«Nos ordálios, o adivinho mistura o veneno
com água
e obriga os presumíveis culpados a pegar numa colher de pó e a
ingeri-lo com água.
Devem tomá-lo em jejum. Passado pouco
tempo, um
dos acusados vomita com fortes convulsões;
a sua inocência
está provada. Outro morre. Embora a morte seja rápida, não deixa de ser horrorosa, porque
chega entre
convulsões e vómitos de sangue, com a boca cheia de espuma e os olhos
injectados de sangue.
Kalunga (Deus) aparece em vários grupos etnolinguísticos angolanos, norte
da Namíbia, fronteira de Angola (nordeste)
com o Congo
(Zaire) e em grupos
junto ao lago
Kivu e lago Tanganica. Kalunga, etimologicamente,
significa «aquele que,
por excelência,
reúne». Em diversas línguas
bantus, significa também o mar, o oceano,
o infinito, a morte,
o rei do mundo
subterrâneo ou
mar, o que
atrai a chuva. Kalunga
Também é certo que, depois duma história
de guerras, epidemias,
fomes, escravidão
e enfermidades endémicas, já se habituaram a morrer.
A mortalidade é tão
elevada e a morte
tão imprevista
que se lhes
tornou familiar. «Esta familiaridade com
a Morte é também
uma herança africana».
Fatalismo irremediável, resignação, gozo
pela passagem,
diminuição do ser,
mistério e absurdo,
desgraça, impotência,
transtorno social,
consumação, nova
realização individual
e comunitária, revolta
perante um
violento desastre
antinatural, segurança,
receio? Nenhuma destas definições
esgota o sentimento
bantu ante a morte,
mas parece que,
no seu conjunto,
a definem.»
In Cultura Tradicional Bantu. Pe. Raul Ruiz de Asúa Altuna. Ed. Paulinas
Ela
narra-lhe as peripécias porque passou:
- Fui
assaltada... se de dia é assim, significa que quase não se pode andar
na rua.
- Minha águia,
imagina à noite, os prédios parecem o
cenário perfeito do filme, O Exorcista.
- Bom… já sabes que a avó me
deu uma pedra-verde, uma esmeralda pura e rara que vale mais que um diamante. É um amuleto mágico. A avó ensinou-me como
me transformar
em águia
para descobrir e apanhar as pedras de fogo que os feiticeiros maus
guardam no cimo de altas
montanhas e nos grandes precipícios. Ela
aconselhou-me: «Minha neta
não confies neles, são
muito falsos.
Foram enviados pelos
feiticeiros do mal
para acabar com a nossa raça. Essa luta já dura há
milénios. Os feiticeiros do mal fingiram que
apoiaram a nossa independência, mas não. Utilizaram frases
muito bonitas para
nos enganarem, e agora
já têm o poder
total. Temos uma grande
luta pela
frente, acabar
com o feitiço
deles, e regressar aos tempos
em que
andávamos em liberdade,
com os seios
nus, quase
nuas ao luar sob
o olhar das árvores
e da água dos nossos
rios.
Ela faz uma pausa, depois continua a narração:
- O prédio está cheio
de pessoas transformadas em
serpentes. A
pedra-verde deixa ver
isso. Ninguém
conhece Ma Yuan. O nome que lhe dão é a
Army. As serpentes do quinto esquerdo disseram que ela é muito perigosa. Leva
os homens para
a cama, domina-os e depois
rouba-lhes as casas e os automóveis. Foi assim
que conseguiu apanhar
um armazém
a um estrangeiro.
Por enquanto
ainda não
está transformada.
Ele
intervém:
- Os feitiços estão desenvolvidos
de tal maneira
que não
se consegue distinguir quem
dirige o país. Todos
mandam: amante, deputado,
embaixador, empresário
nacional, empresário
estrangeiro, comerciante
nacional ou
estrangeiro, ministro,
general, comandante
da polícia, segurança
do estado, assessores,
filhos e filhas, directores de empresas estatais,
governadores, bispos
e padres de seitas
religiosas, partidos políticos que
mendigam dinheiro, fundações
derivadas do poder, organizações
não governamentais…
Ela interrompe-o:
- Os
EUA a Europa…
- E agora os chineses.
Ela vai mais
longe:
- São os feiticeiros
maus. Este
sistema de governação é terrível, e não
há nenhum partido
político que
nos socorra.
Nem conseguem organizar
uma manifestação.
- Só querem dinheiro, é o novo
empresariado angolano.
Ela volta
a falar do prédio:
- Num
apartamento as moças imploraram-me: «há dois dias que não comemos. Moça, dá só
algum dinheiro
para comer, temos fome.» Depois
falei com o português foi muito
mal-educado. Recebeu-me a dizer,
que vão
para a puta que
os pariu mais os vossos
feitiços. Que
está farto de aturar
feiticeiras. O rosto dele já tem sinais
de estar quase
enfeitiçado.
Ele culpa
a informação que
não informa:
- Por não
cumprirem os preceitos estabelecidos na
lei, a rádio informa com verdade, o jornal dos anúncios
e a TV do telejornal está a recomeçar, deviam ser encerrados por actos de vandalismo da informação.
