(Num mundo de honestidade a economia
seria desnecessária. A economia existe porque os desonestos são muitos e os
honestos demitiram-se, perderam a coragem de lutar. A democracia é o movimento
subtil da substituição das ditaduras para eternizar a espoliação universal das populações.
Há bem pouco tempo era a espoliação pela inquisição da Igreja. Esta é a espoliação
democrática.)
O vizinho
esforça-se para subtilizar os instrumentos
das cordas vocais.
Por sorte
a mente colabora.
-Vencido no jogo
ebriático do álcool mas
não convencido.
Para liquefazer… escrever, dizem que é
importante ter
um estilo e utilizar
metáforas. Quando
inventaram a pólvora diziam a mesma coisa. Na era do nuclear inventaram outras contendas.
No tempo em
que o pensamento
domine a matéria não gostarão dos raios luminosos
extraordinários: «porque
o tom azulado deste pensamento
está muito carregado,
a tonalidade daquele pensamento rosa
está demasiado clara,
o matiz desse pensamento
vermelho foge à cor
do sangue.» Os editores
continuarão a perseguir-nos, dirão: «o estilo
e a metáfora das cores não tem harmonia
na estrutura, falta-lhes carácter». Sempre escravos
da vontade deles. Estes
são os verdadeiros ditadores
benévolos. Só
a sua ponderabilidade é imanente. Enfim,
nenhum poder que se preze apoia
intelectuais. Nos
intelectos reside o prazer
da resistência vital.
Quem disser que
a escravatura acabou é um sonhador. A democracia dos escravos
é a revolta.
Ulisses mergulha a mente,
docemente nos
mares espumosos,
superficiais cristais
oceânicos. Sucede-se uma praia que se deleita com
a nudez horizontal
de Penélope. A ondulação melodiosa sobe e desce transparecendo a areia que encosta, refrescando o desejo
da fremente epiderme.
Penélope senta-se, enche as mãos de areia e passa-as pelos
seios que
avolumam, depois afunda-as na púbis, na vagina
da leal ausência.
Olha longínqua
para o infinito
oceano, e desprende-se:
- Meu
esposo, nos mares onde
navegas é fácil enfrentares
a fúria das ondas.
Em Ítaca não
suporto as ondas da intempérie
humana que
me perseguem. Os dias
passados são
perdidos, irrecuperáveis. Tudo muda. Só o bater das ondas do mar
permanece imutável. Se as pessoas fossem assim…
Ulisses cheio
de vocação na terra
emocionada usa o cansaço
da rouquidão.
- Mas
não são,
nunca serão!
- Mas
gostam dos momentos dessas semelhanças… conduzem-se como
focas.
- Conduzem-se como loucos,
vivem em carros
loucos, em
loucas estradas, que
se altercam loucamente. Destarte é a civilização.
No barco, cinco homens do
serviço de estrangeiros
aguardavam-nos pacientemente. Mentor e Ulisses percebem a trapalhada
da incongruente vadiagem
estacionária. Um,
cozinha as palmas
das mãos em
banho-maria, retempera-as pronto a servir-se. Soturno,
explana manhoso:
- Nós
facilitamos a entrada ilegal de estrangeiros,
para depois à
saída facturarmos.
Com dolo determinado exigiram cinco mil
dólares. Mentor demoveu-os numa baixada de dois mil.
Mentor e Ulisses estão a bordo.
Mentor convida-me:
- Vem! Tu
e nós na patera, rumo
a Gomera… depois Ulisses deixa-te em Ítaca.
E fui.
A Natureza
continuava a pintar com
tinta de água.
Os seus pincéis pareciam violoncelos nos
vidros da janela.
A água corria, parecia que tinha pressa em chegar ao seu destino. Queria distrair-me, e a distracção é a corrupção da mente.
Andar à corda, a cirandar sem trigo para joeirar…
a fome é uma questão
política. Os políticos
dividem os trigais entre
si. Nas ruas,
os vendedores revendem as sobras do PIB. Esta vida
tresanda a bebida. Lembra, incontestável campeonato
de barris de pólvora alcoólica, fermentados na imensidade
inquisitorial. Paira, ressente-se o provável
canto monótono
do regresso às armas,
à morte, à destruição.
Exportadores de petróleo, importadores
de álcool. Escravos
clonados no sono, do sonho escravo
de dezoito quilombos. Frustrados no aroma pantanoso da liberdade. Sem formação, o escravo
liberto prossegue na escravidão. Submisso
no céu inundado de nuvens
negras do FMI.
Escapei de levar,
quando vi roubar
motorizadas à paulada. Evitei a feitiçaria
das baratas em
fila indiana,
e o gato preto
que miava sempre
à meia-noite. Meninos
e meninas queimados, torturados, acusados de feitiçaria,
ou usados no assado
ritual canibal.
Agora, complicam-se por
qualquer coisa,
e se incendeiam, ou se disparam, se
matam de flagelos importados. Como Trajano, o império
Bush exportou a violência na reconquista
do Iraque. Tal e qual
como antes
sucedeu, a retirada é inevitável,
e a violência reexportada. O campo magnético
desta escravidão é muito
intenso. Viver na maldade desta sociedade, é
a autodestruição em
cinco segundos.
A morte é o curto-circuito
da vida. Depois
de um curto-circuito,
os fusíveis da morte
são irreparáveis.
Dos meus olhos reinaram lágrimas,
quando li o anúncio
da missa de defuntos.
A oração, recordação do amor eterno de mãe para o seu bebé que
viveu alguns meses.
