As Tchavolas desordenavam-se pelas ruas confundindo-se com o chão, já faziam parte dele, pois as suas vidas dependiam em absoluto do que vendessem ao ar livre, e o seu estatuto de indígenas indigentes ainda estava em vigor, apesar de que o rei lhes prometia há mais do que uma eternidade a nova vida, um milhão de centralidades e outros absurdos. Afinal, é fácil de verificar que reinar é escravizar. E as Tchavolas olhavam para todos os lados, pois que os fiscais não lhes davam tréguas - Jingola parecia, apesar do rei e seus parasitas bajuladores avançarem que não, um teatro de guerra – porque há nove meses que não recebiam, então lançavam-se como tubarões sobre as suas presas, que indefesas e amarradas na protecção das suas crianças, choravam o infortúnio da melhoria das condições de pobreza. Os polícias também aproveitavam, também saqueavam. Jingola estava a saque. As esposas dos polícias revoltavam-se porque eles nem um biquíni e um sutiã lhes conseguiam comprar. Era caricato ver polícias e fiscais espoliarem e vandalizarem as esposas dos colegas, e elas lamentavam-se-lhes: «Hum, afinal foi você que me assaltaste, me roubaste! Hum, afinal vocês são todos bandidos.»
Os Lordes, os senhores todos poderosos de Jingola limitavam-se a observar as suas esposas que para não morrerem de tédio, passavam o interminável tempo a limarem as unhas, a experimentarem biquínis, sutiãs e baby-dolls. Tinham várias criadas, vários motoristas, e então chateavam o tempo a darem desordens nas criadas e a circularem nos carros sempre a esgotarem os estoques das casas de modas, que depois amontoavam num improvisado armazém das suas casas, pois que também tinham mais que uma.
Os Lordes mantinham o seu passatempo preferido, que consistia no arrebanhar das esposas Tchavolas. Como as suas amadas não davam nada para o sexo devido à sua condição existencial, eram muito frígidas, eles então assediavam as Tchavolas que facilmente aceitavam o estatuto de amantes. Os Lordes juravam por entre o tilintar de várias garrafas de uísque que fazer sexo com as Tchavolas era a coisa mais deliciosa do mundo. Elas, afirmavam eles sem pudor, eram como gazelas na cama, e quentes como o sol abrasador da estação do calor.
Os Lordes aumentavam os seus pecúlios constantemente porque usurpavam dos Tchavolas o seu petróleo, diamantes e todas as demais riquezas de Jingola, incluindo a água. O petróleo jorrava e incendiava as contas dos Lordes, que para não darem nas vistas, abriam contas bancárias em nome das suas esposas, dos filhos e das concubinas. Sim, o petróleo não parava, até demais circulava e nos bolsos dos Lordes chafurdava.
Os Lordes tiveram uma ideia genial - aliás todas as ideias deles primam pela genialidade e originalidade – que culminou na importação desenfreada de chineses e vietnamitas que trabalhando como escravos – ainda disso não se libertaram – davam graças aos seus senhores, os Lordes, por lhes proporcionarem o paraíso na terra – agora também do Celeste Império - Jingola. Trabalhavam e deixavam-se recompensar por tuta-e-meia, o que magnificava os cofres dos Lordes, mas miserava os Tchavolas no desemprego e chamava, cultuava Spartacus. Jingola ensombrava-se, tumultuava-se, mas os Lordes marimbavam-se, tinham mais que fazer, para o atroz sofrimento dos Tchavolas que ruminavam planos de revolta, e que a qualquer momento surgiria. Mas os Lordes esperavam-nos com helicópteros, mísseis, tanques, cães, mercenários e todo o tipo bélico deste e do outro mundo.
A capital de Jingola – aliás como em todo o reino – fervilhava de actividade missionária. Por todo o lado e em todas as portas se pregava o santo evangelho e as santas escrituras. Os sacerdotes escrutinavam, descortinavam o fim do mundo que há mais de dois mil anos estava cada vez mais próximo. E as desordenadas ovelhas Tchavolas deixavam-se ir na conversa de que depois do fim do mundo o Senhor os esperava para lhes abençoar e oferecer-lhes uma casa que em Jingola era coisa impossível, porque um dos passatempos do rei consistia em derrubar-lhes, transformar-lhes as casas em pó. Provavelmente era para cumprimento da profecia bíblica de que ao pó voltarás.
