sábado, 10 de dezembro de 2011

SONHO DE UMA NOITE TROPICAL (03)


O Hepatite e a Qualquer Um Serve desconversam. O Hepatite pergunta-lhe:
- Acreditas em Deus?
- Sim, dá aí mais uma cerveja, põe na conta Dele. E unidos beberemos.
-A grande epidemia nacional. As crianças também são incentivadas pela família a beber. – Comenta o Vodka.
- As festas costumam acabar em pancadaria e tiros. – Acrescentou o Almirante.
A senhora da cerveja trouxe mais uma caixa. A orientação que tinha era quando a cerveja acabasse, que a renovasse. Claro que estava sempre atenta. O Almirante bebeu e tagarelou:
- Isto não tem nada de extraordinário. Há quinhentos e tal anos que praticamos este desporto tradicional. Claro que agora exageramos. Somos o que resta da nossa civilização, e como o nosso tempo está a acabar, nada melhor do que acabarmos em beleza com a nossa raça. Temos pouco tempo para beber porque o nosso fim está próximo. Queremos acabar com a nossa existência bebendo dia e noite… morrendo felizes.
- Um copo para todos e todos para um copo. – Apoiou o Vodka.
- Boa noite dedicados apóstolos. Como adoro esta magia, este feitiço nocturno.
- Boa noite querido Pragador. – Respondeu a Caribenha.
- Pelas sete pragas que nos afligem. Só uma pessoa me saúda?
- Nunca ouvi falar dessas pragas. Prefiro estas maravilhas. Observou o Almirante olhando para as cervejas.
- Sabem quantas maravilhas existem no mundo? – Perguntou o Pragador.
- Não, ninguém sabe. Se fossem marcas de bebida. – Respondeu o Hepatite.
- Eu sei, são sete. – Afirmou o Filósofo.
- Não, são oito. – Explicou o Pragador.
- Duas fábricas de cerveja, uma grande garrafeira, as maratonas, as festas de aniversário e casamentos, as importações de bebidas, e uma grande cervejaria. E sabem qual é a oitava? É a fome! As sete maravilhas da nossa desgraça são: a malária, a Sida, a doença do sono, a tuberculose, o sarampo, acidentes de automóvel e o álcool. Uma praga especial que origina as outras é as comissões.
- Tem muita razão. – Concordou a Caribenha.
- Como lhes prometi, já acabei de compor a minha versão do Pragador. Se me derem licença gostaria de lê-la em primeira…
O Pragador é interrompido por gestos nervosos do Vodka. Este olha para a esquerda e para a direita. Diz:
- Agora não, noutro dia, noutra noite.
- Pelas sete pragas que nos afligem. – Praguejou o Pragador.

