sexta-feira, 11 de maio de 2012

SONHO DE UMA NOITE TROPICAL (23)



O Almirante não imaginou que uma criança ultrapassasse um limite tão atroz. Repetiu:
- Tens pai ou não?
- Tenho. Mas raramente o vejo. São muitas mulheres para um homem. Entendes?
- Entendo.
- Quem me der comida e bebida esse é o meu pai.
- Então a noite é o teu pai.
- Sou jovem. Quero gozar a minha vida. Divertir-me com este, com aquele. Qualquer um serve desde que pague e me dê o que necessito.

O Presidente reitera que a injustiça não nos liberta:
- É uma questão importantíssima porque nós pretendemos sempre agir em nome da justiça, agir em nome do progresso, mas nem sempre os nossos actos coincidem com a justiça e com o progresso. Ainda praticamos, aqui, muitas injustiças, ainda há homens, cidadãos do nosso país, que praticam a arbitrariedade. Precisamos de vigiar melhor o direito de cada um dos nossos compatriotas de gozar uma vida livre e uma vida em que se possa dizer realmente defendida pelo Estado e pelo Partido. Hoje, em Luanda, não temos sapateiros, nem carpinteiros, nem marceneiros. Porquê? Porque todos foram para a função pública. Bom, os camaradas bateram palmas, mas devem saber que não é fácil, não é nada fácil. É necessário ter princípios, ser-se coerente, honesto e modesto. É preciso reunir uma série de qualidades para se poder ser comunista. Alguns dos nossos compatriotas poderão, talvez, ter o seu próprio carro, a sua camioneta, a sua carrinha para resolver os problemas do comércio e outros problemas. A construção de habitação, por cada um, já não é proibida, hoje. Cada um pode construir a sua casa onde melhor lhe convém, obedecendo é claro, aos planos de urbanização. Os homens e mulheres que vivem no campo, sofrem imenso, porque não podem comprar, porque não podem vender e, dificilmente, podem produzir. Mas aqueles que podem resolver os problemas sozinhos, ou pensem que podem resolver os problemas sozinhos, vamos dar-lhes essa possibilidade de resolverem os seus problemas. In [1] Agostinho Neto. 10 De Dezembro de 1978. Discurso no acto central do 10 de Dezembro.

- Almirante, faço trinta anos. Espero somar mais trinta. - Foi assim que a Liberdade respondeu quando o Almirante a chamou.
Ele conhecia o pai dela desde longa data. Desde os tempos da luta de libertação. Não era muito atraente de corpo, mas os seios grandes, erectos despertavam a atenção. Ela sabia disso. E utilizava-os como arma secreta. O Almirante abraçou-a ternamente. Perguntou:
- Como está o teu pai?
- Mal, continua abandonado.
- O Partido ainda não resolveu a sua situação?
- Não Almirante. Nem nunca vai resolver. Só consideram antigos combatentes os que andaram com armas nas mãos. Muitos combateram com o seu intelecto. Talvez esses fossem de facto e de jure os melhores combatentes. O teu pai prometeu que quando nascesse uma menina, que iria para uma boa escola. Que seria doutora.
- Almirante, prometeram-nos muita coisa. Lutámos em vão. Não quero mais saber dessas coisas partidárias.
- Liberdade, um nome muito bonito.
- Sim. Não passa de um nome. Foi o meu pai no ardor da luta. Como muitos que se chamam Vladimiro.
- Deixaste de estudar?
- Claro… tio Almirante sem dinheiro não se pode estudar.
- E o que é que fazes? Andas por aí?
- Não, faço o que muitas fazem. Comprar cerveja, gasosa, bolachas, rebuçados e revendo.
- Hoje não estás a vender.
- Não tio Almirante, tirei uma folga.
- Andas à caça deles como as outras fazem?
- Não, nem pensar. Não aceito essa vida de porcaria. Entregar o meu corpo a um qualquer que me vai trazer doença. Os poucos lucros que obtenho chegam-me para não passar fome, e comprar alguma roupa. Estou a juntar dinheiro para os meus estudos. Sinto que não vou conseguir. Estudar é um privilégio de ricos. Quinhentos anos de colonialismo e trinta de neocolonialismo chegam para acreditar que nem direito teremos às sobras da Pátria.
O Almirante prossegue com o seu inquérito. Desta vez é a Qualquer Um Serve. Pergunta-lhe:
- Não achas que esse nome é ofensivo?
- Não, é o meu nome de guerra.
- A guerra já acabou.
- Para nós continua, e não sabemos quando e como acabará.
- Com SIDA.
- Paciência Almirante. Tanto faz, a minha mãe morreu por causa disso.
- Estudas na universidade da noite não é?
- Melhor que esta não há, e é gratuita.
- Não pagas propinas, não precisas de livros nem de professores.
- Almirante, a minha vagina já leu muitos livros, conheceu muitos professores. Já está doutorada.
- Estou a ver. Frequentou devidamente a universidade das noites carnosas.
- As melhores que existem no nosso país.

