Nos últimos dias
devido à estação das chuvas, a lagoa estava bem gorda, repleta, bem viva,
movimentada de água. No céu nuvens escuras queriam dizer que mais água se
preparava para cair dele. Mas isso não impedia que à volta da lagoa a vida
parasse. Cada um vivia, ou improvisava como podia. E os clientes da lagoa iam
chegando, não no número habitual porque a chuva prejudica os investimentos das
pessoas, e muitos não se podiam deslocar porque as ruas estavam intransitáveis.
Pode-se assegurar que de resto tudo estava estabilizado. Ouvia-se, não, não se
pode dizer que se ouvia, a terrível barulheira de uma aparelhagem musical
comandada por jovens que a abasteciam com a música mais estridente possível. De
tal modo que até para falarmos não conseguíamos, aproximávamos as bocas quase
coladas nos ouvidos dos ouvintes, e então não falávamos, gritávamos, deixávamos
de ser pessoas, creio que nos parecíamos mais com os animais numa selva
aterradora. Ir lá falar com os jovens para que baixassem o som, não adiantava,
eles ainda mais o aumentavam. Será que é isto o que resta da identidade
cultural do mwangolé? Até nos hábitos alimentares: sandes com muita mostarda e
muita maionese. A propósito: amigo leitor sabe o efeito da mostarda no nosso
estômago? Pois bem, vou-lhe mostrar: pegamos numa moeda bem usada, daquelas que
quase não se consegue ver nada das inscrições. Despejamos-lhe um bocado de
mostarda nas duas faces e depois enrolamos, por exemplo, num papel de guardanapo
e deixamo-la descansar durante aí dois minutos. Depois retiramos-lhe o
guardanapo e a moeda… surge como que acabada de sair da cunhagem. Tudo nela
desapareceu. Agora, o amigo leitor já pode facilmente imaginar os estragos que
a mostarda faz no nosso estômago. Quando ainda jovem vi essa demonstração nunca
mais comi esse condimento.
Voltando aos
clientes do cacusso, também vale dizer que com o arrastar do lixo da água das
chuvadas a lagoa também era afectada, porque além do lixo a água ficava
bastante turva o que dificultava a sua oxigenação e daí o peixe ter dificuldade
para respirar, ou morrer, a pesca diminuía e as receitas abrandavam, não
compensavam, como se fosse tempo do defeso.
E de repente
ouve-se um grito lancinante de criança: o pai olha na direcção do som e vê os
seus dois filhos juntos, um com seis anos e outro com apenas um, e o mais velho
corre para o pai: «Pai! Ele mordeu-me!» «Pois, tu passas a vida a fazer-lhe
judiarias e o coitado enerva-se e morde-te.» E gritando na direcção do
pequenino: «Ó seu bebé piranha não mordas mais o teu irmão! Vai para o pé da
tua mãe.» Passados alguns minutos, e como é costume dizer, um mal nunca vem só,
eis que novamente se faz ouvir a voz do filho mais velho, mas desta vez o grito
é bem diferente: «Pai!!! Pai!!!» «O que é porra?!» «Pai, são os chineses que
estão aí com camiões para despejarem lixo na lagoa.» «Oh!Oh! mas que porra de
merda esta! Vai para casa e fica lá com a tua mãe e o teu irmão.»
