De
posse da minha colecção, Quer Saber? Comecei a devorar um a um os muitos
volumes que compunham esta pequena enciclopédia do saber. Andava sempre com um
deles na mão, e quando lia perdia-me, alheava-me de tudo. De tal modo me
concentrava na leitura que me esquecia do que tinha de fazer.
Para
comprar a matéria-prima para abastecer a fábrica de arame, ia ao Rocha Pereira
Amado & Latino, na rua da Prata, e os plásticos na Pollux, na rua dos
Fanqueiros. Depois ia para a estação do Rossio apanhar o comboio com destino a
Queluz. Assim que entrava no comboio e me sentava, a primeira coisa que fazia
era ler, e de tão hipnotizado, algumas vezes ia parar noutra estação mais
adiante e uma vez fui parar a… Sintra.
Perante
estes acontecimentos os Wanzeller começaram a mostrar muita preocupação.
Deram-me muitas reprimendas, lições de moral mas acabaram por se cansar, e
disseram-me finalmente:
-
Assim como és… distraído… nunca serás ninguém na vida! O conselho que te damos
é que estudes, e tenta formar-te porque só assim te darão valor. Se não mudares
o teu comportamento serás sempre um frustrado, um revoltado contra a sociedade!
Ouvi
em silêncio e fiquei a pensar como é que eu poderia estudar, se já há dois
meses não me pagavam os salários.
A
Noémia, perante o meu gosto de ler teve a ideia de me oferecer um livro. O meu
primeiro livro de verdadeira leitura a Antologia do Conto Fantástico Português.
Li-o e reli-o, mas a pensar porque diabo me ofereceu ela este livro tão
diferente das leituras que até então tinha lido? Seria porque eu vivia no
fantástico? No irreal? Ou teria ela, apenas ela, devido à sua formação em
germânicas aperceber-se da minha personalidade? Por mais que tentasse
compreender, o certo é que nunca o consegui.
Acho
que era apenas para uma introdução à literatura portuguesa do conto fantástico.
Para mim era um volume considerável, pois continha muitos contos de vários
autores portugueses. Depois ofereceu-me outro livro, A Selva, de Ferreira de
Castro, aqui sim, fiquei impressionado com a vida que este homem viveu e sofreu
nos seringais do Brasil, e o mais surpreendente é que tinha apenas a quarta
classe, era um autodidacta.
Fiquei
muito pensativo desde esse momento. Afinal existiram portugueses que não
tiveram meios para estudar, e conseguiram ser grandes escritores. Isso deu-me
uma grande força na alma. A Noémia ofereceu-me outro livro, As Vinhas da Ira,
de John Steinbeck. Admirei nesta obra a descrição que o autor faz de um cágado,
e a Rosa de Sharon com os seus seios a aleitar um esfomeado, mas sobretudo as
descrições da grande depressão que para mim eram novidade, pois que me iniciava
no conhecimento das coisas.
Já
colocava algumas questões pertinentes aos Wanzeller. Já começava a ter um rumo
político, já sentia alguma revolta, já sentia alguma percepção perante as
diferenças de classes sociais. As minhas questões eram respondidas com: «que eu
deveria estudar».
Acontecia
que os meus salários continuavam a não ser pagos. Quase há um ano… Quando
Wanzeller recebia o dinheiro dos clientes na minha presença, dizia-me que tinha
de pagar os estudos dos filhos e o luxo de casa, porque parecia mal se não
vivessem assim. Também tinha que comprar boas roupas devido à condição social
que aparentemente ocupavam. Dizia-me para esperar um pouco mais, que no próximo
fornecimento aos clientes pagaria a minha dívida. A situação mantinha-se, o meu
pai disse-me para sair desse trabalho porque me estavam a explorar. Transmiti a
preocupação do meu pai ao Wanzeller, e de imediato ele disse-me que iria falar
com o meu pai.
Foi,
e deixou um cartão-de-visita em poder do meu pai, que já ia em mais de um ano
de dívida, uma pequena fortuna, e no cartão declarava o valor, e que se
comprometia a pagá-la muito rapidamente. Implorava ao meu pai para que evitasse
a todo o custo a queixa, a denúncia junto de alguém competente, porque não
queria escândalos.
O
meu pai concordou e passaram-se mais três meses e nada. Perante a exploração a
que me sujeitavam e ainda o facto de constantemente me apelidarem de
mariazinha, e insistirem que era um filho de casa, o meu pai insistiu para
abandonar o emprego. Assim fiz, Wanzeller tentou convencer-me do contrário,
afirmando que iria pagar dentro de três dias, o que não aconteceu.
Depois
despedi-me, com muita mágoa é verdade, com ar paternal disse-me:
-
Nunca te esqueças que é graças a mim que conheces todas as ruas de Lisboa, que
aprendeste a andar de eléctrico. Eras quase analfabeto quando te conhecemos,
fui eu que te ensinei a beber uma ginjinha com elas, e a beber um copo de dois
e de três com uma sandes quando estávamos muito apressados. Fui eu que te
ensinei tudo o que agora sabes, fui eu quem te preparou para a vida, e poderia
ensinar-te ainda mais, mas como me vais abandonar, e isso é grande ingratidão
da tua parte, depois de tudo o que fizemos por ti. Por isso pensa bem porque
acho que te vais arrepender. Tu és como um filho para nós, gostamos muito de
ti. Sempre insisti para estudares mas tu nunca o quisestes. Já que não queres
estudar, então aprende a ser um homem.
As
palavras eram muito convincentes, mas um ser humano não vive de palavras. Vive
sim, mas só depois de se alimentar. Não é possível falar convenientemente sem
alimentação. E tudo acabou. A divida que se comprometeu a pagar ao meu pai de
quase dois anos, uma pequena fortuna para nós, nunca foi cumprida.
De
facto quando um patrão faz muitas promessas a um empregado, e o seu falar é
doce, meigo, terno, de muita amizade, e muita música, acreditem que ele está
apenas a ser falso. Não é por acaso que as grandes fortunas surgem. Quem é
muito rico, roubou muito.
Verdadeiramente
nunca conheci ninguém que sendo honesto enriquecesse, e o mundo acabará no caos
porque a invasão dos novos bárbaros impiedosos e protegidos por leis
internacionais, têm permissão legal para escravizar qualquer trabalhador à
escala planetária. Sim, à escala planetária porque quando o próximo planeta for
colonizado, serão os famintos que para lá irão extrair os minérios. Tudo em
nome da civilização e da descoberta de novos mundos.
Seremos
controlados por pulseiras, por coleiras em nome da electrónica. Seremos
vigiados por satélites, seremos os novos escravos, seremos exterminados
lentamente. Os clones avançarão como exércitos e humanos só restarão meia
dúzia, esses que actualmente dominam o mundo, e regressaremos à Idade Média, ao
seu sistema social, a um novo reinado em que o senhor do novo castelo do Universo
reinará por milhões de anos. E nos escravos planetários nascerá uma nova
religião. Um novo Cristo surgirá a anunciar que todos os planetas receberão a
boa nova do novo evangelho.
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