RCE - República dos Comités de
Especialidade, algures no Golfo da Guiné.
E o auditório
em uníssono
aplaude a sapiência do grão-mestre mandatado pelo Rei
do Petróleo. «Com o analfabetismo a oitenta, noventa por
cento , os doutores
e poetas excedem as esquinas .
Nestas se acotovelam, atropelam-se, e não
há Muro das Lamentações .
Donde repentinamente veio tal avalanche de avatares ?
Ninguém sabe, mas
desconfia-se que é devido
às alterações climáticas, ao calor abrasador que
faz ferver os cérebros .
E já se instituiu a novel
classe social
do doutor general-poeta, doutor novo-rico ,
poeta novo-rico .
É a abertura da marcha
do desenvolvimento económico e social . É mais fácil ser superficial , porque
aprofundar exige muito
trabalhar.»
O estatuto de doutor
e poeta permite-lhes reuniões ,
debates , conferências ,
seminários , assembleias, tertúlias , e agenda nacional de consenso ,
onde no fim
os participantes descobrem estupefactos que
não há concerto de ideias. Há
unanimidade em que
as questões económicas e sociais de um país decidem-se com
intermináveis palermices partidárias. Entretanto,
desconhece-se quem está disposto a trabalhar . Um participante desiludido questionou: «A democracia é a aspiração
do voto em
dias melhores
que nunca
surgem. É o eterno voto
do permanecer sempre
na mesma . As tradições
orais foram-se, perdemos a nossa identidade
cultural. O desenvolvimento económico e social é sustentado pelos
doutores e poetas
dos planos quinquenais. O melhor desenvolvimento
económico é matar o povo
à fome . E a militância poética glorifica os feitos
do Rei do Petróleo. «Ah! poesia da terra oca , vazia , sem
conteúdo mas terrivelmente real da orgia das chacinas.»
E o poeta militante ,
milita, afia as goelas , palavreia:
Os meus
punhais anoitecem na destruição sistemática/ Do que
resta , já
foi, já era ,
não mais será/ Punhais ferrugentos das águas impuras/ Corroídos, perdidos nos quilombos . Corruptos , corrompidos! / Ao libertarmo-nos do colonialismo tínhamos o desejo
do regresso/Aos nossos gloriosos eternos
quilombos . Estamos imensamente
felizes/ Todos mandamos, somos chefes ,
somos a anarquia/ Somos livres na nossa feitiçaria ,
na nossa monarquia/ E quem é que manda ? Os donos
do petróleo e diamantes !/
Ser patriota é passar fome ,
e nunca venceremos a guerra/ Porque é atrozmente difícil .
Fácil é carregar
no gatilho/ Sem bibliotecas públicas e com milhões de
gatilhos/ Pereceremos vencidos, vendidos, rendidos à fome .
Dos poderes
da magia , eis
que surge o último
trovador profissional
da tradição oral :
«Bantus, à procura do Graal, da perdida tradição oral ! Canto a trova
dos deserdados das fortunas ,
desesperançados da riqueza aviltados. Nos poderes
exteriorizados. Poder , são
os povos a sofrer .
O poder da miséria
é histórico . Morrer ,
padecer à fome
é um acto heróico .
São tantos
os soldados conhecidos .
A vida da miséria
é revivida. Nos tostões
parcos da despedida .
O poder de Kalunga é incomensurável .
Só nos
lembramos Dele quando a miséria bate brutalmente
no coração . Que
antes era
ferro ferrugento, e que
repentinamente se purifica. E a lepra subsiste. Símbolo
da miséria é andar
de mão estendida, com
o filho às costas ,
a chorar , a desesperar .
Por entre
carros desumanizados, sem conseguir mendigar . Os passos
encurtam-se, está a acabar a luz
solar . O chão
de dormir endurece a noite
sem luar . Fome é desfalecer , desarrumar a esperança
sem forças
para lutar . É triste morrer só , abandonado em
qualquer lugar .
A fome não
tem moradas , mas
os seus caminhos
estão localizados. Os ignaros
sacralizam-nos, presenteiam-nos os caminhos
da fome . Sem
estrada , ponte ,
rua , sem
nada . Os abarrotados protegem-se
oprimindo os miseráveis . Os miseráveis bebem água
inquinada, os abarrotados água
engarrafada. O calendário da vida está prenhe de dias injustiçados .»
