Ficaram em
silêncio durante
uns momentos. Ela
finalmente introduz o motivo da visita:
- Moro num prédio
desses de cinco andares… que por milagre
ainda está de pé. Há muitos anos que está
enfeitiçado. Mas ultimamente é demais, insuportável... enfeitiçaram a luz e a água.
- Tem a certeza?
Já falou com
essas empresas? – Perguntou Akalesela
sabendo de antemão que a resposta será em vão.
- Se o tivesse feito não viria
aqui... essas empresas?! Ninguém
consegue descobrir os feiticeiros que estão por detrás delas. Olhe senhor Akalesela, a caixa
do elevador está cheia
com o lixo
dos feitiços. Já
lá apareceram três cobras.
Os fusíveis estão sempre
a queimar. Nas escadas
entre o primeiro
e o terceiro andar
já escapámos de vários
incêndios dos cabos
eléctricos. Os técnicos que vão lá reparam, mas
poucos dias
depois fica tudo
na mesma. É um
grande feitiço.
- Não se preocupe mais com isso,
vamos dar início aos trabalhos.
- Agradeço-lhe muito senhor Akalesela.
- Pode dispensar
o senhor.
- Está bom, muito obrigado, também
temos outro feitiço.
São as infiltrações de água dos vizinhos
de cima. Quando
lhes dizemos que
no nosso tecto pinga água,
especialmente na cozinha
e na casa de banho,
eles dizem que
de cima não
é. Então isto
não é um
grande feitiço?
- Certamente.
- Pois, Akalesela. Outro mistério é as camisinhas, não sei se está a ver…
- Estou.
- Aparecem nas escadas, e apesar da vigilância
que fazemos nunca
vemos ninguém. Acreditamos que as utilizam para fazerem
feitiços sexuais.
- É muito possível.
- Senhor…ah! Akalesela, outro grande mistério é o lixo nas
traseiras e os baldes
de água suja
que atiram das varandas.
Nunca se consegue saber
quem é. Pessoalmente
já vi alguns
vizinhos a fazerem isso,
mas negam categoricamente que não são eles. Dizem
que são
os espíritos dos nossos
antepassados.
- Provavelmente estarão correctos…
ainda são coisas da tradição.
- Apesar
de termos um
segurança no prédio,
estão-me sempre a roubar
os piscas do carro. De dia e de noite
ouve-se martelar nas paredes.
Os vizinhos não
sabem explicar a sua
origem.
- Ma Yuan, o feitiço
descambou na história da nossa tragédia nacional.
Um hábito
corriqueiro do dia-a-dia.
- Confesso-lhe que sim. Por
exemplo, o filho de uma minha amiga
envenenaram-no porque foi promovido a chefe.
Alegaram que ele
lhes estava a roubar
o emprego. Uma minha
prima passou a secretária
do director, ele confidenciou-lhe para ter muito
cuidado com
as comidas das colegas,
porque sabia que
queriam envenená-la.
- Ma Yuan, isso é muito trabalho. Por favor dê-me a localização:
- É na Ruela Muito
Mal Iluminada. O meu
apartamento é o quarto
esquerdo. É muito fácil de encontrar
pois só há um prédio.
- Fale-me dos moradores… dos vizinhos.
- A maioria é jovens moças, cerca
de seis. Tem lá
dois rapazes.
A mãe foi para
as Lundas à procura dos diamantes. Nunca
mais voltou. O pai
tem três mulheres.
Para a última
construiu uma casa no terraço
do prédio com
restos de madeira
e alguns tijolos.
A vida delas é procurar
a sorte nas noites.
Akalesela, isto parece-me ainda pior: São cinco
filhas de mães diferentes.
Muito confuso. Os homens
entram e saem. A casa está sempre inundada de água
porque as torneiras
estão danificadas. Não as reparam porque dizem que
isso traz feitiço.
Nas traseiras têm dois
cães que
enfeitiçaram para roubarem dinheiro
aos vizinhos.
Entretanto Akalesela recorda-lhe:
- As desgraças
que se ouvem e lêem nos
órgãos de informação,
e as que são
ditas à socapa farão com que sejamos
um grande
canteiro de cemitérios.
Ma Yuan lembrou-lhe o suprassumo
da feitiçaria:
- Akalesela, porque não fazes um feitiço para
apanharmos muitos diamantes?!
- Há dois
feitiços que
são extremamente caros... para descobrir petróleo e garimpar diamantes.
- Quanto
custa um
feitiço para obter o bilhete de identidade?
Akalesela limitou-se a
responder-lhe:
- Estamos é a ficar
sem humanidade.
- Humanidade não,
desumanidade. Seres
humanos não,
desumanos.
Ma Yuan continua a falar da feitiçaria dos vizinhos:
- Como dizia, continuando, tenho duas filhas casadas que residem há muitos
anos na África do Sul.
Faz uma pausa
depois diz a sorrir:
- Posso assegurar-lhe
que não
tenho marido, só de vez em quando. Bom, no apartamento onde reside
o autopromivido a patrão do prédio, a esposa
está quase sempre
em Portugal, dizem. Ele
tem muitas damas. É outro novo-rico dono
de uma empresa de segurança
e de alguns armazéns.
Muda constantemente de carro, agora anda
com um
BMW. O segurança do prédio
é da empresa dele. Mas mesmo assim são muito
medrosos. Quando
chegam ou estão de partida o segurança protege-os. Andam sempre doentiamente desconfiados.
