terça-feira, 6 de dezembro de 2011

SONHO DE UMA NOITE TROPICAL (02)


A
Marina Paiva

- Muito interessante é escutar um secular alaúde. – Sentenciou o Branco, como se estivesse numa aula de música
O Trovador gostou do que ouviu, tocou e cantou: Todos os partidos/ falam em eleições/ não falam no bem do povo/ querem ser mandões/ não ensinam o povo/ que quer ler/ todos querem/ o poder/ Os deputados estão a pensar bem/ querem aumento de vencimento/ enquanto os esfomeados da Tchavola/ dormem ao relento.
- Esse tipo trova de mais. – Provocou o Vodka.
- Já está bêbado. – Disse convicto o Almirante.
- Gosto muito do som do alaúde. – Aplaudiu o Branco.
- São instrumentos musicais dos brancos. Não tem nada a ver com a nossa cultura. – Retorquiu o Vodka.
- Se não gostam, deixem ouvir quem gosta. – Redarguiu o Branco.
O Trovador notou que alguém gostava de o ouvir tocar. Ajeitou-se e recomeçou:
- Neste país sem fim, canto de província em província,
Há mais de quinhentos anos/ com o meu alaúde e uma tela/ toco os sons e retoco as cores/ do que ainda se chama Benguela.
Ruínas vi, só vejo ruínas/ e um rei que governa a ralé/ os mortos e os esfomeados/ aguardam-no no Bié.
Lá começou o Reino do Congo/ parecia uma história linda/ agora dele só resta uma riqueza/ o petróleo para o novo Rei de Cabinda.
Muito lá no fundo muito esquecidos/ como os conquistados de Marraquene/ abandonados na selva perdida/ estão sem reino os do Cunene.
Trinta anos de celeiros vazios/ nem dá para viver do escambo/ as vozes da oposição terminaram/ não há futuro para o Huambo.
Considerada a beleza do Universo/ mulher e gloriosa mumuila/ já nem para turismo servem/ as abandonadas da Huíla.
Também andei pela Argentina/ e de lá trouxe um tango/ temos que mudar a dança/ nas terras do Kuando Kubango.
Vi populações que nascem/ sofrem sem nenhuma sorte/ um destino cruel sem futuro/ no quilombo Kwanza Norte.
Parei no Wako e no Sumbe/ parece que o mar ainda é azul…
O Vodka gostava, ou melhor odiava, pouco de poetas, de filósofos e nada de trovadores. Levantou-se do assento que era uma tábua em cima de dois tijolos. Mostrou o seu corpo alto e muito forte. Ameaçou:
- Mandem calar esse gajo senão ainda vamos presos. Estamos aqui para nos divertir e beber o nosso copo. Essa conversa não nos interessa. Não quero saber de política nem de discussões intelectuais. Vamos beber o nosso copo que é o único amigo em quem confio.
Surgem três indivíduos desconhecidos, provavelmente da secreta, que cercam o Branco. O Almirante pergunta ao Vodka:
- Sabes quem são?
- Não.
Vodka aproxima-se das personagens e exclama-lhes:
- Boa noite! Aqui somos todos militares!
- Sim boa noite. Não há problemas. – Respondeu um deles.
- Ó Branco! Fica aqui no meio de nós. Assim ficas protegido. – Aconselhou o Almirante.
No centro do sítio do Pauauschwitz estava um embondeiro com muitos anos de vida. Lembrava a majestade de uma estátua de elefante. Como não havia onde descansar o trabalho que os rins fazem depois de beberem muito líquido, neste caso cerveja, era o local adequado onde todos urinavam nas muitas dezenas de anos ingloriamente terminados, pelo ataque da urina a destruir a terra onde as raízes humanas da vegetação não resistiriam por muito tempo. E havia alguém que habitualmente gritava:
- É hoje, vou matá-los, vou matá-los!!!
- É pá! Chegou o Parricida. – Alarmou-se o Almirante.
- E está com os olhos muito vermelhos. – Corroborou o Vodka.
- Ninguém se meta com ele. Quando está assim faz confusão com toda a gente. Vou falar-lhe – Disse a Liberdade preocupada.
- Ó Parricida... vem cá meu querido.
- Ninguém gosta de mim.
- Eu gosto.
- Não confio em mulheres, não confio em ninguém.
- Não gostas da Liberdade?
- Não.
- Então és um caso perdido.
- Sou.
- Não gostas de mim?
- Já disse que não. A minha Liberdade é as minhas livres bebedeiras. Hoje vou matá-los. Filhos da puta de pais, hoje vou acabar com eles.
- Pai só há um.
- Filho também.
A Liberdade viu o seu tempo perdido. Apelou para o Almirante. Ele viu a questão devido ao olhar que ela lhe lançou. Ele é o mais culto dos apóstolos. Alto e magro, sempre resolve calmamente qualquer contenda. No tempo colonial era professor do sétimo ano. Os assessores militares estrangeiros sentiam-se envergonhados, inferiores, perante reuniões de estudo às quais comparecia. E falou, ou melhor, dissertou:
- Parte dos meios justificam alguns fins. É um desejo reprimido, frustrado. Como não consegue o que quer, isto é, enriquecer facilmente como toda a gente nesta sociedade, imagina… quer uma mulher e colocá-la em casa… mas os pais estão lá. Então para conseguir isso, bebe para lhe dar alento à selvajaria primária e matar os pais para ficar com a casa. Posteriormente vendê-la e gastar o dinheiro em infindáveis noites com mulheres pouco claras, no aspecto de vida social. Depois tentará o suicídio, insistirá e acabará inevitavelmente com a vida.
- Explicar o suicídio é assim tão simples? – Espantou-se a Liberdade.
- Sim. Não tenhamos ilusões. Em qualquer sociedade o suicídio existe. As regras são muito rígidas. Entre nós é a miséria. E quem não consegue adaptar-se, o único caminho é acabar com a vida.
- Entendo, são os tais alienados.
- Precisamente.
- Almirante, acho que as democracias aumentam o número de suicídios, porque será?
- Acredito que uma das falhas se deve, com o tempo, ao esquecimento das minorias. No início a democracia surge como defensora de pequenos grupos, mas ela de facto não têm nada para lhes dar, ficam a viver à margem da sociedade, e só são lembrados em tempo de eleições. Como sentem que a sociedade os abandonou, resta-lhes esse caminho. O cume é quando surge o suicídio colectivo, como por exemplo o que sucede em todas as épocas porque quando o ser humano não encontra o caminho do seu interior, avança, escolhe o mais fácil, a morte em grupo comandada por um qualquer que afirma que encontrou o caminho para o reino do Céu. Como o que acontece amiúde... não pretendem matar os pais, ao invés, incendeiam carros e desmandos conexos. É um alarme. Se as coisas continuarem, e não forem encontradas soluções, como por exemplo a revisão da democracia para os tempos da globalização, acredito que os suicídios serão uma epidemia mundial.
- Pior que a Sida?
- Acho que sim. O nosso modo de viver é mais preocupante, porque perdemos a noção mais fundamental da nossa existência, que é a família.
O Parricida olha para o embondeiro e começa a falar com ele.
- Ó embondeiro dos seculares segredos. É hoje, vai ser hoje. Vou apunhalar esses malditos pais. Depois vou enterrar o punhal com o sangue nas tuas raízes, para que o parricídio seja lembrado. Malditos pais que me geraram. E maldita seja a sombra cúmplice da tua hipocrisia.
Imagem: ... Blake ilustrando O sonho de uma noite de verão de William Shakespeare.
peregrinacultural.wordpress.com

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