«Meu filho, 21 anos são passados, mas
na verdade é como
se tivesse acontecido ontem. Meu amor, palavras, seriam necessários
imensos jornais
para exprimir, como grande é o
meu sofrimento. Uma coisa
eu digo, e direi sempre:
dói, dói, dói, como dói, meu Deus.
Descanse em paz
meu bebé, e que
estejas bem juntinho de nosso
Senhor Jesus Cristo».
O camião descontrola-se. Na amurada dois contentores
desequilibram-se, passeiam borda fora e
descansam em doca
seca onde três
viaturas recebem pena
de morte sem apelo a tribunal
arbitral. A populaça com a fome bem desperta agradece
a Deus o saque
do dia.
O dinheiro
do petróleo é o Terror
desta Revolução Francesa. Muito dinheiro, muitos democratas, e muitos
aventureiros para
dar uma ajuda.
Uma nação muito
rica com
muitos pobres,
com poucos
muito ricos.
A propaganda
inconvicta passeia-se pelos bairros na retentiva
ineficaz de explicitar
aos confusos batedores eléctricos para não ligarem fios, porque
causam muitos incêndios
e carbonizações humanas. Muitos cabos eléctricos, incêndios
garantidos. À noite, no torpor alcoólico
desajeitado, acontece quem abasteça gerador
com vela
de cera acesa,
e fica com a vela
na mão. A democracia
é como uma instalação
eléctrica, deve ter bons
disjuntores.
Um delinquente reincidente
dos telemóveis não se cansava da prisão. A mãe
conivente agraciava-o, pagava para lhe ver fora das grades.
Mamãe cansou-se e não
o desprendeu. Um tio
desgradeou-o. Ele chegou em casa muito depreciado, e perguntou à mãe:
«porque não
me tiraste da prisão?»
e deu-lhe um tiro
de misericórdia.
Até nos
cadáveres há cinismo, neste reino transportam-se como
mercadoria vulgar.
Seis gracinhas saíram em
correria da igreja.
Como um
anjo, as vozinhas infantis estimularam
os pávidos passeantes ocasionais. A plenos
pulmões pequeninos
ensaiaram o espiritual negro da gatunice.
- Agarra! Agarra!
Era um gatuno, fingido crente,
que inculto
perturbou o culto. Sacrílego,
roubou o telemóvel do sacerdote oficiante.
Os agora impávidos revoltaram-se
baixando os polegares. O impopular tentava refazer-se dos acidentes
eucarísticos, mas não
dos de percurso. Estava já a comer o pão que
o diabo amassou. O vale
de lágrimas estava incompleto.
Fiscais governamentais
atentaram-lhe no saco das costas e na carteira,
e evadiram-se. A alma dele fugia-lhe. Um
Baden-Powell chegou, ordenou aos seus escuteiros que
o carregassem para a igreja.
Salvou-se da extrema-unção.
Alheados, ratinhos do lixo
trabalham. Destampam contentores, abrem sacos
com lixo na esperança
de encontrarem pitéu. Mas não dá para o petróleo. Uma gracinha, talento
floral inocente dos primeiros
passos corais
do espírito evangélico,
desconfia para um
ratinho humano:
- Donde vens?
O ratinho humano
olha-a, considera-a fada das lixeiras. Mergulha as mãos e quase
a cabeça no contentor. Não tem nada para dizer, não
sabe o que é viver.
A resposta só
pode ser dada
como a vida
do lixo.
- Lixado, mal lixado!
Um gato sente-se
ofendido pela verticalidade da pernada do ratinho humano. Os gatos
são exímios
concorrentes desleais.
O felino afasta-se do seu hábito alimentar, dá uns saltos… e outro
lixo seguro à
vista. Duas crianças
politizadas e continuamente educadas do antanho
satirizam:
- Contra milhões de esfomeados ninguém
combate.
- Essa é boa! Porquê?
- Porque
derrotados, fica muito dispendioso
alimentá-los.
Os vermes
provenientes do lixo invadiam quintais. Procuravam melhor
caminho para
espoliarem nas casas. Os esgotos e águas
paradas originam a democracia
incipiente. Democracia
violentada na ilusão das palavras da liberdade,
porque os famintos
nas prisões da fome
não se alimentam das epidemias das ideologias
políticas. E a peste
negra, em
parte, como todos sabemos fez o sistema feudal desabar.
Não é possível o ser humano amar, porque destrói
o amor!
As águas
escuras da putrefacção habituam as pessoas
à escuridão. E da janela
sempre à espreita,
um bom
observador sempre
nota algo
que se aproveita. Os carros foram feitos
para andarem, e nas estradas
estão continuamente a pararem. Progresso
é passar o tempo
da vida nos assentos dos carros.
Mar alto,
como se o mundo
fosse água. Para
onde quer
que olhe vejo tudo
líquido. Que imensidão
na minha pequenez.
Sinto-me microscópica perante tanta vastidão. As ondas poderosas fazem liberdade.
Mas, estou receosa,
isto não
é vida para mim. Vou descontrair-me junto
dos meus companheiros,
ouvir o que
conversam. O mar para
eles é como
se fosse um velho
amigo. São
filhos dele. Acho que
Ulisses está a astuciar, sempre.
-… Com
um bom
pastor e ovelhas
obedientes…
- Sem
líderes?
- Mentor…
se as tais massas
forem inteligentes, pensantes,
souberem o Caminho, os políticos acabam.
- Deixa
de haver partidos
políticos.
- Exactamente.
- Acabando com
eles, acabam as equipas.
- Como
no futebol.
- Não!
As pessoas podem chutar
a bola à vontade,
seja redonda ou
quadrada.
- De preferência
quadrada, redonda
qualquer joga.
Imagem:
Aléxia Gamito
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