Angola é um
país democrático, tem um governo e instituições democráticas, mas ninguém se
pode manifestar. Quem o tentar – só se aceitam manifestações dos movimentos
espontâneos e dos comités de especialidade – denunciando alguma figura pública,
marchando contra a corrupção, ou qualquer incontável injustiça, o caminho, o
rumo da nova vida certa que o aguarda é a prisão. Ainda há governantes que
instituem a ditadura democrática do proletariado, convictos de que esse sistema
político é o certo para estes tempos novos de uma nova vida. Há países
produtores de petróleo que sustentam adequadamente as suas economias e as suas
populações. Em Angola é ao contrário, o petróleo tudo complica e muita miséria
fabrica.
Já não ando, voo no nosso contento no avião do feitiço
da independência que inventaram. Demora dez minutos nas viagens, os nossos
negócios vão bem no avião do feitiço. Vem sempre carregado com coisas que
comerciamos. Quero ser honesta mas não consigo, não me deixam trabalhar!
Tratam-me como escrava, libertaram-me de tudo, esqueceram-se da escravidão. E
se adoecer abandonam-me até falecer, sem assistência médica devo morrer. As
morgues dos hospitais dos campos de concentração esperam-me. Dão à costa como
marés desgovernadas.
Angola é um campo de concentração com corpos inertes,
onde os descolonizadores esquartejam sempre mais um pedaço. E o crescimento
económico que o FMI apregoa para a minha Angola, minha não, deles, isso sim!
Está nas morgues. É um crescimento de mortandade mórbida. O FMI negocia
contratos de números cadavéricos com a Angola da FAMÍLIA.
Com a beleza externa que contradiz a interna. É como
passar o tempo que resta da vida a projectar os movimentos nas janelas
assomadas, sem pretensão de originar, a mínima descrição do que os olhos vêem
mas os sentidos não captam. Observar sem discernir prenúncia ditadura, má
governação.
O ataúde promovia o funeral do imbecil defunto, do
destruidor de nações e populações e hábil negociante de armas. Enganou-nos
neste mundo, não vai enganar no outro. O funeral era acompanhado pela multidão
de bajuladores e meia dúzia de nobres que com ele muito lucraram, seguidos dos
seus lacaios como num faraó. Os analfabetos continuavam, seguiam-no como um
deus acreditando na esperança das mudanças. Das novas vidas que ele muito
prometera.
Mais adiante seguia outro cortejo fúnebre. O de um
Homem cuja ocupação foi dar vida, democratizar, ensinar. Acompanhavam-no
milhares de pessoas, os que souberam colher a sua sabedoria. Por aqui já
ninguém liga a essas coisas, perderam esses ensinamentos.
Entretanto, na praia, a gaivota acreditava que estava
só. Como se o mar e os ditadores não existissem. Aproximou-se confiante e
deparou-se com um desprezível bajulador. De repente lembrou-se desse déjà-vu, esqueceu
a mariscada e asou para muitas milhas, deixou-me a penar. Antes dos hediondos
bancos corruptos lá estarem, ela já lá estivera.
A ilusão do amor é a escravidão da pessoa amada. Lá,
nunca obtemos o que ansiamos nessa complexa dimensão. É um beco sem saída que
começa nas palavras e se une no tempo quando ele inicia a contagem desses
momentos que parecem infindáveis. Em tempos muito distantes, isso do amor não
existia, alguém o inventou. Como qualquer invento os especuladores banalizaram-no.
E compra-se, vende-se, revende-se em qualquer local de uma rua murcha, amarga,
nua.
Existe um outro amor que anda há muito perdido. Puro,
inocente, difícil de encontrar. Não se compra, não se vende, conquista-se.
Quantos, tantos desses amores perdidos sem dias, nas noites. Feitos máquinas,
gerando filhos metálicos. Abandonou a sua origem, perdeu-se nos labirintos
oficiais artificiais dos nossos decretos presidenciais.
