O Almirante não imaginou que uma criança
ultrapassasse um limite tão atroz. Repetiu:
- Tens pai ou não?
- Tenho. Mas raramente o vejo. São muitas mulheres
para um homem. Entendes?
- Entendo.
- Quem me der comida e bebida esse é o meu pai.
- Então a noite é o teu pai.
- Sou jovem. Quero gozar a minha vida. Divertir-me
com este, com aquele. Qualquer um serve desde que pague e me dê o que
necessito.
O Presidente reitera que a injustiça não nos
liberta:
- É uma questão importantíssima porque nós
pretendemos sempre agir em nome da justiça, agir em nome do progresso, mas nem
sempre os nossos actos coincidem com a justiça e com o progresso. Ainda
praticamos, aqui, muitas injustiças, ainda há homens, cidadãos do nosso país,
que praticam a arbitrariedade. Precisamos de vigiar melhor o direito de cada um
dos nossos compatriotas de gozar uma vida livre e uma vida em que se possa
dizer realmente defendida pelo Estado e pelo Partido. Hoje, em Luanda, não
temos sapateiros, nem carpinteiros, nem marceneiros. Porquê? Porque todos foram
para a função pública. Bom, os camaradas bateram palmas, mas devem saber que
não é fácil, não é nada fácil. É necessário ter princípios, ser-se coerente,
honesto e modesto. É preciso reunir uma série de qualidades para se poder ser
comunista. Alguns dos nossos compatriotas poderão, talvez, ter o seu próprio
carro, a sua camioneta, a sua carrinha para resolver os problemas do comércio e
outros problemas. A construção de habitação, por cada um, já não é proibida,
hoje. Cada um pode construir a sua casa onde melhor lhe convém, obedecendo é
claro, aos planos de urbanização. Os homens e mulheres que vivem no campo,
sofrem imenso, porque não podem comprar, porque não podem vender e,
dificilmente, podem produzir. Mas aqueles que podem resolver os problemas
sozinhos, ou pensem que podem resolver os problemas sozinhos, vamos dar-lhes
essa possibilidade de resolverem os seus problemas. In [1] Agostinho
Neto. 10 De Dezembro de 1978. Discurso no acto central do 10 de Dezembro.
- Almirante, faço trinta anos. Espero somar mais
trinta. - Foi assim que a Liberdade respondeu quando o Almirante a chamou.
Ele conhecia o pai dela desde longa data. Desde os
tempos da luta de libertação. Não era muito atraente de corpo, mas os seios grandes,
erectos despertavam a atenção. Ela sabia disso. E utilizava-os como arma
secreta. O Almirante abraçou-a ternamente. Perguntou:
- Como está o teu pai?
- Mal, continua abandonado.
- O Partido ainda não resolveu a sua situação?
- Não Almirante. Nem nunca vai resolver. Só
consideram antigos combatentes os que andaram com armas nas mãos. Muitos
combateram com o seu intelecto. Talvez esses fossem de facto e de jure os
melhores combatentes. O teu pai prometeu que quando nascesse uma menina, que
iria para uma boa escola. Que seria doutora.
- Almirante, prometeram-nos muita coisa. Lutámos em
vão. Não quero mais saber dessas coisas partidárias.
- Liberdade, um nome muito bonito.
- Sim. Não passa de um nome. Foi o meu pai no ardor
da luta. Como muitos que se chamam Vladimiro.
- Deixaste de estudar?
- Claro… tio Almirante sem dinheiro não se pode
estudar.
- E o que é que fazes? Andas por aí?
- Não, faço o que muitas fazem. Comprar cerveja,
gasosa, bolachas, rebuçados e revendo.
- Hoje não estás a vender.
- Não tio Almirante, tirei uma folga.
- Andas à caça deles como as outras fazem?
