Até
hoje, o governo não é capaz de dizer onde está o dinheiro burlado aos cidadãos,
nem é capaz de indicar onde estão os terrenos loteados. in David
Mendes, presidente do PP, Partido Popular
A América redescoberta demandava
escravos para a Europa. Caribenhos plantados nas plantações e mergulhados nas
pérolas. Índios minados nas minas de ouro e prata até à exaustão da morte.
Trocados, substituídos pela resistência africana, da magnanimidade colonial,
original comércio português e espanhol. O lucro, o único aspecto atraente do desordenado
humano competia. Ainda hoje não se fartaram os cofres da acumulação mundial, dos
holandeses, suecos, dinamarqueses, alemães, franceses, e ingleses, fortificaram
a África Ocidental. A fábula da minha escravidão lucrativa veio com a
intolerante cooperação. Da avidez e conivência de africanos que nos entregam
aos estrangeiros como mão-de-obra escrava, para pagar os luxos palacianos das
suas guardas presidenciais e governos de fingir. Sempre mais em frente, sempre
mais em frente, estava a cana-de-açúcar e as plantações de cravo-da-índia.
Desumanamente algemada, transportada
nestes outros navios de maremotos tormentosos. Da torpe governação que suga
tudo o que é dólares para eles, e para a população o abandono. Perante o
silêncio e o cinismo da democracia ocidental, que enviam os seus bancos para
nos dizimarem. Não sabem que promovem o terrorismo dos esfomeados mundiais e
mais estes locais. E contudo o Iraque, o Afeganistão e o Paquistão animam-se
contra o assédio deste terrorismo bancário mundial.
Desprezam-me longe do luxo dos salões
deles, em leilões, onde admiram, saboreiam, compram o meu ventre, os meus
seios… e a exposição da minha nudez. Milhões de manos e manas lá foram sem
direito a bilhete de passagem, e tantos e tantas não passaram na Passagem.
Os comerciantes perante a pressão da
abolição da carne para abutres e tubarões, defendem que isto afecta o seu sustento
e o das suas famílias.
Fiquei muito preocupada com 1880 a 1914. Obrigaram-me a
assinar tratados de protecção com metralhadoras na mão. Não havia nada que não
estivesse anexado. Os brancos eram bem recebidos, retribuíam-nos com a sua
poderosa metralha.
Saltei da manhã e o dia viu-me, terminou
muito rápido. Durmo apenas para esquecer, ludibriar a fome que me assola. Quero
que as noites acabem depressa para conseguir viver mais um dia, de um sonho
ultrajado sem final. Viver não é um sonho, é um pesadelo, uma curva sem final
na vida brutal. Não posso vender o assobio do vento, fico como que parada,
indecisa, quase como uma estatueta de marfim.
Somos
multidões de estátuas estáticas sem infinito, sem percepção do longínquo futuro,
da pensativa tristeza do pesadelo que me não abandona. De manhã desperto e
outro flagelo me espera: o martírio do dia-a-dia das baionetas. Três condições
definem o ser humano: Em pé, sentado, e deitado no eterno.
Ajudei os Zulus. Derrotámos os ingleses
e os africânderes. Depois fomos vencidos, humilhados, devido aos trovões, às
tempestades das armas poderosas. Não é o armamento que ganha uma batalha, é o
engenho humano.
Era feliz antes deles chegarem. Estava
no paraíso, não me preocupava nada com a comida. Havia-a aos pontapés: mangas,
bananas, abacaxis, lagostas, gambas, muita peixaria, muita frutaria.
Encostaram-me à parede da discriminação
racial. Colaram-me um papel que me identificava: negra sem paraíso na terra
perdida, apenas obtendo o direito autoral de ficar calada. Os missionários
enfrentavam o secular silêncio da bondade divina. Do pouco fazer, da negação
animal irracional.
Existo invisível, sem estatísticas, sou
um zero negativo.
O alvoroço dos novos-ricos na caça
cobreada, sem pausa, não deixa que descansemos, de revolver o intacto. Nem
sobras, nem quebras, nem protestos. Que somos abençoados com notável cheiro em polvorosa. Dai aos
novos senhores, o que é deles. A submissão dos iletrados é pertença dos
escravos.
Danço e não encontro o centro do meu
Universo. Milénios são passados no meu rosto, do crispar, do ranger de dentes
do rosnar eterno. Normalmente tenho a pretensão de dizer tudo ao silêncio
imposto de todos os dias. Que nascem e escondem a minha máscara eleita do meu
coração sem deleite. E muito rapidamente vejo-o destroçado, o meu país, Angola.
As estradas e os comboios são a nossa
distracção. Alimentam muitas cargas e poucas descargas. Conjuntos de metal que
circulam carregados até ao mar. Petróleo, cobre, zinco, ouro, urânio,
diamantes… muitos metais raros. Depois exportam-nos, aviam-nos. Permitem-nos
observar essas mercadorias -fotografá-las não porque o deus marxista-leninista
está sempre presente – que impedem o nosso sustento. Depois os
marxistas-leninistas abandonam-nos, oferecem-nos a abastança da fome negra.
Angola, Etiópia, Libéria, Sudão, e muitos mais …
O desgosto económico, a corrupção, a
arbitrariedade. Perdi as incontáveis vezes em que fui libertada por
soldados-ditadores.
Para onde irei, não sei, roubaram-me o
casebre e as orquídeas dos jardins. Sem perfume, com azedume, para onde irei
não sei, já disse! Lembrem-se de mim, ando por aí à procura dalgum governante
honesto. Digam-lhe que nunca mais acaba o meu tormento. Grito no mais profundo
virgem florestal: digam, procurem o nosso Deus ancestral. Se o encontrarem nos
círculos sagrados, quando ousarem ir ao profundo da floresta sagrada, lembrem-se
de mim, não receiem, lá estarei. Tragam-me um navio sem escravos, sem presentes
e sem presidentes eternos.
