O
dia-a-dia no meu campo de concentração de Luanda
Não sei se conseguirei dormir para de
manhã me levantar. Os estertores, estupores das festas que não se decidem nas
frustrações da violência sonora, da agressão espiritual, neuronal, do sono
inconstante, é irrelevante. Marés negras, petrolíferas de sons intranquilos que
enfeitam as infernais noites. Deito-me na ânsia de não ouvir tal mensagem. Até
agora nada! Devem estar cansados de tanto beber, amarrados, acostados.
Os pardais já voam sonoros. O meu relógio
biológico despertou. Saio da cama, obrigo-me a levantar. Sem água, sem luz, sem
nada para manjar. Não sei o que fazer. Disseram-me que na Internet há muita
comida. Não sei onde isso fica, como lá chegar, vou procurar. Hei-de qualquer
coisa lá encontrar para me consolar.
Ah! Esta negra existência! Porque querem
acabar com a minha raça!? Só branco é bonito, e negra feia porque escura
escurece o ambiente? Hipócritas! Então que acabem com a escuridão das noites.
Façam operação ocular para extrair a cor preta, negra. Depois não verão mais a
minha beleza exótica, tropicalíssima. Bem feito! Malandros! Sacanas, é o que
são!
E a religião destrói Angola.
Não sei por onde sair, o esgoto
governamental está a fluir. Piso nas pedras descalçadas, insegura espero não
cair outra vez. Mas que grande merda! Está tudo a ruir, neste mercado das
moscas ao ar livre. Comprar qualquer coisa importada não importa. Não
produzimos nada nesta nação vendada. Com tanta gatunagem receio ser assaltada.
Os que roubaram, roubam, são, serão roubados.
Pedi uns tostões emprestados sem juros que
restaram do escrito a lápis desta inconstitucional república. Bolachas,
rebuçados, pastilhas elásticas, cigarros, depois gasosa. Bebidas alcoólicas
não, bêbado se complica! Foi o que comprei e nas mãos e cabeça carreguei.
Cheguei, tive muita sorte, os gatunos estavam colaterais. Peguei numa travessa,
limpei-a e nela arrumei a venda. Fiquei meia escondida na gruta de entrada do
prédio. Um fausto vizinho, desses da democrática riqueza corrupta, se complicam
muito comigo, com a minha pobreza. Que faço lixo, que contraria a sua natureza.
São muito desconfiados, medrosos, vivem na insegurança. Da venalidade,
imoralidade, dependem de armado segurança. Da ilicitude dos bens arregimentados
contra natura.
Ninguém paga a alguém.
Depois do vizinho fausto, os fiscais
policiados, sem vencimentos, sem sustentos. Para sobreviverem rapinam-me os
mantimentos. Atacam o ponto mais fraco: a mulher indefesa. Protegem-se os empresários,
salafrários e outros otários da impunidade fiscal tributários, taxados heróicos
impostores das fugas aos impostos. Sem a pena, com plena protecção do poder
civil, militar e do nosso Olimpo. Deveres, obrigações, cumprem com os arremedos
guturais das ameaças mortais. A minha venda, desvenda algum dinheiro. Porra!
Andei bem!
Hoje iludi, venci a fome. Por quanto
lamento?! E amanhã, depois… a luz e a água vão me controlar, cortar. Não vou
cozinhar sem gás, sem ocupação, não posso pagar. Emprego?! Só para estrangeiros,
seguranças e polícias.
No espelho, conservo a pobreza, a leveza
da minha beleza. Sempre a me chatear. Querem fiado aviar, depois… para pagar!
Ah! Sou muito desavergonhada. Irrompo pelos escritórios deles, antes que saiam
com os vencimentos e gastem-nos nas amantes. Exijo tumulto, a minha confusão
apresento. Envergonhados, retiram o que me devem, fazem pagamento. As esposas
deles copiaram-me. Assediam-nos e vazam-lhes as carteiras. Deixam-lhes penúrias
medidas, para umas cervejas bebidas. Com as amantes na mínima condição de fãs,
fás sustenidas.