- Não, nem pensar. Não aceito essa vida de
porcaria. Entregar o meu corpo a um qualquer que me vai trazer doença. Os
poucos lucros que obtenho chegam-me para não passar fome, e comprar alguma
roupa. Estou a juntar dinheiro para os meus estudos. Sinto que não vou
conseguir. Estudar é um privilégio de ricos. Quinhentos anos de colonialismo e
trinta de neocolonialismo chegam para acreditar que nem direito teremos às
sobras da Pátria.
O Almirante prossegue com o seu inquérito. Desta
vez é a Qualquer Um Serve. Pergunta-lhe:
- Não achas que esse nome é ofensivo?
- Não, é o meu nome de guerra.
- A guerra já acabou.
- Para nós continua, e não sabemos quando e como
acabará.
- Com SIDA.
- Paciência Almirante. Tanto faz, a minha mãe
morreu por causa disso.
- Estudas na universidade da noite não é?
- Melhor que esta não há, e é gratuita.
- Não pagas propinas, não precisas de livros nem de
professores.
- Almirante, a minha vagina já leu muitos livros,
conheceu muitos professores. Já está doutorada.
- Estou a ver. Frequentou devidamente a
universidade das noites carnosas.
- As melhores que existem no nosso país.
Lutámos e não conseguimos. Enganámos os que
confiaram em nós: - Pensou o Presidente:
- Estamos a recorrer a técnicos estrangeiros.
Teremos de recorrer sempre, porque não teremos a técnica durante este ano, não
teremos a técnica dentro dos próximos dez anos. Vamos recorrer sempre à ajuda
estrangeira. Temos muitos analfabetos e as crianças, os homens, as mulheres
devem aprender a ler e a escrever. Vamos preocuparmo-nos com a formação de
quadros para a agricultura. Os nossos jovens, quando se fala em formar técnicos
agrícolas ou técnicos para apoio às empresas industriais, riem-se um pouco,
dizem que isso não é ofício para uma pessoa que já sabe alguma coisa e querem
ser advogados, médicos… Formem-se os técnicos, mecânicos para a organização de
uma secção de transportes, para a condução de tractores, para a utilização de
tractores. Formem-se os técnicos que podem organizar os transportes, formem-se
os técnicos para poder dirigir instalações eléctricas etc., porque aí está a
base, está o futuro da nossa vida. Temos energia eléctrica a instalar em várias
províncias que ainda não têm energia eléctrica. Temos bairros em Luanda mal
servidos de energia eléctrica. Há pouco tempo os camaradas, pelo menos em
Luanda, das Comissões Populares de Bairros, estiveram reunidos com o camarada
ministro da Construção e Habitação, para ver como é que vamos resolver o problema
da habitação nesta cidade que está a crescer de dia para dia. Bom, desde que se
tratou este problema, já começaram as construções sem licença de ninguém. Cada
um apanha duas chapas de zinco, dois adobes, três pedras e faz a sua casa. E
faz a sua casa de maneira a tapar a rua, tapar o acesso à população a
determinados locais. Enfim está-se a fazer uma aplicação muito má do princípio
que nós temos admitido, como uma probabilidade num futuro próximo. Quer dizer
que não constroem com a licença do Comissariado Municipal, não constroem com a
licença do Ministério da Construção e vamos tendo a cidade tapada em várias
ruas. Não pode ser! Vamos construir sim, mas com a licença do Comissariado
Municipal, com o acordo do Ministério da Construção em todo o País. Quem tem os
seus meios, quem tem material, pode construir, pode ter a sua casa para viver
mas respeitando os planos de urbanização, os planos de organização de cada
cidade dentro do País. Não vamos construir de uma maneira selvagem, de uma
maneira anárquica. Temos de construir de maneira que tudo esteja ordenado,
porque senão, bom, o tractor vai passar por cima. Não teremos outro remédio.
Vamos pôr os tractores em cima dessas casas que estão a tapar as ruas e aqueles
que já começaram é melhor parar. In Agostinho Neto. 4 De Fevereiro de
1979. Discurso no acto central do 4 Fevereiro.
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