sábado, 7 de junho de 2014

O PARAÍSO PERDIDO A OCIDENTE (08)





De posse da minha colecção, Quer Saber? Comecei a devorar um a um os muitos volumes que compunham esta pequena enciclopédia do saber. Andava sempre com um deles na mão, e quando lia perdia-me, alheava-me de tudo. De tal modo me concentrava na leitura que me esquecia do que tinha de fazer.

Para comprar a matéria-prima para abastecer a fábrica de arame, ia ao Rocha Pereira Amado & Latino, na rua da Prata, e os plásticos na Pollux, na rua dos Fanqueiros. Depois ia para a estação do Rossio apanhar o comboio com destino a Queluz. Assim que entrava no comboio e me sentava, a primeira coisa que fazia era ler, e de tão hipnotizado, algumas vezes ia parar noutra estação mais adiante e uma vez fui parar a… Sintra.

Perante estes acontecimentos os Wanzeller começaram a mostrar muita preocupação. Deram-me muitas reprimendas, lições de moral mas acabaram por se cansar, e disseram-me finalmente:
- Assim como és… distraído… nunca serás ninguém na vida! O conselho que te damos é que estudes, e tenta formar-te porque só assim te darão valor. Se não mudares o teu comportamento serás sempre um frustrado, um revoltado contra a sociedade!
Ouvi em silêncio e fiquei a pensar como é que eu poderia estudar, se já há dois meses não me pagavam os salários.

A Noémia, perante o meu gosto de ler teve a ideia de me oferecer um livro. O meu primeiro livro de verdadeira leitura a Antologia do Conto Fantástico Português. Li-o e reli-o, mas a pensar porque diabo me ofereceu ela este livro tão diferente das leituras que até então tinha lido? Seria porque eu vivia no fantástico? No irreal? Ou teria ela, apenas ela, devido à sua formação em germânicas aperceber-se da minha personalidade? Por mais que tentasse compreender, o certo é que nunca o consegui.
Acho que era apenas para uma introdução à literatura portuguesa do conto fantástico. Para mim era um volume considerável, pois continha muitos contos de vários autores portugueses. Depois ofereceu-me outro livro, A Selva, de Ferreira de Castro, aqui sim, fiquei impressionado com a vida que este homem viveu e sofreu nos seringais do Brasil, e o mais surpreendente é que tinha apenas a quarta classe, era um autodidacta.

Fiquei muito pensativo desde esse momento. Afinal existiram portugueses que não tiveram meios para estudar, e conseguiram ser grandes escritores. Isso deu-me uma grande força na alma. A Noémia ofereceu-me outro livro, As Vinhas da Ira, de John Steinbeck. Admirei nesta obra a descrição que o autor faz de um cágado, e a Rosa de Sharon com os seus seios a aleitar um esfomeado, mas sobretudo as descrições da grande depressão que para mim eram novidade, pois que me iniciava no conhecimento das coisas.

Já colocava algumas questões pertinentes aos Wanzeller. Já começava a ter um rumo político, já sentia alguma revolta, já sentia alguma percepção perante as diferenças de classes sociais. As minhas questões eram respondidas com: «que eu deveria estudar».

Acontecia que os meus salários continuavam a não ser pagos. Quase há um ano… Quando Wanzeller recebia o dinheiro dos clientes na minha presença, dizia-me que tinha de pagar os estudos dos filhos e o luxo de casa, porque parecia mal se não vivessem assim. Também tinha que comprar boas roupas devido à condição social que aparentemente ocupavam. Dizia-me para esperar um pouco mais, que no próximo fornecimento aos clientes pagaria a minha dívida. A situação mantinha-se, o meu pai disse-me para sair desse trabalho porque me estavam a explorar. Transmiti a preocupação do meu pai ao Wanzeller, e de imediato ele disse-me que iria falar com o meu pai.

Foi, e deixou um cartão-de-visita em poder do meu pai, que já ia em mais de um ano de dívida, uma pequena fortuna, e no cartão declarava o valor, e que se comprometia a pagá-la muito rapidamente. Implorava ao meu pai para que evitasse a todo o custo a queixa, a denúncia junto de alguém competente, porque não queria escândalos.
O meu pai concordou e passaram-se mais três meses e nada. Perante a exploração a que me sujeitavam e ainda o facto de constantemente me apelidarem de mariazinha, e insistirem que era um filho de casa, o meu pai insistiu para abandonar o emprego. Assim fiz, Wanzeller tentou convencer-me do contrário, afirmando que iria pagar dentro de três dias, o que não aconteceu.
Depois despedi-me, com muita mágoa é verdade, com ar paternal disse-me:
- Nunca te esqueças que é graças a mim que conheces todas as ruas de Lisboa, que aprendeste a andar de eléctrico. Eras quase analfabeto quando te conhecemos, fui eu que te ensinei a beber uma ginjinha com elas, e a beber um copo de dois e de três com uma sandes quando estávamos muito apressados. Fui eu que te ensinei tudo o que agora sabes, fui eu quem te preparou para a vida, e poderia ensinar-te ainda mais, mas como me vais abandonar, e isso é grande ingratidão da tua parte, depois de tudo o que fizemos por ti. Por isso pensa bem porque acho que te vais arrepender. Tu és como um filho para nós, gostamos muito de ti. Sempre insisti para estudares mas tu nunca o quisestes. Já que não queres estudar, então aprende a ser um homem.

As palavras eram muito convincentes, mas um ser humano não vive de palavras. Vive sim, mas só depois de se alimentar. Não é possível falar convenientemente sem alimentação. E tudo acabou. A divida que se comprometeu a pagar ao meu pai de quase dois anos, uma pequena fortuna para nós, nunca foi cumprida.
De facto quando um patrão faz muitas promessas a um empregado, e o seu falar é doce, meigo, terno, de muita amizade, e muita música, acreditem que ele está apenas a ser falso. Não é por acaso que as grandes fortunas surgem. Quem é muito rico, roubou muito.
Verdadeiramente nunca conheci ninguém que sendo honesto enriquecesse, e o mundo acabará no caos porque a invasão dos novos bárbaros impiedosos e protegidos por leis internacionais, têm permissão legal para escravizar qualquer trabalhador à escala planetária. Sim, à escala planetária porque quando o próximo planeta for colonizado, serão os famintos que para lá irão extrair os minérios. Tudo em nome da civilização e da descoberta de novos mundos.
Seremos controlados por pulseiras, por coleiras em nome da electrónica. Seremos vigiados por satélites, seremos os novos escravos, seremos exterminados lentamente. Os clones avançarão como exércitos e humanos só restarão meia dúzia, esses que actualmente dominam o mundo, e regressaremos à Idade Média, ao seu sistema social, a um novo reinado em que o senhor do novo castelo do Universo reinará por milhões de anos. E nos escravos planetários nascerá uma nova religião. Um novo Cristo surgirá a anunciar que todos os planetas receberão a boa nova do novo evangelho.

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