segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

SONHO DE UMA NOITE TROPICAL (01)


Prefácio
A
Marina Paiva

A ideia para escrever este trabalho surgiu-me pela caterva de pesadelos ao vivo dos grupos de jovens, que marginalizados pelo despertar das manhãs, em algazarras o mais possível desordenadas, isto é, no cumprimento do dever de despejarem cerveja, vinho e depois uísque pelas goelas abaixo, entregando o país nas mãos de Baco. Creio que é a maior das epidemias que os nossos jovens enfrentam nesta também jovem, incipiente, dolente e dormente democracia.
Curiosamente quase que não existem debates, ou números que nos alertem sobre esta invasão que irá destruir o que em tão pouco tempo foi alcançado, o fim da guerra. Exceptuando os debates das maratonas patrocinadas pela governação, nada mais até agora foi tentado com êxito. Mas os esforços prosseguem… em vão.
A juntar a isto, e creio que tem uma relação, são duas expressões muito utilizadas agora no quotidiano: «depois telefono, amanhã falamos.» Que significam: não vou assumir nenhum compromisso. Alarmado pelo rumo que o nosso futuro está a tomar, já tomou, decidi escrever sobre a grande instituição nacional: o alcoolismo.
O regresso ao deus da mitologia romana, Baco. O bacanal dos alcoólicos que afogam a sua revolta na bebida.
Actualmente quando não se tem espaço em casa para a última despedida de um defunto, ocupa-se o passeio, e depois a rua principal. A maioria dos frequentadores, espectadores, são jovens, meninos e meninas que bebem, melhor, ou pior?, encharcam-se em álcool sem desmamarem/descansarem.
G.G.

Os projectos são elaborados por agências situadas no exterior, às vezes na capital do país, em Bissau. Para um projecto de um milhão de dólares destinado ao desenvolvimento rural, por exemplo, cerca de 15% já são consumidos por taxas administrativas da agência de execução, seja ela a FAO ou outra qualquer. A agência de execução recrutará peritos para executar o projecto, já que os técnicos são raros no país. Estes técnicos custam actualmente algo da ordem de 7.000 dólares por mês. Antes de chegarem os técnicos, é claro, há missões sucessivas: missões de identificação de projectos, missões de estudo de factualidade, de estudos de execução técnica. Durante o projecto há missões de acompanhamento de execução. É normal a metade dos recursos fornecidos ser consumida neste processo, voltando assim o dinheiro oferecido para os países ricos, sob a forma dos salários elevados dos técnicos. Depois, vem o equipamento: os carros para o pessoal do projecto, o equipamento de campo, fotocopiadoras, máquinas de escrever, frequentemente instalações de conforto mínimo – mínimo do ponto de vista Norte – que podem perfeitamente comer mais um quarto do financiamento. Caso tudo se passe bem, teremos cerca de 25% dos fundos fornecidos que chegarão ao destinatário oficial, o camponês, sob forma de assistência técnica, de apoio moral, ou às vezes de insumos concretos. In Ladislau Dowbor. Guiné-Bissau. A busca da independência económica. Editora Brasiliense-1983.

Rua das Sirenes, Luanda, Angola.