Faz uma pausa,
retoma a memória : «Fora de questão : não é o menino das chuvadas ,
é o homem . É isso !
E num país de sol
ardente um
carro aportado, abortado sem ar
condicionado. As pessoas estão sempre a morrer e a nascer , a chorar e a cantar . Uns vão mais cedo , outros mais tarde . Mas todos vão . Idiotas com uma
bandeira e um
hino ! A questão
é: sem um
tostão . Isto
não é uma nação ,
é o fundamentalismo da escravidão . Uma agenda sem consenso , sem referendo
da fome .»
Recupera o fôlego , remata: «Ó Bantus! Há crescimento
económico no PETRÓLEO E DIAMANTES !
Nós , o povo ,
estamos na escuridão e na sede ,
no reino do morrer à fome . Vejam o que fizeram às nossas mulheres !
Negra é como
mosca ! Enxota-se, pisa-se, esmagasse,
elimina-se, mata-se. O lixo é mais valioso . Este é o reino em
que o mais essencial
é o aniquilar o outro
por todos
os meios possíveis .»
A Pax Angolana chegava e
as estradas se esburacavam. Os conquistados, parados, observavam e comentavam:
«vamos ver o que
estes chineses nos
trazem». Depois : «Ah… trazem-nos subdesenvolvimento .»
Agora, na moda
do falatório do desenvolvimento
sustentado das conferências não auto-sustentadas, temos estradas
com buracos ,
buracões, crateras , cavernas ,
abismos . Acreditamos que são
perfurações petrolíferas e escavações
diamantíferas. Que ultraje !
Já ultrapassam os incontáveis
doutores e poetas
doutra tempestade que
surge, outra grande
epidemia , estamos certos .
Há tantos
anos que
as chuvas foram previstas, revistas , anunciadas, proclamadas, trovejadas,
ciclonadas. É mais fácil
para quem
finge democraticamente governar , esperar
a destruição e culpar
a chuvada , e depois
remeter a responsabilidade
para o auxílio
internacional . Se não
vier apoio é porque os Britânicos e Americanos
estão apostados no derrube do sempre mesmo governo
vitalício e pela batota democraticamente reeleito.
Alguns escravos de intelecto
apurado, bombardeiros habituais , criticam a sua
exterioridade pedante .
Os outros ouvem-nos e prosseguem-nos. Falar … falar é preciso . Das palavras
até surgir
a acção outro milénio de palavreado é esperado. E os escravos
rejubilam-se porque falaram,
repetiram-se muito com …
não é! Não
é!?
Todos a pé com os arcos , as flechas
e as tangas da ancestralidade,
ressorrindo na imposição do retorno comunista .
E os arautos da descolonização
libertadora copiam manuais médicos , e estrelam dos seus
palácios que
andar a pé , é
bom , eficaz
para a saúde .
E chega-se ao local do trabalho
cansado , ensonado, com grande apetência para sonecar . É a dádiva
do remetente comunismo .
E as multidões passeantes cantam como se enchessem escunas
na busca do tesouro
perdido: «Ió-hó-hó, e uma garrafa
de aguardente !»
Enquanto sem jindungo, muitos
frutos da nação
desbaratam os contentores do lixo nos prédios moribundos , mas
independentes. O Vladimiro, maluco itinerante ergue o seu
punho . Apenas
conserva na memória
os gritos intencionais
do ensino três
vezes ultrajante: «Pelo poder
popular ! Pelo
poder popular !
Pelo poder popular !»
Deste ensino que o
elevou à loucura .
Passeiam-se os
novos-ricos insensíveis , que vivem neste novo mundo petrolífero Hummer,
desafiam, incumprem as leis , porque ainda não justificaram a origem
das suas riquezas
Ao longe
escuta-se o ruído da chuva
estridente da padiola
do desenvolvimento insustentável ,
dos subdesenvolvidos contaminados pela cólera .
Com fornecimentos
de energia eléctrica e água medidos em
onças , um
aviltado sonda as vagas
da repressão do novo
navio negreiro a estibordo
e a bombordo . Temeroso ,
brumoso , inseguro ,
mas mesmo
assim grita : «A FOME …
CONTINUA! A MISÉRIA … É CERTA !» Tantos alienados ,
por causa das
estradas das chacinas desoladas.
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