terça-feira, 15 de setembro de 2015

O PARAÍSO PERDIDO A OCIDENTE (18)


Bom, parece que os testes psicotécnicos que fiz deram os seus resultados. No Regimento de Transmissões de Engenharia no Porto, na localidade de Arca de Água aguardavam-me nove meses de especialidade como radiotelegrafista. Muito tempo, claro, para quem via o tempo da juventude a escoar-se cada vez mais.
A parada era de asfalto, logo à entrada. À esquerda ficavam as aulas práticas com os rádios. À direita o sargento e oficial de dia. Subíamos como se fosse uma pequena montanha e tínhamos as instalações das aulas de morse, e mais acima o refeitório. Nas traseiras havia um caminho ladeado de jardins. O seu aspecto não era agradável devido a restauros que estavam a ser efectuados.

A primeira coisa que fizemos foi formar na parada e aprender um novo estilo de marcha. Tínhamos que levantar os joelhos bem alto e bater com as botas no chão com força. Este estilo de marchar era idêntico ao dos comandos, não compreendendo bem o porquê. O aprumo era rigoroso. Barba sempre bem-feita. A boina com o emblema da aranha que identificava como pertencente às comunicações de engenharia ficava ligeiramente caída na cabeça, e o emblema tinha que ficar sempre na vertical. A gravata e a camisa tinham que estar sempre impecáveis. O blusão tinha que estar com todos os botões abotoados. As calças tinham que ser seguras a meio dos atacadores das botas. Estas tinham que estar sempre bem engraxadas. O rigor era tal que nas revistas de saída até passavam a mão pela face para ver se ela estava bem barbeada.

O nosso comandante de pelotão era um aspirante. Em sua substituição dois primeiros-cabos. Começámos a nossa primeira aula de morse com o cabo Silva. Notou-se algum alarido como é natural. O cabo Silva advertiu imediatamente que a instrução era muito rigorosa, e que qualquer indisciplina o aluno levaria imediatamente uma piçada, ou iria para a prisão.

Primeiro, começámos com aulas de morse a velocidade lenta, com o tempo a velocidade aumentou, de tal modo que se tornava muito difícil escrever as letras dos sons que ouvíamos.
O café Arcádia ficava muito próximo. Tinha bilhar. Era para aqui que vínhamos passar as noites. Estava sempre cheio. Graças a nós fazia bom negócio. Foi aqui que conheci o Neves. Ele intervinha num debate em que defendia o fim da guerra colonial. Pelos argumentos notei que era culto. Contou-me depois que lhe faltavam algumas disciplinas liceais, por isso foi para o contingente geral. Na caserna surpreendeu-me com dois livros. A História me Absolverá, do Fidel Castro, e O Livro Vermelho, de Mao Tse-tung. Os livros circulavam de mão em mão com a maior discrição, sob risco de sermos todos presos. Receei que algum de nós denunciasse este acontecimento, mas não, ninguém o fez.
O colega da cama próxima era catequista. As suas intervenções tinham sempre um cunho religioso, um fanatismo doentio. Devido a isso eu e o Neves passámos a chamar-lhe Padre. Toda a caserna também. Com o Neves e os nossos argumentos púnhamos o homem nas raias da loucura. Os diálogos tornaram-se em verdadeiras batalhas e o Padre perdia sempre.
Quando ouvíamos gritos era o tarado do Madragoa com a sua equipa, que antes encerrava as portas da caserna e com a sua vítima imobilizada puxava-lhe as calças e depois arrancava os cabelos junto ao pénis um a um e ia-os contando enquanto nos perguntava se já chegava ou não. Na próxima vítima seriam arrancados mais cabelos que a anterior, porque se tinha de bater o recorde.
Um açoriano, que nunca soube porquê, não gostava nada de mim. Por mais que tentasse a sua amizade, olhava-me sempre com ódio e desprezo. Comecei a pensar que ele não batia bem da bola. Depois de vir de uma guarda aproximou-se de mim, apontou-me a arma e disse-me que me ia matar. Claro que pensei que era brincadeira. Mas ele insistia, notei que tinha colocado bala na câmara. Vi o seu dedo pressionar ligeiramente o gatilho, enquanto me aproximava dele, e ele afastava-se. Convenci-me que ia disparar. Depois parou, poisou a arma e afastou-se. Disseram-me para fazer queixa dele porque era um tipo perigoso. Não o fiz, porque isso destruiria a sua vida para sempre. Mas a partir daí fiquei com ele debaixo de olho. O Neves disse-me que ele era adepto do Padre, e me odiava devido às minhas intervenções. Disse:
- Amanhã vou-te trazer um bom livro.

Ele morava nas imediações do regimento e por isso era-lhe muito fácil trazer livros. Andava sempre com um que lia nas horas disponíveis. O livro que me trouxe era muito volumoso, a História da Filosofia Ocidental, de Bertrand Russell. Não sabia se teria tempo para o ler. Aproveitei as saídas das noites. Como a porta de armas encerrava à uma da manhã, e quem se distraísse ficava na rua, o que aconteceu com alguns, ficava no Arcádia com o pesado volume até ao encerramento. Não dormia o suficiente. Algumas vezes nas aulas o morse era escrito enquanto adormecia. Despertava de súbito e via riscos na folha de papel. Mesmo assim consegui ler a obra.

Quando o cabo Silva se ausentava deixava um de nós a dirigir a aula, e a sala passava a base aérea. Fazíamos aviões de papel e lá iam eles a voar. Ficava sempre alguém a vigiar para não sermos surpreendidos. Um dia alguém se esqueceu de vigiar ou fez de propósito. De repente o cabo Silva aparece e vê o céu cheio de aviões. Ficámos todos em pânico à espera do pior:
- É a última vez que vos aviso, da próxima sereis todos fodidos. Também não me quero chatear porque estou quase na disponibilidade. A partir de amanhã estais mais fodidos ainda, porque me vou ausentar uns dias. Serei substituído pelo nosso aspirante e aviso-os que à mínima coisa ele lhes dá logo uma piçada.
Ficámos apreensivos porque o aspirante nos tratava com desprezo.

Havia um colega que era hipnotizador. Convenceu o aspirante a fazer uma sessão de hipnotismo. Pensei que era mais um desses charlatães de feiras. Mas o certo é que primeiro pôs um de nós a miar, outro a ladrar e ainda outro a imitar um porco. A assistência ria muito com este espectáculo. Achei piada e disse para mim mesmo que não conseguiria hipnotizar-me. Ofereci-me como mais um voluntário. Depois de um grande esforço o homem não conseguiu e desistiu. Dizendo que com este não conseguiria. Perguntou-me porquê. Respondi que apenas tinha ordenado ao meu cérebro que a minha força de vontade era superior à dele.



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