O vento parecia gelado, assolava a tarde enviado pela
corrente fria da olímpica Benguela. Alheadas, já muito desfloradas, jovens com
e menos de catorze anos de mocidade, atraem-se pelos míseros dólares do sexo
monetário destes novos-ricos, para vestirem e comerem. Pairavam como pardais em
busca dos filhos recém-nascidos.
As crianças dançavam na areia do lixo. A árvore
contemplava-as, acompanhava-as, deslocava-as, abrigava-as. O sopé volumoso
rangia, sorria perante tanta infantilidade. Van-Gogh pintou esta
infelicidade no lixo da areia.
Porquê os idiotas teimam no poder como imperadores? Porque
são como a câmara de filmar, capta, mas não lê. Pintar é libertar, democratizar
o que ninguém vê.
Prometeram-me a liberdade Ocidental, em troca obtive a
liberdade condicional neste campo de concentração angolano. Utilizaram a
ingenuidade do meu ventre. Colocaram descolonizadores negros, fiéis seguidores
que mantêm a paz, estabilidade. E estrangeiros bem pagos juram que são hábeis
governantes, defensores da democracia PIB. As riquezas escoam-se sob a bênção
do sol tropical nos doentes sem hospital. O cofre do meu estômago vaza, enche o
Ocidente e a China.
Das duas democracias, ocidentalismo opulento e fome
tropical, a riqueza é a democracia e a miséria é a sua filha bastarda. Um
dicionário é mais rico porque contém muito léxico dos esfomeados e miseráveis
da independência das esmolas. Há línguas ricas e línguas pobres. Falar ou não
falar eis a escuridão. A história da História repete-se. Nunca tão poucos
espoliaram tantos.
Deito-me e levanto-me sempre de cabeça no ar, deitar,
levantar. A fome também se deita, se levanta, resiste a todas as peripécias.
Cheia de galanteria, muito funcional. Tem boa memória, longa, longínqua.
Aprisiona-nos, guarda-nos nas suas muralhas sem ameias, acorrenta-nos por
seculares guardas. Fiel nas encruzilhadas, sempre à espera porque não sabe
impacientar-se. Incansável, nunca esporeia a sua montada. Nunca se esquece, é
uma amiga fiel, nunca está só. Milhões e milhões nela se abrigam. É possante,
violenta como a tempestade que aflige os desabrigados.
Tenho que vender qualquer coisa para não desfalecer,
mas os guardas do soberano proíbem-me de o fazer. As polícias dele
perseguem-me, roubam-me os haveres, não sei o que dizer, nem o que posso fazer.
Apelo aos direitos humanos Ocidentais, na secção ramos marginais, que me possam
defender. Eles, os causadores da minha condição, têm que me valer. Ontem
partiram-me o casebre, já não é o primeiro, a seguir será o terceiro.
Ocidentais! Não sabem o que é dormir ao relento, morrer na companhia da chuva e
do vento ditatoriais! A democracia não pode ser apenas para angolano ver e para
o soberano exportar-lhes petróleo!
A minha boca magoada, porque está sempre fechada, mas
os meus lábios sensuais, o meu ventre delgado, os meus seios mate, de olhos
feridos, tudo neles encerrado. O meu corpo ainda canta, encanta, moreno, sou
esta morena do amor não sereno. Quem ousa dar-me força, inspiração, para vencer
esta barreira e conseguir uma ténue claridade? Oh! Que saudade ter presente, o
que resta da minha mente subjugada pelo eterno presidente.
No altar das preces erguidas onde só príncipes e
princesas ousam falar do amor petrolífero, sugado pelo terror da violação
constitucional. Onde mendigos e miseráveis ousam falar da fome. A novel nobreza
colonialista fala dos seus reinos, os esfomeados falam das noites nas ruas.
Entre príncipes, princesas, mendigos e miseráveis não existe nada de novo.
Excepto que estamos óptimos, aprontados para mais uma colonização.
Nós queremos ser outra vez colonizados!
Tinha uma amizade fortalecida com ele, desde que subiu
a ministro não fui mais reconhecida. Somos traidores, traímo-nos.
Nestas vagas marítimas fico irreconhecível. Angolano quando
sobe na vida é o céu, é Deus nas nuvens. Troca os amigos, despreza a amizade
por um vulgar automóvel reluzente, acompanhado de mulheres e garrafas de uísque.
