domingo, 26 de janeiro de 2014

O paraíso perdido a ocidente (03)





Até hoje nunca consegui entender. E creio que também ninguém se apercebe porque a Humanidade desde que existe – penso ser esta a questão número um – sempre foi a luta contra a fome. E por mais evoluídos que estejamos a fome aumenta. Várias personalidades ao longo da história deram grandes contribuições para se acabar com este flagelo. Vários partidos comunistas de todo o mundo apontavam na sua propaganda, que a fome acabaria para sempre e nós acreditámos e por isso os ajudámos a tomarem o poder.
Com alegria até oferecíamos as nossas vidas, porque enfim seríamos libertados para sempre da miséria, e reinaríamos num paraíso eterno. É a mesma conversa das religiões. É por isso que sempre afirmo que entre um partido político e a religião, não existe diferença nenhuma. Ambos nos prometem o paraíso.
Para isso teríamos que conquistar os meios de produção. Esses meios ficariam então ao nosso dispor para sempre, devido à aliança operária e camponesa. Mas a detenção dos meios de produção nas mãos dos operários falhou, porque os engenheiros e intelectuais eram considerados inimigos da classe operária, e sem estes o sistema ruiu por completo, advindo daí uma grande miséria, uma grande fome que até hoje continua.
Depois com o liberalismo e o neoliberalismo da economia e a globalização, as grandes corporações unem-se numa só para comandarem o mundo e outra vez o advento da nossa escravidão. Parece ser sempre assim a História da Humanidade. No fundo acabaremos por depender de uma só pessoa que acabará por governar todo o mundo e a fome aumentará cada vez mais. Mas acho que tudo isso se deve à divisão do mundo em continentes. Não deveriam existir continentes na divisão do mundo, mas apenas um. De qualquer modo as ideologias ajudam a destruir a vida das pessoas.
Mais uma vez adormeci com fome. Acordei devido a uma grande trovoada cujos relâmpagos intensos iluminavam o interior da casa e os trovões faziam tremer tudo.
Alguém bate à porta com força. Como estava cheio de medo, mais fiquei ainda porque no local deserto onde vivíamos, e com a chuva intensa, só poderia ser talvez uma assombração. A minha mãe levantou-se e foi abrir a porta perante o meu terror de quem seria. Só poderia ser um monstro. Que alívio… era a minha avó materna que entrou ensopada:
- Trago esta comida para vocês, devem estar esfomeados!
- Obrigada minha mãe!
A minha mãe chamou-me para comer. A comida era couve verde cortada aos pedaços cozida com farinha de milho. Comi até não poder mais. Senti-me muito feliz por estar de barriga cheia, e por ter uma avó que não me deixava passar fome.
O meu pai era caixeiro-viajante, percorria Portugal de lés a lés. Transportava amostras de artigos de cordoaria. Tentava obter encomendas para o seu patrão. Deslocava-se numa motorizada até que teve um acidente do qual sofreu várias escoriações. Como o patrão não lhe pagava – e daí a nossa fome – vivíamos na miséria. Nunca recebeu qualquer indemnização pelo acidente.
O meu pai decidiu não mais viajar… e regressou para casa sem um tostão. Curioso é notar que estas injustiças ainda continuam ou até se exacerbam. Hoje continua vulgar a política de não pagar aos trabalhadores com o apoio discreto ou não de governos que obtêm dádivas muito substanciais do patronato e organizados em confrarias do mal. Governos onde vivem à solta, acobertados em regimes ditos democratas que são autênticos facínoras. Até a imprensa livre conseguem silenciar. Assim não dá. É que as coisas vão revolucionando até a pressão rebentar com a caldeira. Ainda há uma longa caminhada a percorrer ao reencontro dos caminhos da Liberdade.
O meu pai chegou quase como um desconhecido para mim, devido às suas longas ausências. A partir daí para onde ele ia eu acompanhava-o sempre. Depois de contar as peripécias porque passou à minha mãe, das quais eu não entendia nada, apenas queria estar ao seu lado. Tudo o mais não me interessava.
No outro dia fui com o meu pai e dois amigos dele à pesca das enguias no rio Tejo. Apanhámos muitas, e quando chegámos a casa a minha mãe fritou algumas e gostei. Estavam muito saborosas.
Depois a fome veio outra vez. A minha mãe levou-me para um ribeiro mais conhecido pelo ribeiro do Caldeirão, onde habitualmente ia de vez em quando com a roupa acumulada para lavar. O trajecto era distante e enquanto ela lavava eu passava o tempo a investigar as margens do ribeiro. Fazia algumas caminhadas e num local de águas mais fundas nadavam muitos peixes, alguns de apreciável tamanho.
Ficava vários minutos a observá-los e tentava apanhá-los com as mãos, mas depressa descobri que escorregavam facilmente. Então tive uma ideia. Peguei nalgumas pedras e quando os peixes maiores se aproximavam da superfície, com muita força atirava-lhes uma pedra… e consegui apanhar três. Quando regressei e mostrei à minha mãe o que trazia, ela não queria acreditar.
No outro dia pela manhã disse-me que o meu pai antes de sair comeu um e os outros dois ficaram para nós. A minha mãe confessou-me que o meu pai se surpreendeu com o meu feito, e que até comentou com os seus amigos. Cheio de orgulho o meu pai levou-me à presença do seu circulo de amizades e disse-lhes:
- Nunca mais chove!
Ao que eles corroboraram:
- Sim, nunca mais chove!
Senti-me um pequeno herói.
Chegados a casa, o meu pai ausenta-se rapidamente, e como eu queria ir no seu encalço, paralisou-me:
- Vai-te embora, vou escrever uma carta ao Salazar!
As horas passavam expectantes, a noite chegou e insistia para o sono. Eu e a minha mãe aguardávamos impacientes que ele chegasse, e como tardava fui-me deitar. A minha mãe ansiosa ficou de atalaia.
Acordei com o barulho. Era o meu pai com a voz cheia de terror, quase que não conseguia falar. Ouvi a minha mãe admoestá-lo de tão preocupada:
- Chegas depois da meia-noite porquê?! E estás assim tão cheio de medo, pareces que vistes o diabo à tua frente!
- Ó Mulher! Ó Mulher!
- Credo homem!
- Ó Mulher! Ó Mulher! Temos que sair daqui… eles viram-me e não me vão perdoar com medo de que eu me queixe deles!
- Mas eles quem?!
- As bruxas… eu vi as bruxas!
- Oh Meu Deus!.. Tu viste as bruxas ao luar (?!)
- Sim, como hoje é lua cheia eu vi-as, mesmo aqui ao pé de nós, naquele pequeno descampado… acho que estavam todas nuas. Eles e elas parece que a fornicarem… quando me viram pararam, fizeram-me gestos ameaçadores, e sabes que eu não quero nada com essas coisas do Diabo. Acho que reconheci algumas pessoas… a nossa vizinha, a sua filha, o marido, muita gente estava lá. Temos que sair daqui!
- Tens razão, temos que sair daqui, porque gente do demónio acabará por nos matar.

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