Nunca dormem descansados. Akalesela… consegui enfeitiça-lo, agora é meu namorado. O carro
com que
ando foi ele que
mo ofereceu. Conheço bem os homens
e sei do que eles
gostam na cama. Ele
aos fins-de-semana vai para os arredores
da cidade. Muitos
como ele
frequentam uma igreja do feitiço
numa mata escondida.
Kakulu-Ka-Humbi ouvia com extrema atenção. Achou que
o tema lhe
pertencia e serviu a sua colherada parabólica:
- Nasceram num sítio qualquer da rua. Ele cedo aprendeu a engraxar sapatos para sobreviver. Depois
aprendeu a arte de roubar.
Roubar é uma arte, duvidam?! Ela cedo aprendeu a vender o seu corpo para sobreviver. Depois tornou-se especialista
em dar prazer aos homens. Sexo é uma arte, duvidam?! Ele
mais tarde
terminou os seus dias
ao encontrar uma bala
certeira policiada. Nunca
soube o que é ser
feliz. Ela terminou os seus dias ao encontrar a SIDA. Também nunca soube o que
é ser feliz. Na Angola de hoje,
especialmente os jovens,
recusam-lhes e espoliam-lhes a felicidade.
Parece que Ma Yuan não
entendeu patavina e continua a desnovelar a corrupção da feitiçaria.
- Há também um casal de
são-tomenses com três
filhos, são muito discretos.
Pouco se sabe sobre
a vida deles. Mas
sabemos que são
desafogados.
Kakulu-Ka-Humbi mostra
a beleza, o devaneio da sua poezia:
- As suaves asas da suave pomba branca outra vez sem paz, neste céu parecendo azul, fugiam desta vermelha
terra sempre em guerra.
- Pois é, noutro
apartamento tinha lá muitos filhos. Depois espalharam-se pela
África do Sul e Portugal. O pai
tinha muitas mulheres.
Quando se preparava para
casar com a vizinha, fugiu-lhe, escolheu outra e casou com ela. Quando vinha em casa, sempre
com os copos,
fazia-lhe um filho
para evitar que ela se
comprometesse com outro.
Kakulu-Ka-Humbi intromete-se
e tenta explicar o que é o amor:
- O amor tem muitas faces
e muitas cores. Meu
Deus! Como
são estranhos
e insondáveis os amores
de uma mulher.
- Ainda noutro
apartamento é uma grande confusão.
Imaginem, são cerca de vinte filhos de quase
quinze mulheres. Cerca
de meia dúzia
estão lá, os outros
andam espalhados por aí. E o pai
negou a paternidade a dois
deles.
Kakulu-Ka-Humbi inssite,
revela-se como poetiza:
- As crianças dançavam na areia
do lixo iludindo-a. Uma árvore completava essa tela.
Decerto, Van Gogh pintaria as crianças no lixo
da areia.
Apesar de confusa
devido às interrupções de Kakulu-Ka-Humbi, Ma Yuan prossegue com o relatório:
- No prédio também
lá vive um branco
português casado
com uma angolana e um
filho. A filha
há muito que
está em Portugal. Passa
o tempo agarrado
ao computador, a estudar e a escrever
ninguém sabe o quê, mais parece um eremita.
Akalesela parece enigmático
ou mordaz:
- A diferença que
existe entre um
cavalo e um
homem é a seguinte:
um cavalo
corre, um homem
também. Um cavalo
come, um homem
também. Um cavalo
tem quatro patas,
um homem
tem duas mãos e dois
pés. Um
homem tem cérebro.
Alguns homens
pensam que um
cavalo tem cérebro para
transportar os homens
que pensam. E também
para transportar alguns homens que pensam que
tem cérebro.
- Tem
também um casal
do Uíge com quatro
filhos extremanete reservados. Não falam
nem dão confiança a ninguém. E claro, tinha que ser, noutro apartamento (?)
vivem o que se pode chamar
os destruidores do prédio.
O marido tem duas mulheres
e elas convivem harmoniosamente.
E lá vivem ou dormem quase vinte pessoas. Não se
sabe bem quem
são os pais.
É o que se chama
uma casa fora da lei. A desordem é visível… são
terríveis. No centro
do andar alugaram um
quarto exíguo
onde vivem seis
pessoas. Não
sei como conseguem, acho que dormem uns em
cima dos outros.
Kakulu-Ka-Humbi dá
uma achega da sua sociologia:
- Uma sociedade para funcionar
correctamente necessita de ter tudo no lugar. Para ilustrar isto, lembro-me de um
investigador que
estudava as tartarugas e as aves. As tartarugas
nasciam, corriam para o mar.
Antes de lá
chegarem, as aves predadoras caçavam
algumas. Ele tentou intervir
para que as tartarugas não
diminuíssem. Rapidamente descobriu que
estava a cometer um
grande erro.
Se as tartarugas aumentassem haveria menos comida. O
sistema seria abalado. Se uma sociedade não estiver
bem organizada, cada
um no seu
lugar, na sua
função, cada
sector com o seu
técnico, o seu
profissional, o médico,
o engenheiro. A classe
política deve preocupar-se para que haja sempre uma ligação
verdadeira e salutar desde o topo à base. Se isto não funcionar o país também não funcionará e não
durará muito tempo.
Finalmente as pessoas deixam-se dominar pela feitiçaria e a sociedade deixa de existir.
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