto. Penso que foi devido ao uísque. No regresso a casa os efeitos dos vapores da bebida já se vertiam, batiam fortemente na minha cabeça. O mal-estar era evidente. Fui para a casa de banho e vomitei. Durante algumas horas, com lamentos e alguns gritos à mistura, deitei-me no chão e ali fiquei até que a bebedeira acabasse. Ainda ouvia a minha mãe perguntar ao meu pai, por entre críticas, que ele não deveria ter-me feito uma coisa destas. E que eu não estava nada bem. No outro dia já estava como novo.

À noite durante o jantar, a minha mãe fez-me companhia. Estávamos sós. O resto da família andava algures por aí. Pergunta-me:
- Ainda continuas a escrever à Belita?
A pergunta apanhou-me desprevenido. Fiquei nervoso. Quis explodir em palavras, mas contive-me.
- Sim mãe, de vez em quando.
De facto a correspondência era escassa, porque me tinha tornado apático.
- Cuidado meu filho. Essa gente é muito perigosa. Ela já arranjou outro. Um do Tramagal que tem algumas propriedades e deve ser por isso. Não ligues mais a essa gente. São pessoas que não te interessam. Só te vão fazer mal. Ela veio aqui e levou todas as cartas que te escreveu. 

Respirei fundo e explodi em silêncio. De repente senti uma enorme vontade de ir imediatamente até ao Tramagal e desfazê-la em pedaços. Concluí sem entender, e com a ajuda dos traumas da tropa, vi que é difícil conviver e confiar nas pessoas. Nunca imaginei que a Belita me fizesse uma coisa destas. Custa-me a entender como as pessoas mudam assim de repente. A partir daqui a minha tristeza aumentou ainda mais. Amava-a de verdade. As mulheres são hábeis em dar-nos a volta. Por fim a minha mãe acrescentou que a minha tia estava muito aborrecida com isso. E que a Belita mais tarde se arrependeria. Decidi esquecer o episódio. Pensei com mágoa que afinal a Belita não passava de uma vulgar prostituta. Não é assim que se troca de pessoa de um momento para o outro.

A minha mãe levantou-se da mesa e foi à cozinha. Trouxe um prato com uvas pretas grandes e carnosas. Ela sabia que eu gostava muito destas uvas. Enquanto me deliciava a comer bago após bago, ela lembrou-se de algo:
- Estas uvas lembram-me quando era nova.
- Porquê mãe?
- Nós íamos em ranchos trabalhar na apanha das uvas. Depois descansávamos e algumas faziam uma coisa que me deixava arrepiada.
- Que coisa mãe?
- Levantavam uma delas no ar.
- Mãe… estás a brincar comigo. Não acredito nisso.
- É verdade meu filho. Não sei como elas faziam isso.
- Mãe, isso chama-se levitação. Mas como é que elas conseguiam?
- Diziam umas palavras e ela ficava parada no ar.
- Que palavras eram essas mãe?
- Não me lembro. Ainda hoje sinto medo quando penso nisso.
Dentro de alguns dias estaria na estação ferroviária de Santa Apolónia para mais uma longa viagem. O comboio levar-me-ia até à cidade do Porto para tirar a especialidade.



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