Na Rua das Sirenes, os doze magníficos apóstolos da cerveja estão reunidos no sítio do pau. Um pequeno largo de terra que chega e sobra para receber os amáveis bebedores. O número tende a aumentar, mas não consegue ultrapassar as noites, porque estas são eternas, eles não. O nome de sítio do pau surgiu devido ao que sobrou de uma árvore, apenas o tronco. Como os ramos incomodavam os vizinhos, optou-se pelo mais fácil, o corte, a destruição. Mais uma noite será consumida. Chegam as primeiras cervejas.
- Senhora traga mais uma dose, esta noite está muito quente. – Pediu o Vodka.
O Almirante chega sempre com a camisa solta. Os três primeiros botões são esquecidos, como se não existissem. O Vodka chama-lhe a atenção com o olhar. Ele encolhe os ombros e diz:
- Não liguem, estou de acordo com a actual conjuntura.
Bebe uma cerveja, sente-se satisfeito e prossegue:
- Já bebi uns bons uísques, acho que estou com os copos. Daqui a pouco estaremos todos bêbados neste campo de concentração do Pauauschwitz. Os campos de concentração onde as pessoas morrem à fome ainda não acabaram. Pelo contrário, aumentaram. Estão espalhados por todo o mundo. O seu comandante é o Presidente das Nações. Não queremos mais campos de concentração. A hipocrisia não tem limites. Milhões de esfomeados a morrerem à fome em todo o mundo. Isto não é campos da morte? Não é o ressuscitar da solução final nazi? Exterminar pela fome as raças inferiores, e proclamar a raça superior, não se nota nenhuma diferença. Tive o cuidado de prevenir. Estamos bêbados porque não temos Liberdade.
- Boa noite Almirante.
- Boa noite Liberdade… deixa-me acabar.
- Como dizia… uma imagem abre-nos o caminho para todas as outras. O que distingue as cores de duas ou mais pessoas são os nossos olhos. Se o nosso cérebro visse uma só cor, não existiriam raças. Se visse tudo escuro, não conseguiria distinguir a noite do dia. Se visse tudo claro, não conseguiria distinguir a noite. E ao surgir um grande incêndio numa noite muito escura, não distinguiria a cor das chamas. Morreriam todos, os claros e os escuros. A palavra Deus aqui é proibida. Assim acaba de falar o Almirante Zaratustra.
- Que poder de retórica, tão eloquente é este nosso amigo. – Elogiou a Liberdade.
- A nossa melhor amiga é a bebida. VIVA A NOSSA LIBERDADE! – Acrescentou o Almirante.
O Vodka e o Almirante olham com reprovação para alguém que se aproxima.
- Pronto, está tudo estragado, chegou a merda do Poeta. – Disse o Vodka.
O Poeta com a inspiração das cervejas escreveu alguma poesia. Começa a gritar:
- Isto é para a minha querida Liberdade.
A sua cor quase escura (chocolate) / melhor que a noite/ como luzes nela perdidas/
Contudo dia e noite/ mostra-me sempre a beleza/ Tenta falar-me/ e mostrá-la/ mas não consigo encontrar/ a luz clara das suas noites/ e entra-me sempre com a sua beleza/ Caminha sempre na minha direcção/ fico sempre com receio/ das tempestades/ porque ela vem sempre abrigar-se/ e mostra-me a sua beleza/ melhor que a claridade/ das noites
Apenas uma pessoa bate palmas. É a Liberdade. Nota-se algum mal-estar nos presentes.
- Gostei muito meu querido Poeta. – Disse a Liberdade.
- Ainda não acabei, tenho mais. – Lamentou o Poeta.
- Nós também gostámos, mas preferimos a poesia arrebatadora da cerveja. – Disse o Almirante.
- Só faltam o Trovador e o Filósofo. – Lembrou-se o Vodka.
- Parece que adivinham, acabam de chegar. – Anunciou a Liberdade.
- Boa noite meus senhores e preciosa Liberdade. – Cumprimentou o Trovador.
- Muito tempo ausente. – Lamentou o Almirante.
- Andei em campanha pelas províncias. Trovei muito. As pessoas riram bastante e perguntaram donde é que este maluco saiu. - Historiou o Trovador.
- A tocares com um alaúde parece que viestes de outro mundo. Aqui ninguém liga a essas coisas. - Esclareceu o Almirante.
Deixem-me cumprimentar o que resta da nossa Liberdade. – Pediu o Filósofo.
- Estão sempre a pensar em mim. – Entristeceu-se a Liberdade.
- Estou a referir-me à cerveja. – Elucidou o Filósofo.
Este pega numa cerveja e quase a acaba. Fica pensativo, claro, e diz:
- É estranho. Quanto mais dialogamos com a Liberdade, mais nos sentimos sós. Quanto mais entramos no seu mais profundo, menos a compreendemos. Será por ser feminina?
- Apesar de ela ser bela, mostrar a sua beleza e isso é indiscutível. – Acrescentou o Almirante.
- É sempre bela como a noite que chega e depois se desvanece. – Continuou o Filósofo.
- Quanto mais trabalham a sua beleza mais desgraça nos trazem. – Ajudou o Vodka.
- Nunca consegui perceber porque é que ela aprecia aparecer no brilho da noite. – Intrigou-se o Almirante.
- Gosta da noite quanto mais escura melhor, não sei bem porquê. – Filosofou o Filósofo.
- Mulher sem usar perfume não tem valor. Trovou o Trovador.
A Liberdade observava os seus companheiros enquanto bebia uns copos. Disse:
- Parece que sou a única pessoa que existe. Não se cansam de falar de mim.
- És uma Liberdade muito oprimida. – Disparatou o Filósofo.
- Opressores são os seres humanos. Terão todo o tempo que vos prometi. Aguardem que lhes mostrarei toda a verdade. Terão toda a verdade que procurais. Aguardem que conhecerão tudo. Todas as pessoas que encontrarem serão aquelas que lhes envio, para lhes ajudarem a conhecerem a verdade. Não as desdenhem, elas são os meus anjos disfarçados de pessoas vulgares. O mais importante na nossa vida é conhecer a alma das pessoas.
Ouve-se o som agradável do alaúde do trovador. Apresenta-se mais um apóstolo.
- Boa noite divinos apóstolos!
- Boa noite ó Branco. – Cumprimentaram em uníssono.
- Pago uma caixa de cerveja! – Prometeu o Branco.
- Isso é bom para clarear as nossas ideias. – Afirmou o Almirante.
- Estou de acordo, até porque as pessoas despertam-me sentimentos desconhecidos. – Disse o Branco.
- Só faltava a aula de retórica. – Aborreceu-se o Vodka.
Imagem: minhavidanaarte.spaceblog.com.br

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