O comboio chegou. Embarcámos, e o Dário disse-me
que iria procurar um compartimento com aquecimento. Aguardei, ele veio
apressado e disse que tínhamos que ser muito rápidos porque só alguns
compartimentos tinham aquecimento, e a viagem seria muito longa. Segui-o, e
ocupámos os nossos lugares. O compartimento era muito acolhedor, muito quente.
Nem apetecia mais sair só de pensar no frio que lá fora fazia. Mas depois algo
aconteceu. No compartimento começou a fazer frio. Devia ser uma avaria. Depois
começou outra vez a aquecer. Passado pouco tempo acabou de vez. A partir daqui
frio por companhia. Recordo-me quando parámos na estação da Pampilhosa, era
gelo por todo o lado. Os carris estavam possuídos de branco. Era a primeira vez
que assistia a tal acontecimento real. Em alguns locais alcançava altura de
mais de vinte centímetros junto à linha do comboio. A viagem prosseguiu. Como a
bordo o frio se mantinha, conclui que desligaram o aquecimento com más
intenções. Que outra explicação havia? Pois que ninguém informava nada sobre
mais esta desgraça. Acho que era para nos habituarmos a viver nas mais
horríveis condições. Não é com isso que as ditaduras sentem enorme prazer?!
Parecia uma eternidade o tempo que passou quando
voltei ao Café do Frederico. Muitos jovens que o frequentavam embarcaram no
barco sem destino da tropa. A palavra de ordem era: vão para o ultramar e
mantenham, defendam o segredo de Fátima e da Igreja. Sem o Quitério e o Mota
não via nenhum interesse em permanecer no Café do Frederico. Só ocasionalmente
lá ia. Passava a maior parte do tempo em casa, em silêncio, a pensar o que
seria do meu futuro.
O meu pai chamou-me e disse-me que iríamos
passar o dia na praia de Carcavelos, e que depois de um banho almoçaríamos em
casa de um casal amigo na mesma localidade, o dono da casa era colega dele na
TAP. Exercia as funções de oficial de tráfego. O meu pai tranquilizou-me
dizendo que eram muito amigos. O almoço foi abundante, do tipo, o meu filho vai
algures para o ultramar e como não sei se ele voltará, aproveito para me
despedir dele para sempre, convicto de que jamais o verei. Terminámos com
lagosta… coisa que há muito já não me lembrava. Quem comia lagosta era
considerado muito rico. Depois fiquei intrigado quando fui convidado a beber
uísque. Não era muito apreciador de bebidas fortes e era a primeira vez que
bebia tal bebida. Despejei um pouco no meu copo e bebi como se fosse água. Não
senti nenhum efeito, o que me levou a concluir que afinal de contas esta bebida
não era tão desagradável como diziam. E bebi mais e mais. Depois dei-me conta
que já estava a falar de mais.
Depois dos agradecimentos e da despedida, o meu
pai e o seu colega na rua miravam o carro do anfitrião. Também decidi dar a
minha opinião. Disse que era um carro moderno. A porta do lado do passageiro
estava aberta, enquanto eles continuavam a conversar decidi fechá-la. Fi-lo com
tal força que o vidro se partiu. Depois das desculpas necessárias e promessas
de pagar as despesas, foi-me dito que não era necessário. Até hoje nunca
consegui encontrar explicação para tal acto. Penso que foi devido ao uísque. No
regresso a casa os efeitos dos vapores da bebida já se vertiam, batiam
fortemente na minha cabeça. O mal-estar era evidente. Fui para a casa de banho
e vomitei. Durante algumas horas, com lamentos e alguns gritos à mistura,
deitei-me no chão e ali fiquei até que a bebedeira acabasse. Ainda ouvia a
minha mãe perguntar ao meu pai, por entre críticas, que ele não deveria ter-me
feito uma coisa destas. E que eu não estava nada bem. No outro dia já estava
como novo.
À noite durante o jantar, a minha mãe fez-me
companhia. Estávamos sós. O resto da família andava algures por aí.
Pergunta-me:
- Ainda continuas a escrever à Belita?
A pergunta apanhou-me desprevenido. Fiquei
nervoso. Quis explodir em palavras, mas contive-me.
- Sim mãe, de vez em quando.
De facto a correspondência era escassa, porque
me tinha tornado apático.
- Cuidado meu filho. Essa gente é muito
perigosa. Ela já arranjou outro. Um do Tramagal que tem algumas propriedades e
deve ser por isso. Não ligues mais a essa gente. São pessoas que não te
interessam. Só te vão fazer mal. Ela veio aqui e levou todas as cartas que te
escreveu.
Respirei fundo e explodi em silêncio. De repente
senti uma enorme vontade de ir imediatamente até ao Tramagal e desfazê-la em
pedaços. Concluí sem entender, e com a ajuda dos traumas da tropa, vi que é
difícil conviver e confiar nas pessoas. Nunca imaginei que a Belita me fizesse
uma coisa destas. Custa-me a entender como as pessoas mudam assim de repente. A
partir daqui a minha tristeza aumentou ainda mais. Amava-a de verdade. As
mulheres são hábeis em dar-nos a volta. Por fim a minha mãe acrescentou que a
minha tia estava muito aborrecida com isso. E que a Belita mais tarde se
arrependeria. Decidi esquecer o episódio. Pensei com mágoa que afinal a Belita
não passava de uma vulgar prostituta. Não é assim que se troca de pessoa de um
momento para o outro.
A minha mãe levantou-se da mesa e foi à cozinha.
Trouxe um prato com uvas pretas grandes e carnosas. Ela sabia que eu gostava
muito destas uvas. Enquanto me deliciava a comer bago após bago, ela lembrou-se
de algo:
- Estas uvas lembram-me quando era nova.
- Porquê mãe?
- Nós íamos em ranchos trabalhar na apanha das uvas.
Depois descansávamos e algumas faziam uma coisa que me deixava arrepiada.
- Que coisa mãe?
- Levantavam uma delas no ar.
- Mãe… estás a brincar comigo. Não acredito
nisso.
- É verdade meu filho. Não sei como elas faziam
isso.
- Mãe, isso chama-se levitação. Mas como é que
elas conseguiam?
- Diziam umas palavras e ela ficava parada no
ar.
- Que palavras eram essas mãe?
- Não me lembro. Ainda hoje sinto medo quando
penso nisso.
Dentro de alguns dias estaria na estação
ferroviária de Santa Apolónia para mais uma longa viagem. O comboio levar-me-ia
até à cidade do Porto para tirar a especialidade.
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