O Pai reuniu de
emergência o CRB – Constituição da República da Bwala, e enquanto os seus
membros se preparavam para o pior, as mamãs, os petizes e os jovens já
armazenavam pedras e outras tralhas para repelirem os invasores chineses. E
então começaram as conversações entre as duas delegações. Do lado angolano o
Pai chefiava, a comitiva marchou e quando se aproximou dos inimigos chineses
fez alto. Os chineses assustados pelo elevado número da comissão de recepção,
logo viram que não era para festejá-los, dar-lhes as boas-vindas, e o Pai faz o
discurso de apresentação: «Quem são, de onde vêm e para onde vão?» Mas os
chineses já há muito que estavam habituados a estas manobras dilatórias e
posicionam os seus camiões - eram apenas (?) três - e preparam-se com o maior
à-vontade para poluir a lagoa com escombros das obras de construção civil
deles. Mas como que nascendo do chão uma turba de jovens cerca-os e com gestos
indicam que vão apedrejar e depois queimar os camiões. Então um chinês usa a
artimanha dos prevaricadores da Lei, que consiste em afirmar que desconhecia a
Lei e assim praticar todo o tipo de crimes a bel-prazer. E o representante
chinês tenta safar-se: «Chinês não saber falar português.» E o Pai não se deixa
desarmar, convencer pela artimanha da sabedoria milenar chinesa: «Estes
chineses são o máximo, além de fazerem da China o país mais poluído do mundo, é
por isso que agora têm chuvadas que nunca mais acabam que limpam a poluição da
terra. Para quem não sabe a Natureza é muito vingativa, e em quem se vinga? No
homem, claro, que é o seu pior inimigo. Agora também querem fazer de Angola o
país mais poluído de África» E o Pai faz sinal com as mãos aos chineses a
indicar-lhes que lhes cortarão as cabeças. E o chinês não desiste, entrega-lhe
um telemóvel para o Pai ligar. Mas o Pai não lhe liga nada e já a surra aos chineses
se ensaia, está por um triz. A algazarra dos jovens subiu, parece chicotadas
sonoras nos ouvidos. Então há que entrar nos camiões e bazar. Claro que foram
despejar a poluição aí em qualquer lado. Quer dizer: num lado construir e
noutro destruir.
E chegou a hora do
almoço, e o Pai já na mesa com a Mãe e os seus dois filhos. Não havia mais
ninguém, além de três cães e quatro gatos que habitualmente montavam guarda
quando a piroga voltava da faina da lagoa. Pelo menos estavam saudáveis, pois o
segredo da longevidade da gataria é o comer peixe fresco. Agora quanto aos
vira-latas, esses qualquer coisa lhes serve - até parecem as nossas jovens de
agora, que qualquer homem lhes serve - mas também estavam bwe fixes com a
frescura dos cacussos. Era esta reduzida família que convivia, se abastecia à
mesa porque anormalmente ninguém mais aparecia, pois o Pai era pobre, como aqueles
mwangolés que vivem apenas do seu salário, e então não lhe ligavam, nem a
família, claro. E o Pai prepara-se para a oração de graças pela comida
concedida, e ora: «Pois é, andam por aqui no assédio que vêm construir uma
cidade, que vão reconverter esta bwala, que farão desta lagoa outra
centralidade. Aventureiros portugueses já nos rondam com propostas de fazer
desta lagoa uma bruta estância de turismo para estrangeiros, e que como
compensação me darão dois barcos com motores fora de-borda a gasolina, que me
pagarão o combustível e pagarão os salário0s de quem neles trabalhar. E a
manutenção dos motores? Tudo muito bonito, mas se saio daqui vou mais pescar
então aonde? A Mãe e as crianças vão vender cerveja e pinchos para
sobrevivermos? Eu sei que eles privatizarão isto, tudo, até as nossas almas, e
isso não é a aposta segura de faser da nossa querida Angola outra Argélia?» E
pergunta à Mãe: «Já mandaste comprar gasóleo para o nosso gerador? Pois creio
que jamais teremos energia eléctrica da rede. A propósito: eu nem sei o que é
isso de rede. Será uma rede dessas, tipo cerca de um terreno e de lá sai luz?» E
a Mãe com voz triste de partir o coração, responde-lhe: «Nem dinheiro temos
para comprar pão para as crianças quanto mais para comprar gasóleo. Se os sênês
nas suas cantinas vendessem gasóleo, seria a nossa sorte pois teríamos kilapi.»
E o Pai ordena no filho mais velho: «Vai lá na cantina do sênê, diz que o pai
mandou dois litros de vinho, diz-lhe também que é para fazer kilapi. Esses
sênês já estão com as suas cantinas por todo o lado, os chineses estão em todos
os cantos das terras na busca de minérios, os portugueses invadem-nos, estão
também por todos os cantos – já são mais de metade dos estrangeiros em Angola,
e até dizem que: nas ruas, em dez brancos, nove são portugueses - na venda de
sabonetes e quinquilharias e nós, qual será o nosso futuro? Mão-de-obra escrava
para abastecer tanto invasor estrangeiro?»
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