sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

As Aventuras de Akalesela (03). O Mistério do Prédio Enfeitiçado




Akalesela fortalecia a sua alma com dois passatempos: tocar alaúde e compor poesia de laivos medievais. Acariciou o instrumento e viajou - mas precisa de viajar mesmo? - para a Idade Média. Ela gostava imenso de o ouvir. Às vezes ficava pior que o gato nas carícias. Podia-se até dizer que pareciam um casal de gatos. Ele cantou-lhe:

Saltitante a minha princesa
no tumulto da multidão
Agitado, perseguia-me o seu sem coração
Perguntei à multidão
Viram-na, ela, o meu amor?
responderam-me:
Ficaste sem coração, um príncipe levou-a
para o seu reino sem oração
do enquanto eterno amor petrolífero

O telemóvel toca, ela atende-o.
- Sim, faz favor.
- Preciso de um feitiço para praticar o sessenta-e-nove.
- Quem é que fala?
Mas já do outro lado não havia ninguém. Akalesela aborrecido, frustra-se:
- No nosso e-mail passa-se a mesma coisa.
- Podes estar tranquilo que vou fazer a um deles sabes o quê?
- Não.
- Muitos seiscentos e sessenta-e-noves.
Ele continua-lhe a alaudar:

O príncipe saiu do seu castelo
do seu reino à caça duma princesa
da sua amargura
Milhões de esfomeados
perseguiram-no à fartura
Entretanto a sua princesa
não o aguardava ansiosa
deliciava-se com outro
na sua cópia de segurança
Contrariava-se quando
fujia, fingia o encontro
com o seu cavaleiro
depois de muitos anos (?)
Resistindo às peripécias
do amor petrolífero
do seu cavaleiro diamante
que tinha muitas damas
Finalmente não compreendeu
que a princesa do amor tinha
um novo-rico

Ela trouxe duas cervejas. Sacou-lhes as tampas e poisou-as. Depois abraçou-o ternamente e beijou-o várias vezes nos lábios. Estava a excitar-se, a exercitar-se. Ele liberta-se, ouve barulho e  diz-lhe que estão a bater à porta. Ela foi escancará-la. É Injandanda que fala num tom muito sério.
- Uma senhora quer falar com Akalesela.
- Diz para esperar.
Rapidamente arrumam o local. Ela enfia um mini vestido pela cabeça. Ajeita o cabelo enquanto se mira  no espelho colocado logo a seguir à porta de entrada. Ordena para Injandanda:
- Manda entrar.

Entra uma senhora com cerca de quarenta anos, baixa e bem nutrida. Kakulu-Ka-Humbi, antes espreitou pela cortina da janela e viu um soberbo jipe, desses da moda. Identifica o perfume dela: sem dúvida alguma, é Coco Chanel número cinco de 1922. Veste uma blusa transparente azul-escuro onde sobressai um sutiã branco que se esforça por suportar os seios opulentos. Uma saia de linho leve revela-lhe as coxas protegidas por um saiote. Como manda a praxe um par de sapatos de salto alto combinam com a blusa. Akalesela faz as honras da casa:
- Queira desfrutar o que temos para lhe agradar.
- Que bom, muito agradecida.
Akalesela convida-a com galantaria:
- Acomode-se por favor.
Ela optou pelo aconchego de uma extremidade do sofá, enquanto ele ocupou a outra. Kakulu-Ka-Humbi sentou-se na cadeira do computador a aguardar pelo rol dos acontecimentos. A visita parece pretender iniciar o diálogo sem cerimónia:
- Senhor… Aka…
- Akalesela.
- Esse nome é Sul-africano?
- Não, é mwangole… angolano.
Ela aperta as pernas e encolhe o corpo com receio do gato que entretanto optou pela vigilância ostensiva. Ela olha-o e sente receio por causa dos seus olhos: Ele tranquiliza-a:
- É um korat tailandês. É suave e manso, de olhos verdes grandes e luminosos. Na Tailândia dizem que trás sorte. Aqui a sua função principal é afugentar os ratos.
- É, costumam garantir-me que os ratos têm muito feitiço.
- Creio que querem é obrigar-nos a que os “ratos” façam parte das nossas famílias.
Akalesela olhou-a um tanto ou quanto atrevidamente. Ela sentiu porque se remexeu. Ele sacanamente torna-se incisivo:
- Admiraveis dotes físicos... faltam os atributos da sua linhagem.
Ela entendeu e antes de se apresentar olhou para o quadro e desvaneceu-se:
- Ai meu Deus, essa pintura dá-me arrepios... chamo-me Sadina Ma Yuan Elizabeth Dupont Abu Bakar
- Muito bem… divorciou-se de um português, de um chinês, de um inglês, de um francês e de um árabe.
- É complicado, nada disso… parece-me que quer imitar o Sherlock Holmes. Bom… mudei de nome. É a moda actual para abrir as portas em qualquer ministério. Sabe, eles são muito sensíveis a estrangeirismos.
- Diria, seguidores do surrealismo.
- Não, do atavismo.
- Então como prefere…
- Bom, deixe-me ver. Dada a actual conjuntura pode tratar-me por Ma Yuan.
Claro que Akalesela duvida. Calcula que é mais uma amante de um novo-rico. E envereda pela tentação do óbvio.
- Creio que tem boas ligações… boas experiências patrimoniais.
- Sim, não me posso queixar. Aproveitei bem a nossa independência.
- Essa aspiração que todos desejam mas só poucos beneficiam. Tem ocupação profissional?
- Sou médica e oficial da polícia. Mas, por favor não me pergunte como consegui isso.
- Com feitiço… deduzo.
- Claro, claro… com muito feitiço.
Ela assustou-se. Apontou com o dedo para o tecto. Recolheu-o e colocou a palma da mão na boca. Ele socorre-a.
- Não receie. É uma vulgar osga inofensiva que come insectos. Apanha mosquitos, ajuda-nos a evitar o paludismo.
A energia eléctrica retornou. Kakulu-Ka-Humbi diz que vai desligar o gerador. Ma Yuan devaneia:
- Como se chama um governo que nos rapina a água, a luz, nos espolia as casas, as terras e deposita tesouros na Ilha do Conde de Monte Cristo?
- Um governo para o povo das cavernas.
Ela examina os tempos novos:
- Nos tempos de hoje é inconcebível. Mas ainda existem dessas coisas. Acho que é um governo de militantes militarizados. Não acredito que seja possível existir democracia, quando os mesmos que fizeram a guerra conduzem o poder. Como não querem passar à reserva, acham que são imprescindíveis para continuarem o ciclo cavernoso.
Kakulu-Ka-Humbi apressou-se porque sentia a infernal curiosidade feminina. Ligou o disjuntor geral e abismou-se na conversa: 
- África negra dos lamentos eternos. Com a liberdade renascida e sempre recusada, a retroceder nos milénios perdidos.
Ma Yuan acrescenta:
- África negra do oiro, dos diamantes e do petróleo. Dos rios e das terras vastas e férteis onde se morre de fome e de sede.
Akalesela replica ultra convencido:
- A melhor maneira para aguentar esta coisa é imaginar que estamos na selva.
- De facto assim é. – Confirmou Ma Yuan.

Imagem: unblivre.blogspot.com

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