Os estrangeiros controlam-me, mandam-me
trabalhar porque os meus libertadores são hábeis no desempregar.
E o meu movimento de libertação chegou, e
me libertou: «Agora já não somos mais escravos. Somos finalmente independentes.
A terra, o país… tudo é nosso. Somos finalmente livres. Já não precisamos mais
de trabalhar. Tudo o que era do colono fica para nós. Nunca mais seremos
tristes. Nos nossos rostos reinará para sempre um sorriso de felicidade.»
Insistiram as minhas amigas: as igrejas da
macumba é que estão a dar. Caí no chão duma delas mal abençoada. Escavam-nos
mel dizimado de uma assentada. Fugi, não quero mais! Porque a magia negra deles
exigia das crentes as cuecas, biquínis, tangas, calcinhas do feminino interior,
das seivas dos cultos ocultos. Nunca tão poucos Shakas dizimaram tantos bantus.
O meu país, o meu reino, dizem os
aventureiros que é tão potente portentoso desenvolvimento, com tanta
reconstrução tanto envolvimento. Que é um país que cresceu muito não sei
quantos quilómetros quadrados mais. Creio que corromperam as fronteiras dos
países vizinhos. Ou desconhecem a superfície da minha nação, do meu reino. Que
aumente, diminua, não melhora a minha desgraça. Piora a eterna ditadura das
modernas naus desta velha escravatura.
Filhos? Para quê! Para morrerem de fome! E
das doenças que ela provoca, e falecerem nos laboratórios hospitalares do nosso
Dr. Mengele.
Se compro algo de valor e na minha casa
entrar, nada, absolutamente ninguém me vai ajudar. Os gatunos entram, saem,
restando o vazio do lugar. A polícia persegue-me com pesadelos, que não posso
controlar. Nesta democracia da fome, prefiro, já aderi aos terroristas que me
dão comida.
O auge da noite voltou, colou o
imorredouro mal. De Spartacus e os seus jovens gladiadores revoltados, nascem
da sombra que ensombra a luta contra mais este império da escravidão.
Três decuriões comandam as suas decúrias.
Avançam posições e alguns podem cuspir fogo. Bailam-se os lamentos. Que os
esfomeados incomodam, se transformam em formigas, moscas, ratos, cães vadios, e
morcegos-vampiros. À noite dormem nas cavernas. A fome avança, estende-se,
alarga-se. Com ela as epidemias: a cólera é a epidemia dos miseráveis, dos
espoliados. São a tristeza de uma trintena de garotos que adquiriram o hábito
de irradiar, nascer das ruas, viver nas cavernas nuas. Montam plantão no
minimercado, na padaria, no cruzamento da rua movimentada. O plano marcial bem
treinado, foi acoplado. Alguns param no meio da rua obrigando os carros a
pararem. Ou passar por cima deles, o que não acontece. Têm muitos artefactos
para arremessar das suas torres de guerra. Exigem dinheiro estendendo
solenemente uma mão. Os condutores não podem evitar a surpresa e escudam-se no
torpor da incerteza.
E um nevoeiro muito espesso tomou conta de
Angola. A população diz que vem dos palácios alquímicos dos príncipes das
trevas da governação. O nevoeiro alastra-se de tal modo que mesmo com as portas
e janelas hermeticamente fechadas é inseguro. Os povos aterrorizados fogem e
gritam a plenos pulmões: «É a Gripe C!!! é a Gripe C!!!»
Um gladiador de tenra idade descobre algo
homólogo. Um carro de bebé abandonado com duas rodas sobradas. Puxa-o e
improvisa uma quadriga. Como um gladiador sem arena acelera e risca o brilho de
prata do César estacionado. O dono vê o seu bonito automóvel ficar feio. Não
ousa contrariar o pequeno Spartacus e os seus modernos escravos. Os interiores
dos caixotes do lixo são anotados nas mãos pé-de-cabra. O que resta da
civilização sobra para a escumalha. O freguês da padaria traz um saco e sorriso
feliz. O pão voa-lhe da mão, roubado por um infeliz. O vizinho Fausto chega. O
segurança particular incha-se. Protege-o e à sua sombra.
