Até
hoje nunca consegui entender. E creio que também ninguém se apercebe porque a
Humanidade desde que existe – penso ser esta a questão número um – sempre foi a
luta contra a fome. E por mais evoluídos que estejamos a fome aumenta. Várias
personalidades ao longo da história deram grandes contribuições para se acabar
com este flagelo. Vários partidos comunistas de todo o mundo apontavam na sua
propaganda, que a fome acabaria para sempre e nós acreditámos e por isso os
ajudámos a tomarem o poder.
Com
alegria até oferecíamos as nossas vidas, porque enfim seríamos libertados para
sempre da miséria, e reinaríamos num paraíso eterno. É a mesma conversa das
religiões. É por isso que sempre afirmo que entre um partido político e a
religião, não existe diferença nenhuma. Ambos nos prometem o paraíso.
Para
isso teríamos que conquistar os meios de produção. Esses meios ficariam então
ao nosso dispor para sempre, devido à aliança operária e camponesa. Mas a
detenção dos meios de produção nas mãos dos operários falhou, porque os
engenheiros e intelectuais eram considerados inimigos da classe operária, e sem
estes o sistema ruiu por completo, advindo daí uma grande miséria, uma grande
fome que até hoje continua.
Depois
com o liberalismo e o neoliberalismo da economia e a globalização, as grandes
corporações unem-se numa só para comandarem o mundo e outra vez o advento da
nossa escravidão. Parece ser sempre assim a História da Humanidade. No fundo
acabaremos por depender de uma só pessoa que acabará por governar todo o mundo
e a fome aumentará cada vez mais. Mas acho que tudo isso se deve à divisão do
mundo em continentes. Não deveriam existir continentes na divisão do mundo, mas
apenas um. De qualquer modo as ideologias ajudam a destruir a vida das pessoas.
Mais
uma vez adormeci com fome. Acordei devido a uma grande trovoada cujos
relâmpagos intensos iluminavam o interior da casa e os trovões faziam tremer
tudo.
Alguém
bate à porta com força. Como estava cheio de medo, mais fiquei ainda porque no
local deserto onde vivíamos, e com a chuva intensa, só poderia ser talvez uma
assombração. A minha mãe levantou-se e foi abrir a porta perante o meu terror
de quem seria. Só poderia ser um monstro. Que alívio… era a minha avó materna
que entrou ensopada:
-
Trago esta comida para vocês, devem estar esfomeados!
-
Obrigada minha mãe!
A
minha mãe chamou-me para comer. A comida era couve verde cortada aos pedaços
cozida com farinha de milho. Comi até não poder mais. Senti-me muito feliz por
estar de barriga cheia, e por ter uma avó que não me deixava passar fome.
O
meu pai era caixeiro-viajante, percorria Portugal de lés a lés. Transportava
amostras de artigos de cordoaria. Tentava obter encomendas para o seu patrão.
Deslocava-se numa motorizada até que teve um acidente do qual sofreu várias
escoriações. Como o patrão não lhe pagava – e daí a nossa fome – vivíamos na
miséria. Nunca recebeu qualquer indemnização pelo acidente.
O
meu pai decidiu não mais viajar… e regressou para casa sem um tostão. Curioso é
notar que estas injustiças ainda continuam ou até se exacerbam. Hoje continua
vulgar a política de não pagar aos trabalhadores com o apoio discreto ou não de
governos que obtêm dádivas muito substanciais do patronato e organizados em
confrarias do mal. Governos onde vivem à solta, acobertados em regimes ditos
democratas que são autênticos facínoras. Até a imprensa livre conseguem
silenciar. Assim não dá. É que as coisas vão revolucionando até a pressão
rebentar com a caldeira. Ainda há uma longa caminhada a percorrer ao reencontro
dos caminhos da Liberdade.
O
meu pai chegou quase como um desconhecido para mim, devido às suas longas
ausências. A partir daí para onde ele ia eu acompanhava-o sempre. Depois de
contar as peripécias porque passou à minha mãe, das quais eu não entendia nada,
apenas queria estar ao seu lado. Tudo o mais não me interessava.
No
outro dia fui com o meu pai e dois amigos dele à pesca das enguias no rio Tejo.
Apanhámos muitas, e quando chegámos a casa a minha mãe fritou algumas e gostei.
Estavam muito saborosas.
Depois
a fome veio outra vez. A minha mãe levou-me para um ribeiro mais conhecido pelo
ribeiro do Caldeirão, onde habitualmente ia de vez em quando com a roupa
acumulada para lavar. O trajecto era distante e enquanto ela lavava eu passava
o tempo a investigar as margens do ribeiro. Fazia algumas caminhadas e num
local de águas mais fundas nadavam muitos peixes, alguns de apreciável tamanho.
Ficava
vários minutos a observá-los e tentava apanhá-los com as mãos, mas depressa
descobri que escorregavam facilmente. Então tive uma ideia. Peguei nalgumas
pedras e quando os peixes maiores se aproximavam da superfície, com muita força
atirava-lhes uma pedra… e consegui apanhar três. Quando regressei e mostrei à
minha mãe o que trazia, ela não queria acreditar.
No
outro dia pela manhã disse-me que o meu pai antes de sair comeu um e os outros
dois ficaram para nós. A minha mãe confessou-me que o meu pai se surpreendeu
com o meu feito, e que até comentou com os seus amigos. Cheio de orgulho o meu
pai levou-me à presença do seu circulo de amizades e disse-lhes:
- Nunca mais
chove!
Ao
que eles corroboraram:
-
Sim, nunca mais chove!
Senti-me
um pequeno herói.
Chegados
a casa, o meu
pai ausenta-se rapidamente, e como eu queria ir no seu encalço, paralisou-me:
-
Vai-te embora, vou escrever uma carta ao Salazar!
As
horas passavam expectantes, a noite chegou e insistia para o sono. Eu e a minha
mãe aguardávamos impacientes que ele chegasse, e como tardava fui-me deitar. A
minha mãe ansiosa ficou de atalaia.
Acordei
com o barulho. Era o meu pai com a voz cheia de terror, quase que não conseguia
falar. Ouvi a minha mãe admoestá-lo de tão preocupada:
-
Chegas depois da meia-noite porquê?! E estás assim tão cheio de medo, pareces
que vistes o diabo à tua frente!
- Ó
Mulher! Ó Mulher!
- Credo
homem!
- Ó
Mulher! Ó Mulher! Temos que sair daqui… eles viram-me e não me vão perdoar com
medo de que eu me queixe deles!
-
Mas eles quem?!
-
As bruxas… eu vi as bruxas!
-
Oh Meu Deus!.. Tu viste as bruxas ao luar (?!)
-
Sim, como hoje é lua cheia eu vi-as, mesmo aqui ao pé de nós, naquele pequeno
descampado… acho que estavam todas nuas. Eles e elas parece que a fornicarem…
quando me viram pararam, fizeram-me gestos ameaçadores, e sabes que eu não
quero nada com essas coisas do Diabo. Acho que reconheci algumas pessoas… a
nossa vizinha, a sua filha, o marido, muita gente estava lá. Temos que sair
daqui!
-
Tens razão, temos que sair daqui, porque gente do demónio acabará por nos
matar.
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