- A avó
disse-me, que a independência
é para melhorar
a vida das pessoas,
não é para a piorar.
Era melhor
ficarmos como estávamos antes. Agora só nos resta esperar que a fome nos mate.
- Querida, quando
os feiticeiros fiscais
apreendem três travesseiros,
dois cabides
e um alguidar
com bananas…
- No reino do bananal.
- Quando chegar o dia da justiça, os que
nos roubam e enfeitiçam serão julgados.
Ela analisa o comportamento
do rico:
- O rico zomba do pobre convencido que
o dinheiro lhe
dá inteligência. Sem
se aperceber o rico é escravo da inteligência do pobre. Porque é
este que
realiza as obras que
ele encomenda.
O rico nunca
se apercebe que o pobre
acabará por tomar
o poder. É esse
o destino trágico
dos ricos. Nascer,
viver e morrer
ingloriamente nas mãos dos esfomeados.
Ele dá mais
pormenores:
- A riqueza do rico é inútil, porque
a utiliza para si,
e para fazer maldade aos outros.
Defende a sua felicidade
convencido de que
os outros são
inferiores, porque
não conseguiram roubar
como ele.
Depois quem
tentar imitá-lo não
o deixará, porque
se sente inseguro que
outro qualquer
obtenha o mesmo poder
que ele.
Ela fortalece:
- O rico vai explorando o pobre.
Descobre tardiamente que a sua casa foi incendiada porque
a revolta chegou. Sem
dúvida que
o Iraque é-nos disto revelador. Os ricos
enriquecem pelo prazer da
maldade. Gostam de olhar
do alto do seu
pedestal e dizerem: «somos ricos!» Enquanto viver não haverá outro
como eu.»
Ele alerta:
- O que vale é ilegalizar o que
é legal. Num país sem
lei para viver, só é possível através
da ilegalidade. Quem
quiser investir ou
trabalhar com
honestidade tem que
fugir, para dar o lugar aos modernos samurais
da espada mortífera.
Intelectuais e honestos
que restem não
terão muito tempo
de vida, porque
as novas hordas
bárbaras destroem tudo por onde
passam.
Ela está mais
que convencida:
- Os feiticeiros estão a dominar
o mundo. Transformaram a espécie humana
numa civilização de serpentes.
Tem pedras de fogo
espalhadas por todo
o lado. Funcionam como
as células da Al-Qaeda, não se sabe quem
é o chefe.
Ele protesta:
- E eu que
acreditei em Deus
e nas pessoas. Hoje
verifico o quanto estava errado.
Ela começa
a levantar-se devagar, sente-se apreensiva:
- Não sei por quanto tempo
suportaremos este lar.
-
Majestade agora sem penas, lar tem origem romana, nos deuses dos lares
romanos. Um
feitiço que
continua.
Ela caminha
lentamente para
a cozinha e confessa-lhe:
- Olha,
no prédio já pagaram metade da dívida. Fizeram contribuição. A Ma Yuan faz
a cobrança... vou arranjar qualquer
coisa para comermos.
Já na cozinha quase
lhe grita:
- O patrão do prédio
faz parte de uma célula
de feiticeiros!
Faltava descobrir os três elementos que
completavam a célula. As suspeitas iam para as empresas de água,
electricidade e fiscalização. E dirigiram-se a cada
uma delas. Ela levava a pedra-verde. Foi
quase impossível
falar com
os directores. Ora porque
tinham milhões de documentos
para assinarem, ora
porque reuniam de minuto
a minuto, ou
que estavam cansados porque falavam muito.
Mas Kakulu-Ka-Humbi sabia muito bem como os dominar. A indumentária
era uma derrota
para quem a
olhasse. Apenas uma blusa
preta transparente, onde os seios nus provocavam
qualquer olhar mesmo que distraído. Uma saia
branca também transparente que deixava para a posteridade a intimidade
da lingerie. Quando
lhe perguntavam quem
deviam anunciar respondia:
- Huang He, da empresa de construção chinesa
Zhengzhou.
E assim penetrou e foi recebida como
uma rainha nos
feudos mais
fortificados e enfeitiçados.
E depois em casa os
detectives balanceavam o trabalho. Ela desvenda-lhe
os feiticeiros:
- São eles as serpentes que
faltavam. Cada célula
é composta por
quatro. Neste caso
a cobra-capelo dirige as águas, a naja,
a electricidade, a mamba dirige o prédio, e o King cobra,
o chefe da célula,
a fiscalização. Para acabar
com eles
temos que descobrir
onde está escondida a pedra de fogo.
Ele mostra-lhe um e-mail
recém-chegado. Ela lê-o:
- Cuidado saborosa!
Se não parares, vamos apanhar-te e depois sentirás as delícias
do teu sessenta-e-nove. No fim serás engolida durante
esse acto de prazer.
Ele reage:
- Não sou, nunca
serei um vencido.
Ela não
denota preocupação:
- São apenas ameaças para nos meterem medo. Acho que não nos devemos preocupar.
Imagem:
João Stattmiller
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