Em Jingola, por incrível que pareça existiam mais de mil seitas religiosas. O tal negócio da China. Um bom negócio, diga-se de passagem, pois bastava observar a riqueza fácil que os bispos conseguiam, inventando coisas sobre Jesus Cristo e Deus. E invocavam a promessa habitual aos seus fiéis de que todos ficariam ricos se seguissem os seus ensinamentos, pois eles eram os representantes, os eleitos de Deus e de Jesus Cristo na terra. O rei apoiava-os, pois que dominavam e embaralhavam as suas populações, incutindo-lhes a superstição de que quem se revoltasse, caluniasse, injuriasse, ou até fizesse uma simples greve contra o rei, Deus lhes enviaria pesados castigos. E davam-lhes exemplos: a falta de água e energia eléctrica, a fome, não eram já castigos mais que suficientes? E os Tchavolas refugiavam-se no temor. E o exército sacerdotal de bíblia sempre nas mãos, lá vagueava. E um cónego se destacava, imitava muito mal Lutero, pois que militava do lado contrário. Isto é, defendia, elogiava e bajulava os Lordes, que agradecidos uns barris de petróleo lhe ofertavam.
Como habitualmente o nosso confessor está no seu hábito, no seu púlpito a oficiar na sua capela da Igreja de Nosso Senhor do Kremlin. Nas preces que faz ao seu deus leninista, e sempre consequente no cumprimento de ordens superiores, corrompe-o desmesuradamente com quantias incomensuráveis. Qual é o deus que não se deixa corromper por astronómicas quantias monetárias? Vá, digam-me um que não o faça. Todos os deuses adoram as riquezas terrenas, e de tão corrompidos que estão, debandaram todos para Jingola. É por isso que o céu está tão despovoado, tão imigrado.
E um deus que se preze, ama, chama a juventude para o seu partido – se calhar não sabem, ou fingem, que a religião também é um partido político – com promessas de vida no além mundano, de carros e chorudas quantias de dólares existentes num saco pessoal dos ritmos petrolíferos. A juventude acorria-lhe depois da desgraça das contínuas maratonas em saudação disto e daquilo. Festas partidárias em saudação aos santos leninistas de cada dia do ano, aos aniversários dos chefes, das suas esposas, dos seus filhos, filhas e dos altos e baixos funcionários que atapetavam a casa real.
E depois das maratonas os jovens lá acorriam ao nosso bom cónego missionário na esperança de que caísse alguma coisa generosa para, conforme confessavam, organizarem as suas vidas. O cónego missionário ligava do seu telemóvel e rapidamente chegava uma mala bem atestada de dólares. E o padre interrogava-os, porque quem dá dinheiro a alguém sem mais nenhuma explicação, é porque exige, espera algo em troca: «Bom, eu vou-lhes dar algum, mas já sabem como é.» «Sim, senhor missionário, como é o quê?» «Já tem o cartão da LORDE/JOTA?» «Já!» «Ai é, então mostrem!» Exigia o missionário desconfiado. E os jovens não tinham outra alternativa senão a de se sujeitarem, irem para a capela ao lado e lá registarem-se e obterem o cartão da LORDE/JOTA, que lhes daria, abriria as portas para tudo e mais alguma coisa que fosse necessário ou desnecessário. E se denunciassem todos aqueles do contra, os arruaceiros, os que falassem mal do eterno delfim, os opositores, em troca receberiam uma considerável quantia determinada pelo serviço prestado. Aqui convém esclarecer que alguns cidadãos da nossa praça estão consideravelmente ricos devido a esse expediente do centralismo democrático.
E a Igreja do Kremlin continuava, labutava no ardor, no louvor ao seu senhor. A fama do missionário da juventude já ultrapassava fronteiras, devido há sua proverbial magnanimidade. Quando questionado sobre a proveniência de tantos fundos monetários, o nosso bondoso missionário nem pestanejava, pelo contrário, olhava para o céu, enlaçava as mãos e orava: «Obrigado meu santo leninista pelos desvios milagreiros que fazes do céu jorrar e nas minhas mãos aterrar.»