Está com espingarda de assalto e pistola.
Os abutres humanos acabados de saírem dos ninhos vigiam a presa afastados.
Fausto está inseguro, caminha, quase aos tropeções, medroso.
Eh! Eh! Afinal o infausto vizinho tem
muito medo. Hum, muito armado quando nos diz que não tem medo de nada, nem de
ninguém. O vizinho do outro prédio deixa o carro mal estacionado. Corre como
perseguido por um vulcão. Vê-se o pânico sair dos braços agitados que parecem
querer ganhar asas e alçar voo. Fechem os portões! Genghis Khan está na outra
rua a assaltar os prédios! Duas senhoras europeias amaldiçoaram as compras da
noite. Dois petizes como pequenos falcões sobrevoam rasantes. Lestos nos
hábitos, de arrancarem sacos e carteiras, abandonaram, deixaram a leveza aos
movimentos feministas.
Um general não se sabe de que academia
militar saído, está perante o dilema de uma batalha perdida. Grita do seu
tanque civil: «Socorro! socorro! raptaram o meu filho!» A polícia faz a cena do
normalmente fim da peça para averiguações. Seis dos excluídos do Plano C
desgarram-se. Estes são mais crescidos, vieram porque a coisa estava a dar. A
polícia persegue-os, os jovens elevam-se até um sexto andar. A única saída é
encurralarem-se num canto. Lembram-se dos momentos, da angústia que o gato faz
ao rato quando salta com a garra fatal. Três rendem-se aos incomensuráveis
homens da lei. Os restantes optam pelo suicídio colectivo num voo só de ida com
regresso mortal. O chão duro e insensível tal e qual a ditadura, aparou a
moleza dos corpos. A jovem faleceu, os dois restaram calamitosos.
Bazei com a venda. Alguns rebuçados e os
chinelos facilitadores abandonaram-me. Consegui atrapalhar-me nos degraus. Não
queriam acompanhar o meu ritmo. Dançavam outra kizomba. Porra! Refugiei-me na
minha tarimba.
Quem mais sofre com tudo isto é o meu coração. A
pressão arterial sobe, manifesta-se. Mas o médico tranquilizou-me, enviou-me
para os tranquilizantes destes dias sempre infernais: Vamos lá! Vamos lá!
Tome-os com um pouco de líquido, água muito clara. Como um dia de sol
prometedor, transparente. E ao escurecer dos desejos ao deitar. É um pequeno
frasco com reacções químicas para que a noite insista, seja muito escura. Um
sem dia, ou será um sem noite? Para que seja fácil suportar os deslizes do
regresso à opressão e escravidão. Oh! Como é difícil andar com os pés neste
chão.
Que dias tão tristes, apagados.
Corromperam o sol!
Angola! Que mais pareces um continente
perdido que jamais se encontrará?!
Ah! Mas que epopeia interminável!
Era negra como o vento, o coração, sorrisos, amor céu,
sol sem cor e como a água, incolor, agora sou predadora.
As estradas são necessárias para o bem da humanidade.
Por aqui são óptimas para o trânsito de exércitos de ocupação. E depois
destruídas para que o inimigo não as possa utilizar. E as populações, que mais
têm de suportar?
Conservo uma réstia da minha voz melodiosa, cheia do
perfume perdido da minha mocidade amordaçada. Nos meus ténues gestos de mãos
acorrentadas num infinito grão de areia de bolor. Sentir um pouco de amor (?),
que já não resta no meu coração de Jasmim sem odor. Gostava muito de ver o sol
nascer. Agora vejo a minha beleza no meu sorriso de tristeza ao entardecer.
Existe sempre um dia. O meu dia, assim como existem
anos e silêncios. Que o infinito nevoeiro do tempo se dissipe e se lembre de
mim Ah! Ditadores e falsos democratas… existe sempre um dia!
Imagem: Aléxia Gamito
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