Acabei
por conhecer o Ludovino, que depois me propôs se eu queria trabalhar num
ambiente familiar, porque ele ia para a sua terra natal, e o seu patrão
pediu-lhe para arranjar alguém de confiança, que fosse honesto e trabalhador.
Combinámos, e no outro dia lá fui com ele apresentar-me. Fui aceite. O local de
trabalho situava-se na rua Maria aos Anjos, próximo do Martim Moniz, e era
servido pela rede de eléctricos de Lisboa. Ficava no quinto andar de um prédio.
O
meu trabalho era fabricar cabides, suportes de ferros de engomar e molas para a
roupa. Havia uma maquineta artesanal em madeira montada na cozinha.
Pendurava-se um rolo de arame e na extremidade que se arrastava à mão, havia
uma marca onde com uma lima se cortava o rolo de arame em pedaços, que depois
recebiam tubos de plástico previamente fervidos até amolecerem o suficiente
para serem enfiados nos arames cortados à medida.
Depois,
através de pequenas engrenagens metálicas procedia-se à feitura das molas, dos
cabides e dos suportes para os ferros de engomar. O dono desta original fábrica
doméstica era descendente de judeus holandeses, os Wanzeller. O segredo já
vinha de família. Vieram para Portugal fugitivos da Holanda por causa dos nazis
e aqui ficaram. A esposa, Licínia, a filha, Noémia, e o filho, Carlos Alberto,
eram donos de grande cultura e intelecto. Na realidade devo-lhes a iniciação
nos grandes mestres da literatura mundial.
Nova
mudança de casa. Finalmente e definitivamente para Olivais-Sul, Encarnação,
arredores de Lisboa, num prédio com quatro andares. Eram as casas prometidas
por Salazar para os pobres, que mediante pequenas prestações mensais, ao fim de
vinte anos seriam entregues aos moradores. Um bairro bonito, bem estruturado,
bem arborizado, com floresta e piscina.
Com
grandes espaços livres, um liceu, escola, banco, supermercado, com um senão.
Falta de mais espaços para actividades desportivas. Os jogos de futebol
disputavam-se na rua asfaltada, à noite. Quando um carro circulava éramos
obrigados a interromper a partida, e o carro nívea, azul e branco, da Polícia
perseguia-nos a toda a hora.
Entretanto,
o Jorge, mecânico de automóveis, dizia-me para aguardar que já ia buscar o
Austin Cooper S de um cliente, e que depois iríamos dar umas voltas por aí. Só
que tínhamos que roubar gasolina, porque estes carros consumiam muito
combustível. O Jorge, conhecedor das redondezas sabia onde estariam os
abastecedores com gasolina da melhor qualidade, no bairro da Encarnação. E lá
pelas três da manhã quando todos dormiam, dava-me uma lata de um galão e uma
mangueira, e apontava para outro Austin Cooper S, chamando-me a atenção de que:
«Esse aí está bem abastecido, e o tampão é fácil de abrir.»
Aproximava-me
então para o reabastecimento. Tudo estava bem iluminado, e receava que se
alguém me descobrisse, não sei como seria, pois que era muito fácil ficarmos
encurralados. Em mais algumas vezes que abastecemos por este método, por sorte
nunca fomos surpreendidos. Depois mergulhávamos na noite. O Jorge ia sempre ter
com a namorada dele, ali para os lados de Moscavide. Ela estava sempre à espera
dele, sempre preparada a qualquer hora da noite.
Ela
gostava imenso dele, e como tinha uma irmã, vinham as duas muito felizes porque
iam passear de carro, mas tinham que voltar antes do amanhecer para iludir os
pais como se não se tivessem ausentado de casa. Depois parávamos num local bem
escondido, e o carro ficava com roupas espalhadas por todo o lado. Fazíamos
amor até ficarmos cansados, e depois as nossas namoradas procuravam os
biquínis, os sutiãs e o resto da roupa. Tinham uma grande preocupação de
arranjar os cabelos e alisar a roupa amarrotada.
Depois
íamos comer pão quente com manteiga e beber uma garrafa de leite nas bombas de
combustível da SACOR, na Encarnação, que também tinha restaurante. Muito
rápidos íamos levá-las a casa, depois era eu. O Jorge ensinou-me que para
entrar em casa sem ninguém dar conta, tinha que meter a chave muito devagarinho
na fechadura e ir rodando lentamente, ao mesmo tempo que segurava no puxador da
porta, levantando-a para evitar as folgas. Assim evitava-se o ranger e o chiar
gótico quando se abre uma porta. Depois em passos muito leves ia para a cama.
As nossas namoradas não necessitavam destes cuidados, porque entravam pela
janela que antes deixaram encostada. Tudo ficava em segredo, só nós os quatro é
que sabíamos.
Com
esforço e poupanças e também com a ajuda do meu pai, que foi promovido no
serviço – passou a bagageiro na TAP – o que lhe permitia já algum desafogo
financeiro. Ele dizia que não era o dinheiro do vencimento que o sustentava,
mas as inúmeras gorjetas que os passageiros lhe ofereciam pelos serviços de
carregamento das suas bagagens.
Várias
moedas estrangeiras que depois no fim do mês se cambiavam. Também conseguiu
crédito num merceeiro amigo de Moscavide. Ele enviava-nos todos os meses um
carro bem carregado de comida. O leite e o pão eram colocados à porta todos os
dias bem cedo. Também a pagar no fim do mês.
Comprei
a colecção completa, salvo erro da Porto Editora, dos livros Quer Saber?
Tratava de muitos temas desde, a História do Dinheiro, até a Mozart, Beethoven,
etc. Comecei a aprender muita coisa, a entrar no desconhecido, a sair da
ignorância. Depois também comprei a colecção completa do Fantomas, mas só li metade
devido à repetição cansativa da personagem, e lamentei o dinheiro gasto.
Entretanto,
Wanzeller muda-se para Queluz, nas proximidades de Sintra, um local muito mais
calmo. Uma habitação com apenas dois andares, mas com grande arrecadação na
cave e um, pode-se dizer, vasto quintal, que lhe permitia aí instalar a sua
fábrica.
Mais
um jovem foi contratado e incumbiram-me de lhe ensinar as técnicas de
fabricação. A produção aumentou e os clientes também, especialmente as molas
para a roupa que os clientes muito apreciavam, pois que eram de boa qualidade.
O nosso principal cliente era a Pollux, na Rua dos Fanqueiros.
Concederam-me
o direito de frequentar e a almoçar na casa, a conviver com a família, pois
consideravam-me como um filho. A Noémia, licenciada em germânicas, ensinou-me a
contar em três línguas, de um até dez. Em alemão, inglês e francês. Queria
despertar-me para as línguas estrangeiras.
Imagem:
lisboacity.olx.pt
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