Tento recompor os destroços perdidos
dos barcos que encalham nos meus olhos, passeando, sulcando o oceano das minhas
lágrimas. Sempre na procura mais longa que prometi voltar e lembrar dos vinte
da praia de Jamestown. Mendigo na rua nua sem
espelho para me mirar. Digam-me para voltar a lutar e rematar, e matar.
Perdi-lhes a vontade, já não os amo, odeio-os, porque o meu petróleo e
diamantes estiveram, já aqui não restam, estão muito além do mar. Vejam o que
me fizeram e não retiveram: os sons que agora oiço dos pés nus e mãos
estendidas. O meu nome está à venda, esse sentimento perdido como uma pequena
janela, que nem isso já tenho. E o meu nome era o futuro… depois do ano 2000. O
meu futuro, o meu relógio parou, já não se usa nos programas rodados sem
computador. Nem comecei, parei, à espera da hora, demora falar. Perdi a
escalada do véu que me conduz ao céu. Estamos juntos, tão próximos e contudo
tão distantes, como lágrimas de crianças órfãs. Como tudo o que é belo e sempre
efémero.
Governar é fácil, perguntem aos
abutres. Quando dois homens não se entendem, o dinheiro está errado, disse
Voltaire. Tenho que apressar-me, vou revolver o lixo da esperança, sem ela, de
encontrar o que resta do meu nome. Sento-me, sinto-me cansada.
Tudo o que for construído, destruído
será no cinismo da nossa hipocrisia angolana, onde diariamente tudo se agrava,
cai aos pedaços, sem terramotos. Os vulcões desumanos ardem angolanos. Tudo se agrava,
cai dia após outro dia. Sem escolas, sem ensino adequado, o meu cérebro está
atrofiado. É por isso que dizem «É o Continente atrasado» A História humana é a
história dos punhais. Se os nossos estádios de futebol lavrassem terra teríamos
abundância de comida. Adeptos do futebol, escravatura moderna.
Não consigo afirmar-me à espera do
profeta. As lágrimas saltam no meu rosto quando penso. Os animais agitam-se
enquanto Deus estende as suas mãos, a um amor desconhecido sentado na margem
dos mil rios.
Vi a mãe entregar o seu bebé para fugir
da fome. O mar tentando galgar montanhas inundando inumanos voltando aos
princípios. Os seres humanos perdidos na selva de betão, acorrentados,
armadilhados, felizes na bestialidade para sempre eterna. O bebé para sempre
abandonado sorrindo para o mundo hostil. Vi muitos de nós para sempre
complacentes, cúmplices na desgraça. Vi os silêncios de cada instante no nosso
olhar de cada dia, como cães selvagens na fuga incerta para nenhum lugar.
Tentei adormecer no desalento, no amanhã da mamã. Confirmar a aventura,
continuar na desventura neste pão angolano sempre órfão. Um governo das
maratonas e para as maratonas que insiste beber o álcool não original das
nossas origens e dos nossos destinos. Insistimos nos negócios que o vento leva
e na vocação das festas inatas para arder o tempo que nos sobra em demasia. A hipocrisia é
a satisfação do dever cumprido. Semear injustiças é colher revoltas. Mesmo que
o nosso governo faça alguma obra para algum angolano ver, nós acabaremos com
ela. Se tivéssemos a bomba atómica seríamos alcunhados «o Continente do
cinzeiro radioactivo.» Se a bebida fosse livros eu seria muito culta. Até nos
concursos internacionais de bebidas alcoólicas somos discriminados, porque de
antemão todos sabem que somos vencedores. E nesta batalha não há Waterloo.
Não fico exausta, mas constrangida de
não correr pela areia das praias agora proibidas. Um instante muda muito, muita
coisa.
As estátuas dos meus seios erectos,
modelados como fruta afrodisíaca na avidez do espanto do prazer, na espera do
alimentar a vida e voltar a endeusar-me, sem corrupção nem queda da actual
governação, algo muito fácil. Sou uma deusa lendária amada, desejada por todos
os deuses e perante a realidade destas coisas sem mundo. Ó embarcações da
emigração clandestina! levai-me e que chegue viva às fronteiras
trágico-marítimas da nova colonização. O prédio onde ainda consigo viver,
restam alguns alicerces, ainda bem! Prefiro o capim seco da liberdade campal.
Comprometo a minha queda angolana abismal. Ao assinar contratos de qualquer
espécie nacionais ou internacionais… para quê!? Se depois ficam esquecidos,
rasgados, abandonados nas lixeiras desproporcionadas, desgovernadas. É por isso
que o meu povo é acérrimo defensor da delinquência. Quantas mais leis, mais
desordens, melhor será não existir lei, porque a desordem está organizada e
devidamente institucionalizada. Ai de mim se conseguir desenvolver a minha
inteligência, ficar culta, lá me chegam os ancestrais sacramentos: «Vai lavar a
loiça, a roupa e varrer o chão, depois cozinha funji com quiabos, jimboa e
cacusso assado. Traz o jindungo regado com a bebida da nossa trovoada, tempestade
tropical. Em seguida despertaremos a sombra do secular embondeiro.»
Lutámos, sofremos, vivemos, morremos sem
dinheiro. Está com eles e esses das companhias petrolíferas. Se não existisse
hoje, amanhã?!
Imagem: Aléxia Gamito
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