Num belo momento o missionário recebeu uma missão especial. A conversão de jovens manifestantes/arruaceiros que não aceitavam corromperem-se pelo deus leninista. Intrigado, o sacerdote dirigiu-se à prisão onde os desgraçados se encontravam e abordou-os, melhor, interrogou-os: «Meus irmãos, estais aqui porquê?» «Não sabemos, ninguém sabe.» «Hum! Não é difícil de saber. Manifestaram-se com cartazes a falar mal do nosso deus?» «Sim padre, é isso!» «Logo vi. Bom, vamos dar um jeito nisso. Tenho poderes de como influenciar o Juiz polémico que condenou os nossos irmãos, a converter as penas dos dezassete presos em multas… passando assim todos à liberdade… e prometo-lhes ainda outros bens materiais. Vocês sabem que eu sou o divino empresário da juventude.» Os jovens mantinham-se num silêncio irredutível, até que um deles quebrou-o: «Não somos arruaceiros, xibados, ganzados, kuachas, guerrilheiros, ou outro epíteto pejorativo que insistem em atribuir-nos.» E o eclesiástico sem rodeios elucidou-os a modos de pregação: «Se eu tivesse mandado alguém, podem ter a certeza que nem sequer teriam saído do bairro».
Só que o generoso missionário não se deu conta, não desconfiou, nem tão pouco suspeitou que a conversa foi gravada, e posteriormente denunciada por todos os meios de informação, exceptuando os órgãos estatais do clero leninista. Mas mesmo assim o ministrador da Igreja leninista pregou os santos sacramentos dos cânones da praxis: «Só um partido leninista é que está apto a conduzir os destinos do maravilhoso povo jingolano. Os outros partidos são fantoches, e se não seguirem os paradigmas leninistas estarão condenados ao fracasso. Só um verdadeiro partido condutor de massas garante estabilidade e paz. E com o tenaz apoio internacionalista dos partidos, governos, e de todos os países amigos que seguem a mesma senda - o rumo do desenvolvimento - a vitória é certa. Os povos amantes da paz e da liberdade vencerão. E os nossos inimigos figadais em qualquer esquina tombarão e abandonados lá repousarão.» E um dos arruaceiros tchavolano destaca-se sobranceiro: «Não confiemos nas igrejas, elas estão ao serviço do deus nosso senhor dos Lordes.»
A suave brisa matinal atrai-nos. Já atingimos finalmente o pôr-do-sol onde o amor guarda secretamente os nossos desejos. Nas espumas das marés transparentes e irreverentes dos ciclos que parecem repetitivos, caminhamos incertos nas buriladas areias que escorrem, deitam-se ondeadas. A suave brisa matinal atrai-nos para os confins da irreversibilidade do tempo do amor. O murmúrio dos ancestrais fósseis invade as nossas memórias do início do primeiro amor. E rejubilamos porque finalmente reencontramos o amor perdido, e dele não desejamos mais sair, porque receamos desmaiar nos insondáveis caminhos dos olhares de paixão não retribuídos, não compreendidos. Como na ascensão e queda das ditaduras.
Não acredito em escritores, poetas e demais livreiros ao serviço e galardoados pela corte palaciana dos Lordes. Porque quem apoia a escravidão dos rendimentos do petróleo, neles naufraga. É como no tempo dos pescadores de homens, onde havia, coexistiam intelectuais que compunham odes, liras, enquanto nos campos de concentração milhões de almas eram sacrificadas em nome de um poder eterno… das cinzas. Como se fosse possível um país viver comandado apenas por um grupo de águias de rapina. Os mestres da conspiração diziam que primeiro estava tudo bem, mas que agora caminhamos para o desastre global. Quer dizer que estamos a ser governados por víboras.
As ditaduras vão caindo dos seus poleiros como aves no gélido frio invernal.
Os poemas dos poetas da corte Jingola enlevam-nos nas teias da corrupção. Onde há muito petróleo, também há muitos poetastros desbotados nas turbulentas correntes submarinas das jazidas petrolíferas. Não sabemos como será o nosso futuro. Que faremos sem os nossos melhores amigos ditadores que um a um vão desaparecendo. O cão é o melhor amigo do homem, o petróleo é o seu pior inimigo. Este petróleo atrai muita miséria. E imprimir a tolerância zero, é reduzir as finanças a zero, zerar tudo. Quanto mais tempo demorarem com as reformas profundas que a população exige, mais o incêndio tumultuoso se propagará. Não é hora de se perder tempo, adiar, fingir implementar promessas que nunca se cumprem. Isto está a complicar-se, a descontrolar-se. A literatura de Lenine continua presente.
Jingola é pois um estado pirata, o local ideal para todos os piratas mundiais.
Quanta mais a pobreza mental de quem nos governa, mais a pobreza guerreira aumenta.
continua