terça-feira, 23 de abril de 2013

O empresário luso-angolano (03)




«Convêm ler outra vez Marx com novos olhos para compreender a crise que vivemos ninguém pense que vai ficar imune às ondas de choque da crise do sistema financeiro alguns dos paliativos escondem as misérias mas abrem novas fracturas nunca a Deco trabalhou tanto e por favor comprem uma lupa e leiam as entrelinhas dos vossos contratos.» In anónimo. Público última hora

O que rouba e mais corrompe, esse é o chefe, o eleito, o exemplo a seguir. Eis como nasce o terrorismo e de quem o alimenta.
O motorista intervém e explica com um sorriso:
- Móbaile é o telemóvel.
Dei-lhe o meu número, ele retribuiu. Já de saída deixa sair o sentimento da gratidão:
- Não esquecerei o que fizeste por mim, depois ligo-te do meu móbaile.
O motorista estacionou o carro. Depois ajudou-me a carregar a minha bagagem. Subimos as escadas de um prédio de quatro andares. Parámos no segundo, abriu a porta e convidou-me a entrar. Depois entregou-me a chave e despediu-se:
- O Dr. Vieira mora no primeiro andar. Acho que ele já lhe vai ligar para falar consigo.
Fiquei a observar o apartamento. Era espaçoso, bem arejado e bem arrumado. Tinha uma varanda e vasos com flores. Sempre gostei de as ver à minha volta, porque prendem-me a atenção, são muito cativantes. Tinha ar condicionado na sala e no quarto. O frigorífico e a arca de congelação eram demasiado volumosos para uma pessoa. Abri-os e notei que estavam bem apetrechados. Uma pequena despensa repleta com os mais variados produtos completava os gostos de qualquer glutão. A cozinha era ampla e estava impecavelmente arrumada.
Lembrei-me das célebres constantes falhas de luz e água que são o dia a dia dos africanos. Sorri com uma anedota que não me lembrava onde a li. Abriam-se as torneiras acendia-se a luz. Ligavam-se os interruptores, saía água. Bom, vamos lá a ver se há água. Abri a torneira do lava-loiça e o líquido veio forte, de um jacto. Esperei uns momentos para verificar se a pressão se mantinha, o que aconteceu. Liguei um interruptor, a lâmpada acendeu. Bom, tenho água e luz. – Murmurei.
Ocorreu-me um pormenor. E quando não houvesse luz? Percorri todos os cantos e terminei na varanda. Não havia gerador. Ah!.. faltava verificar uma última coisa… o telefone não funciona... tenho o telemóvel. O telefone fará falta para me conectar à Internet… depois falarei com o Vieira.
O telemóvel toca. Atendo a primeira chamada que me fazem… é o Vieira.
- Já te instalaste? Estás a gostar do ambiente?!
- Está tudo ok. Depois falamos com mais pormenor.
- Daqui a pouco estarei aí.
Devido ao calor, tirei o casaco e a gravata. Liguei o ar condicionado. Dez minutos depois deixou de funcionar. Pensei que se tinha avariado. Liguei um interruptor, a lâmpada não acendeu. Creio que era para me habituar. Afinal não estava na Europa. Com tudo atestado de comida e bebida acho que nem valia a pena sair mais daqui. Batem à porta, abro, é o Vieira. Não me deixa falar:
- Já sei, não tens luz. Vi pela campainha, não tocou. Mas o que é que tu queres? Isto aqui é normal. Tens que te habituar. Por aqui já podes ver os custos que uma empresa tem para funcionar. Gerador, combustível, e manutenção. Tanque de água, electrobomba etc… custos elevados. Mas não te preocupes que consegui alugar uma parte da Cidadela Desportiva. Preparo uma suite e depois mudas-te. Vou lá instalar uma padaria, esse negócio está a dar, temos que aproveitar. Vou criar mais duas empresas, uma para trabalhar em comunicações e informática, da qual serás o director-geral. A outra será uma trading. Como vês trabalho não te falta. Amanhã vamos ter uma reunião nos Caminhos de Luanda. A propósito, sabes o que é que quer dizer MPLA?
- Sei. Movimento…
- Não! Menos Pão Luz e Água, e Movimento Popular de Luanda e Arredores, porque só investem em Luanda e nos arredores.
- Vieira, já te contaram a cena que se passou à saída do aeroporto com…
- Já, já me contaram. Isto está cheio de bandidos por todo o lado. Investir já se torna um risco cada vez mais elevado. A marcha para a grande fome final é inevitável.
- Vieira… custa-me a entender com tanto dinheiro…
- Os chineses quando são retirados da vida militar, obrigam-nos a tirar uma especialização, e integram-se na vida civil. Aqui desmobilizam-nos e atiram-nos para o olho da rua… entregues à sua sorte. E com tantos despedimentos que fazem, teremos um exército de um milhão de bandidos. Se juntarmos a isso a Sida, a malária, a tuberculose etc. Teremos…
- Mais um Estado falhado.
- Precisamente… tenho que ir. Logo, vamos jantar aí a um bom restaurante. Se te faltar alguma coisa liga-me. Entretanto serve-te. Sei que é aborrecido ficar sozinho, mas isso será por pouco tempo.