A caminhar calmamente aproxima-se mais um apóstolo. De fato e gravata, sapatos pretos que brilham com a luz das velas acesas das vendedoras. Cabelo bem penteado. Muito altivo e sereno. O seu corpo e os óculos que usa lembram alguém muito conhecido, muito admirado. Cumprimentou com voz firme:
- Boa noite camaradas!
- Boa noite camarada Presidente. – Entoaram todos.
Entretanto, o Almirante explica em voz baixa ao Vodka, que o recém-chegado não bebe, e que as suas conversas são sempre citações do falecido presidente Agostinho Neto, daí o nome de camarada Presidente, ou simplesmente Presidente. Costuma citar que haveremos de voltar a assumir os destinos do País. Quando fala os presentes ficam muito pensativos, e escutam-no também com muita atenção. O Presidente diz:
- Juramos-te camarada Presidente, que levantaremos cada vez mais alto o facho aceso do teu exemplo, da tua determinação e perseverança lutando para merecer cada vez mais a honra de pertencer ao destacamento de vanguarda da classe operária que tu tão fielmente dirigiste. In 15 De Setembro de 1979. Juramento do Comité Central do Mpla.
Uma zungueira corre pela rua a gritar O alguidar baloiça-lhe na cabeça, as coisas no interior querem saltar. Um carro da polícia persegue-a, pára e descem dois agentes. Atiram-se à zungueira e roubam-lhe o alguidar. A Caribenha prepara-se para auxiliá-la, mas o Almirante segura-a. O carro arranca veloz na companhia da noite. O Almirante comenta:
- Isto é uma república das bananas.
- República da selva. – Diz o Filósofo.
- República sem bananas. – Acrescentou o Vodka.
- República dos bananas. – Insultou o Branco.
- Deixa lá que no teu país… – Não terminou o Hepatite.
- No meu país?! O povo gosta muito de votar num partido em que se ganha dinheiro sem trabalhar. A actividade principal é assistir a jogos de futebol. Por causa disso abandonam o trabalho. A outra labuta é falarem muito. Votam muito num candidato que lhes promete que ganhar dinheiro é fácil. É o fardo do fado. São todos fadistas. Carregam o embalar dessa nostalgia, à espera que o nevoeiro se dissipe, e chegue o Desejado. Os desejos são poucos. Sem enfado do vinho, aprecia-se um bom fado.
O Presidente finaliza:
- Em Angola vive-se um clima de mobilização geral. Os colonos estão armados e organizados em milícias como em 1961; o período de prestação de serviço militar foi prolongado para 4 anos e o orçamento português prevê 42% do seu total para as despesas com a guerra colonial: mais de 6.000 milhões de escudos! O inimigo procura também desmobilizar o Povo com a corrupção e com algumas concessões às reivindicações do nosso Povo. Sem dúvida que a alguns sectores da nossa população foram concedidas melhores condições de vida, mas não se modificou certamente a base material em que vive a grande maioria. In Agostinho Neto.1 De Janeiro de 1967. Mensagem de ano novo.
- Bom, vamos bebendo as nossas cervejas. – Disse o Vodka.
- Bebem e não comem. Isso faz mal. – Criticou o Branco.
- Prefiro gastar o dinheiro na bebida. – Desabafou o Hepatite.
Ouve-se como que uma só voz saída das habitações. Um oooh!, muito longo.
- Mais uma falha de luz para nos confundirmos com a noite. – Falou o Filósofo.
- Porra!. Nem se consegue ver a telenovela! – Disse uma jovem na janela.
- Vai lavar a loiça. – Disse um vizinho.
- Hoje não é o meu dia, seu atrevido. – Esclareceu.
Sentia-se como que numa vitória o aumento do caudal das latas e garrafas espalhadas pelo chão. As mamãs ao amanhecer cuidarão devidamente do local.
A Treze Anos, é este o nome devido à sua idade, grita.
- Quem me dá o saldo? Quem me dá o Saldo?
- Aqui não há ninguém com saldo. Já perderam a tesão por causa da cerveja.
- Seu mal-educado. Saldo para o telemóvel, o prazo termina hoje.
- E o que é que me dás em troca?
- És muito interesseiro.
- Vou-te dar o saldo, mas depois vais dar uma volta comigo.
- Está bem.
O Eleitor repete sempre a mesma coisa.
- Vou votar… não vou votar.
Um grupo de jovens aproxima-se do embondeiro. Estão agitados.
- O que é que se passa aí com os jovens? – Pergunta o Almirante.
- Não sei. – Respondeu o Vodka.
Um jovem sobe pelo embondeiro, enquanto outros aguardam em baixo na expectativa. Em seguida um camaleão cai no chão. Um jovem dá-lhe um pontapé. Outro apanha-o e coloca-o numa caixa de papelão. O Almirante fala-lhes:
- Não façam mal ao animal, é inofensivo, só come insectos.
- Puseram-no aqui para nos fazer feitiço. – Informou o jovem.
- Ó jovem chega aqui. – Ordenou o Almirante.
- Sim pai.
- Conta lá bem como é que foi isso.
- Os escuteiros colocaram o camaleão no embondeiro e ele subiu muito devagar até esconder-se lá em cima, num ramo. Estava muito verde. Os escuteiros tiraram-lhe muitas fotografias, até o filmaram. Disseram que estavam a contribuir para o equilíbrio da natureza. Era grande, tinha mais ou menos quarenta centímetros de comprimento. Depois dos escuteiros saírem alguém começou a dizer que isso era para fazer feitiço. Depois começamos a sentir medo.
O Almirante perde a calma, enerva-se, a sua voz parece um trovão:
- Aqui temos as taras mentais, os sindromas da guerra. Tão cedo não nos libertaremos disto. Um grande manicómio é o que somos. Um ser humano que mata um animal inofensivo por pura maldade, por pura selvajaria, não merece viver. O seu lugar é na selva, junto com os animais mais ferozes. São piores que eles. Têm instintos de maldade, matar, matar seja o que for. Sempre protegidos pela impunidade. Creio que nem daqui a cem anos ou mais conseguiremos ressuscitar os nossos belos costumes perdidos. Se Deus realmente existe, o que duvido, Ele deve ser terrível.
- Porquê? – Perguntou intrigado o Vodka.
- Deve sentir-se muito contente com a maldade, que é o que mais se vê, porque bondade também não se vê. Uma sociedade educada na maldade acaba sempre em escombros. Como se costuma dizer, nem os sapatos se aproveitarão.

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