quinta-feira, 15 de março de 2012

SONHO DE UMA NOITE TROPICAL (15)


- É difícil encontrar um de nós que não tenha traumas devido à guerra. Creio que é por isso que a nossa sociedade está cheia de desumanidade e hipocrisia. O que vimos e fizemos tornou-nos apáticos. Somos quase mortos-vivos. É por isso que bebemos para esquecer o pouco que resta dos nossos sentimentos. – Lapidou o Vodka.
- Ó… ó… Vodka.
- Sim Almirante.
- O Hepatite esteve vários anos na URSS numa academia militar. Chegou e foi promovido a oficial superior. A sua esposa licenciou-se em informática no Zimbabué. Falava e escrevia inglês fluentemente, lia Shakespeare. Tinha um bom emprego. Era independente em meios financeiros. Tinha um carro, comprou outro para ele. Ao Hepatite não lhe faltava nada. Vestia-se com boas roupas, levava dinheiro, pegava no carro e ia à caça das meninas. Tinha muitas namoradas. A esposa falava-lhe, chamava-lhe a atenção mas ele não se emendava, pelo contrário. Eram noites consecutivas de bebedeira com as várias amantes. O dinheiro começou a faltar. A esposa não aguentou e abandonou-o.
- Almirante manda-me descansar!
- Descansa.
- Enquanto outros oficiais abandonaram as esposas porque as consideravam indignas, incultas, porque eles estudaram em academias e elas ficaram a vender gelo, cerveja e outras coisas para sobreviverem. Mesmo que quisessem não tinham meios para estudar, e eles abandonaram-nas. – Concluiu o Almirante.
- Juro! Hoje vou matá-los.
- O Parricida acordou. – Disse o Vodka.
- É o bebe e dorme. De tal modo que fica dois e até três dias a dormir para passar a bebedeira. – Informou o Almirante.
- Não trabalha?
- Não. Ou melhor, de vez em quando. Numa empresa conseguiu aguentar três dias. Noutra uma semana.
- Está a fazer progressos. Onde consegue o dinheiro para beber? – Quis saber o Vodka.
- Rouba o pai e a mãe.
O Parricida pôs-se a cantar um lamento:
- Difícil é andar onde não há dinheiro. Onde não há trabalho. Difícil é andar onde não há bebida. Dum lado sede. Do outro sede.
E então fui na festa/ E lhe vi/ A mulher que mais amei/ Ane Marie.
- Almirante manda-me descansar.
- Descansa.
- Vou votar… não vou votar.
- Pelas oito pragas que nos afligem.
- Se não houver reformas urgentes, vamos ficar como o império romano do ocidente e do oriente, ou pior. – Supôs o Almirante.
- O regresso à eterna escravidão. – Calculou o Vodka.
- Uma escravidão substitui a outra. Não existe uma escravidão melhor. Os que nos escravizam não são diferentes, são iguais. – Apoiou o Almirante.
Ou piores. – Martelou o Vodka.
- Devemos investir mais na corrupção. – Corrompeu o Hepatite.
O Almirante olha para a garrafa de uísque que está a ficar leve. Contrapõe:
- Todo o poder é corrupto. As pressões constantes ao seu redor a isso o obrigam. O ser humano adora o poder. Antes de ser concebido, um dos progenitores foi corrompido. Por isso o ser humano nasce corrupto. Havendo instituições que façam com que os seus defensores sejam independentes, a Lei passa a funcionar como um submarino. Fica completamente estanque, não há furos por onde a água passe. Quanto mais tempo um ser humano dominar o poder, mais aumentará a corrupção. Cada ano que passa é inevitável que surja outro poder paralelo. É como uma mina de diamantes. O ser humano não pode ficar muito tempo no poder. Até consegue corromper Deus. Depois vem a hipocrisia e a superstição. Cortando o acesso à informação, surge a ignorância, depois a pobreza e a fome. Quanta mais ignorância existir, maior será o número de esfomeados.
O Presidente floreia:
- Mas teremos de nos esforçar para ver quem é que, no seio do MPLA, pode de facto ter essa honra de pertencer ao Partido. Quem é que terá essa capacidade revolucionária, capacidade política, para poder pertencer ao partido. Mas será que estamos, de facto, a utilizar toda a nossa inteligência, toda a nossa capacidade de análise para resolver este problema? Eu creio que não. Será que nós podemos fazer aquilo que queremos? Ou não podemos? E se a nossa capacidade é pequena o que é que vamos fazer para resolver? Por vezes, os problemas «acabam» com um telegrama, que se envia à capital e depois fica-se à espera, quando nós próprios sabemos que a capital também não pode resolver esse problema. Só o poder político não chega, porque fica-se sempre dependente doutrem. Há inúmeros camiões, automóveis, avariados. Será que nós não podemos cuidar melhor dos carros? In Agostinho Neto. 5 De Fevereiro de 1977. Discurso na assembleia de militantes em Ndalatando.
O Hepatite está afastado, ocupado com um jovem. Nota-se que algo não está bem. O jovem caminha na direcção da porta de uma vivenda.
O Almirante interroga:
- Hepatite, qual é o problema?
- Era o segurança do brigadeiro. Vinha com a pistola na mão e disse-me, que lhe apetecia dar tiros.
O Almirante abanou a cabeça contrariado. Interpôs:
- A democracia como hoje é concebida está ultrapassada. Para acabar com as questões de fundo que são sempre as mesmas, vota-se de quatro em quatro anos, e a vida das pessoas não melhora. E continua-se a votar na esquerda, no centro, à direita e as coisas ficam tortas. Isto já não funciona. Ninguém acredita nos políticos. É necessário que se altere as coisas…
- Como por exemplo? – Quis saber o Poeta.
- Vamos pôr a Liberdade no concurso de misse. É tão bonita e perfeita de corpo que facilmente sai vencedora.
- Poluição da informação cultural. – Objectou o Poeta.
- Se alguns partidos políticos que não tem nenhuma expressão na nossa sociedade, pedem, e dão um ultimato, que querem um milhão de dólares, quanto pedirei eu que já fiz muito? É o descalabro. Já não existe bom senso. Todos à procura do dinheiro. Quando uma sociedade atinge o estádio final da hipocrisia, a seguir vem a violência. A repetição da Revolução Francesa. Depois surge um Napoleão, este vai e aparece outro. Esta é a fórmula para os países dominados. Queremos o vosso dinheiro, não queremos o povo. A história do PIB é muito engraçada, muito terrífica.
- O que é isso? – Solicitou o Hepatite.
- O Petróleo Interno Bruto. No próximo ano terá uma taxa de rendimento entre 26 a 27 por cento. Dizem que vai ser o país com a taxa mais alta do mundo, mas atenção: isso é só para o petróleo e para o PID, o Produto Interno dos Diamantes. Quer dizer que é o único país do mundo onde não há população. É uma ilha de petróleo.
- Investimentos só para o petróleo. Podíamos cultivar e exportar a famosa rosa de porcelana. Nem isso conseguimos. Não restam dúvidas, finalmente neocolonizados. – Desgostou o Poeta.
- Não são os rendimentos do petróleo que estão mal distribuídos. São os rendimentos do álcool. – Alcoolizou o Hepatite.
O Filósofo historia:
- A África Negra não mudou nada. Está como no tempo do império britânico na Índia. O Lorde chegava e dizia à Rainha: As populações estão descontentes, querem a independência, receio que não possamos aguentar por muito mais tempo. Não havia a vontade de civilizar, mas comerciar. A religião fingia, os sãos princípios a seguir. Até lhes chamavam inferiores devido ao vestuário. Eram necessários mais escravos para solidificar a fé. Porque sem eles, com a superstição a um Deus que ninguém conhece, assim a religião escravizava outros povos. Infelizmente ainda tenta continuar de modo subtil, fingindo que defende os oprimidos, o que nunca fez. Está a perder terreno. É necessário rever tudo o que dizem sobre o Fundador, porque já não nos convencem. A Companhia da Índia Oriental foi substituída por outra estatal. As pessoas não se apercebem disso. O sistema de exploração colonial permanece intacto. Delenda Carthago.

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