«Não tenhamos ilusões: entre nós, não há nem neo-liberalismo nem capitalismo regulado, temos, sim, um capitalismo de bairro, onde só se sentam à mesa amigos, fiéis e cúmplices, quer sejam nacionais ou estrangeiros, com uma mão invisível a comandar tudo, a partir da bolinha de cristal...» In Justino Pinto de Andrade.

As treze horas passaram, a fome apressou-se. Abri a arca e escolhi a sardinha portuguesa para assar. Estava a retirá-las da embalagem quando me lembrei que não havia luz. Recoloquei-as no lugar. Abri o frigorífico e optei por barras de queijo com presunto, a que juntei algumas azeitonas e fatias de pão. Fui à despensa e deparei-me sorridente com as olímpicas garrafas do maravilhoso vinho Dão. Seleccionei uma Dão Meia Encosta tinto.
Acabei de comer e esvaziei o resto do Meia Encosta. Senti pouco depois uma agradável sonolência. Levantei-me e fui ver a filmoteca. Havia muitos filmes em CD. Procurei um que me agradasse. Lembrei-me novamente que não havia luz. Acendi um cigarro e fui para a varanda contemplar a rua.
A rua estreitava-se ladeada por inúmeras vivendas. O prédio onde me encontrava marcava o início da rua. Havia outro em frente com o chão esburacado junto a uma caixa de iluminação, onde jazia um cabo eléctrico. Um monte de terra proveniente do buraco escavado ocupava um terço da via. Grande parte do asfalto necessitava de conservação. Via-se pouca gente, apenas algumas crianças jogando basquetebol e tentando acertar numa circunferência metálica improvisada.
Bocejei duas vezes. Senti sono e fui sentar-me no sofá da sala. Não sei o que a minha esposa e filhos estariam agora a pensar de mim. Tenho que lhes enviar um e-mail o mais rápido possível... tratarei disso mais tarde. – murmurei.
Adormeci profundamente. Despertei com o som do telemóvel, estas máquinas chatas que inventaram. Para dormir o melhor é desligá-las. Só pode ser o Vieira, quem mais há-de ser?
- Alô! Alô!
- Sim, boa tarde. – Disse a voz do outro lado.
- Boa tarde, quem fala? – Interroguei.
- Meu amigo branco, é o Malcolm X.
- Malcolm X (!)
- Sim, o jovem que esteve consigo esta manhã. Tenho uma coisa para lhe oferecer. Diga-me onde posso encontrá-lo.
Caramba… com esta não contava. Encontrar-me ou fazer amizade com um bandido não estava nos meus planos desta aventura. Mas se ele me quisesse fazer algum mal… assaltar-me, bom, teve essa oportunidade e não o fez. Decidi arriscar mas com muito cuidado. Lembrei-me da localização que o Vieira me deu.
- Estou aqui junto à Liga Nacional Africana.
- Já sei, fica ao pé do Zé Pirão.
- No início da rua tem um buraco com um cabo eléctrico solto.
- Daqui mais ou menos a uma hora estou aí.
Dentro desse período de tempo começaria a escurecer. Não sei o que os vizinhos pensariam de mim. Um europeu acabado de chegar a fazer amizade com um bandido. Meto-me em cada alhada. E o nome dele… Malcolm X.
Lembrei-me dos vários CDs que trouxe, sob os mais variados assuntos que pesquisei na Internet e neles os gravei. Um deles tinha esta personagem. Conhecia-o não com suficiente profundidade. Olha… a luz chegou, óptimo. Liguei o computador e coloquei o CD na bandeja. Carreguei no botão à direita e o CD desapareceu como numa morgue. Procurei nos arquivos e lá estava. Teclei imprimir e preparei as folhas aguardando pelo angolano. Quando ele chegasse decerto me ligaria a anunciar a sua presença.
Dito e feito, já estava no local combinado.
Malcolm X trazia um embrulho que mostrava o formato de uma garrafa. Ele sentiu o meu olhar amedrontado e tranquilizou-me:
- Amigo branco, trago-te uma prenda, uma garrafa de uísque.
Agradeci-lhe e disse-lhe que não era necessário tal incómodo. Ao que ele replicou:
- Não é incómodo nenhum, não me custou nada… roubei-a.
A vida dá cada volta. Não há dúvida que estou mesmo metido numa grande alhada. – Meditei.
Devia ter vinte e poucos anos. Era um pouco forte, altura média, cabelo rapado. Vestia um blusão negro, onde se lia: BLACK POWER e MALCOLM X. Parecia-me bastante preocupado:
- Vamos para aqui… mais discretos. Tenho que me esconder… podemos sentar-nos atrás destes carros.
Atrás deles havia um pequeno degrau que se estendia até à entrada do prédio. E por norma surge sempre a pergunta que nós mais velhos fazemos aos jovens.
- Trabalhas?
Respondeu a rir, a troçar.
- Trabalho?! Onde é que isso existe?! Arranjas-me trabalho?!


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