Lutámos e não conseguimos. Enganámos os que confiaram em nós: - Pensou o Presidente:
- Estamos a recorrer a técnicos estrangeiros. Teremos de recorrer sempre, porque não teremos a técnica durante este ano, não teremos a técnica dentro dos próximos dez anos. Vamos recorrer sempre à ajuda estrangeira. Temos muitos analfabetos e as crianças, os homens, as mulheres devem aprender a ler e a escrever. Vamos preocuparmo-nos com a formação de quadros para a agricultura. Os nossos jovens, quando se fala em formar técnicos agrícolas ou técnicos para apoio às empresas industriais, riem-se um pouco, dizem que isso não é ofício para uma pessoa que já sabe alguma coisa e querem ser advogados, médicos… Formem-se os técnicos, mecânicos para a organização de uma secção de transportes, para a condução de tractores, para a utilização de tractores. Formem-se os técnicos que podem organizar os transportes, formem-se os técnicos para poder dirigir instalações eléctricas etc., porque aí está a base, está o futuro da nossa vida. Temos energia eléctrica a instalar em várias províncias que ainda não têm energia eléctrica. Temos bairros em Luanda mal servidos de energia eléctrica. Há pouco tempo os camaradas, pelo menos em Luanda, das Comissões Populares de Bairros, estiveram reunidos com o camarada ministro da Construção e Habitação, para ver como é que vamos resolver o problema da habitação nesta cidade que está a crescer de dia para dia. Bom, desde que se tratou este problema, já começaram as construções sem licença de ninguém. Cada um apanha duas chapas de zinco, dois adobes, três pedras e faz a sua casa. E faz a sua casa de maneira a tapar a rua, tapar o acesso à população a determinados locais. Enfim está-se a fazer uma aplicação muito má do princípio que nós temos admitido, como uma probabilidade num futuro próximo. Quer dizer que não constroem com a licença do Comissariado Municipal, não constroem com a licença do Ministério da Construção e vamos tendo a cidade tapada em várias ruas. Não pode ser! Vamos construir sim, mas com a licença do Comissariado Municipal, com o acordo do Ministério da Construção em todo o País. Quem tem os seus meios, quem tem material, pode construir, pode ter a sua casa para viver mas respeitando os planos de urbanização, os planos de organização de cada cidade dentro do País. Não vamos construir de uma maneira selvagem, de uma maneira anárquica. Temos de construir de maneira que tudo esteja ordenado, porque senão, bom, o tractor vai passar por cima. Não teremos outro remédio. Vamos pôr os tractores em cima dessas casas que estão a tapar as ruas e aqueles que já começaram é melhor parar. In Agostinho Neto. 4 De Fevereiro de 1979. Discurso no acto central do 4 Fevereiro.

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