Voltamos para as ruínas dos nossos templos. Resignamo-nos expectantes na
tradição da sanzala, do quilombo. Habituamo-nos à fome, à miséria, e aqui não
há escadas para subir, é sempre a descer. O chão move-se à espera, na carne
seca apodrecida. No procurar nos contentores do lixo as cascas que sobraram dos
bananais. E conseguiram que os nossos filhos sobrassem geneticamente
modificados, estuporados.
Quando chegam, depois da borrasca garrafal, da mistura
de aguardentes, oferecem-nos apenas fumo: «Mãe, queres um cigarro?!» Depois de
exorbitarem, mal amarem, gastarem o que ganharam com parceiras amantes, que
desceram das nuvens da noite. Com os nomes esquecidos em cataplasma, servindo-se
da Bíblia com aleivosia: «Está escrito: jovem diverte-te». Reforçam: «O meu
relógio não tem horas, perdeu o tempo nas noites fartas do álcool»
Podemos nas noites escuras ser claros, transparentes
nos nossos diálogos. Então as noites escuras podem ser claras. Como são
estranhos e insondáveis os amores de uma mulher.
Nasceram num local, algures em qualquer rua. Ele cedo
aprendeu a engraxar sapatos para sobreviver. Rapidamente adaptou-se, aprendeu a
arte de roubar. Ela cedo aprendeu a vender o seu corpo para sobreviver. Não
perdeu muito tempo. Especializou-se no oferecer, no dar prazer aos homens. Sexo
é uma arte! Mais tarde, ele terminou os seus dias a enfrentar, a encontrar uma
bala certeira policial. Assim se foi, não se acertou, desconhecia que podia ao
menos ser feliz. Ela mais tarde foi convidada por uma grande amiga, a SIDA,
para uma reunião eterna. Faleceu, perdeu a imunidade da felicidade, convencida
de que foi feliz. Os jovens hoje deparam-se com a desdita: Bum! Bum! O som das
balas carregado de pólvora.
Vivo nos telhados dos casebres dos estados falhados.
Não tenho nada, não posso defender a pátria, zelar o que não me pertence.
Quando tenho dificuldade para dormir, escuto os políticos da minha Angola.
Recebo o remédio eficaz para a minha insónia da prisão, prisioneira no meu país.
As estruturas coloniais foram deixadas, estava tudo feito, e nada foi
continuado, apenas: «Destruir tudo o que é do colono»
Não basta ter os cofres abastados, se as mentes não
foram educadas para os prover. Esgotam-se e apela-se à divinal providência.
Confiar no marasmo: «Há muito dinheiro! Faremos tudo de novo! É mais um barril
de petróleo!» Não podemos industrializar a nossa agricultura porque somos
analfabetos. Temos muitos desempregados. As vistas curtas daltónicas, confundem
o tractor com um ser humano. O meu ambiente, a vivência diária é um constante
filme de terror de Stephen King.
Da soberania mil perigos me esperam, perseguem-me, são
estas delícias sem vida. Quando nascemos ficamos, não pisamos em qualquer
terra. Mas é em qualquer lado que morremos, em qualquer terra.
Senhor! Porque escolheste apenas Angola para lançares
as tuas pragas, esquecendo, protegendo outros lugares onde os ardilosos se
escondem nesta terra tão vasta. Porque não provocas a doença do sono nos
sedentos do poder fácil, nos idiotas e similares. Porque não os hibernas,
porque não os pões a dormir, eternamente, congeladamente. Que, prometemos-te
que os sensores electrónicos que os vigiam sofrerão rigorosa manutenção e
vigília. Estamos tão cansados de tanto o nosso soberano nos esbofetear, que já
não temos mais faces para lhe dar. Já estamos no receio do viver desfigurados.
Que faremos Senhor?! Não sabes?! Não te lembras?! Cá estamos no cume do
cinismo, de tanto fingir que em Angola existe democracia. Não existimos,
fingimos.
Imagem: Aléxia Gamito
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