sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

O PARAÍSO PERDIDO A OCIDENTE (22)


 
Um pelotão foi lançado numa operação. Comandado pelo alferes Santos interceptaram uma coluna de guerrilha que carregava abastecimentos. Não houve tiroteio porque conseguiram fugir, mas deixaram para traz uma jovem que capturaram e trouxeram para o aquartelamento. Era muito magra e alta deveria ter aí uns trinta anos. Apesar de mal vestida notava-se que era bonita. Com ela vinha um carregamento considerável de liamba também capturado. O capitão partiu para o Toto na companhia do troféu de guerra. Uma pobre jovem que seria entregue à Pide.

Com o capitão ausente alguém teve a ideia de experimentar fumar liamba. Não queria acreditar no que acontecia. Primeiro foram os oficiais e furriéis, com um a vigiar que não tinha fumado para que possíveis casos de reacções imprevisíveis fossem controlados. Depois deles foi a nossa vez com os furriéis a vigiarem-nos. Disseram-me que as sementes faziam mais efeito. Fiz um cigarro e fumei. Depois senti sono e deitei-me. Surgiu uma visão maravilhosa da Belita. Estávamos no paraíso. Rodeados de flores muito bonitas, ela estava num baloiço suspenso numa árvore. À nossa volta nuvens brancas transparentes. Enquanto empurrava o baloiço ela sorria maravilhosa. Sentia-me a pessoa mais feliz do mundo. Acho que dormi cerca de três horas, depois veio um apetite devorador. Uma vontade louca de comer. Tornei a fumar mais uma vez e veio a mesma visão. Os mesmos sintomas. Disse para mim que se droga é isto, nunca dependerei dela, e nunca suportarei ser dominado pelo irreal. Prefiro enfrentar a realidade e nunca mais fumei. Um ou outro companheiro a quem perguntei se sentiram alguma coisa disseram-me que não. Um furriel explicou-nos que os sintomas são imprevisíveis nas pessoas.

De vez em quando para mudar de ares formava-se uma coluna que ia de passeio até ao Ambriz. Como lá havia praia, durante dois ou três dias ali ficávamos. Aproveitei e fui lá duas ou três vezes. Havia um restaurante semi-improvisado de um casal português onde comíamos batatas fritas com bife.
Numa dessas excursões que não participei o alferes levou o pessoal até ao rio Loge, e apanharam muitos lagostins com iscas de pão.No aquartelamento os meus colegas disseram-me admirados que havia festa nos pelotões:
- Estão a comer marisco. Apanharam uma tonelada de lagostins.
Fiquei contente e a pensar que ia ter um bom petisco:
- Vamos lá pedir-lhes?
- Eles não nos dão. Dizem que se quiserem vão lá apanhá-los. Esta comida não é para aramistas.
- Sacanas de colegas, é o que são.

Entretanto chega uma mensagem a informar que havia uma grande actividade inimiga na nossa zona. O alferes Lopes comenta:
- O melhor é não arranjarmos problemas. Se não nos metermos com eles, eles não se metem com a gente. Se não atacarmos eles também não nos atacam. Estamos aqui para passar o tempo e regressarmos todos vivos.
Depois disto passei a utilizar um rádio de reserva a escutar noutras frequências o que se estaria a passar com outras companhias. De vez em quando escutava que foi accionada uma mina, e que havia alguns feridos. Significava isto que a situação não era agradável.

O alferes Santos saiu com o seu pelotão para uma área de infiltração previamente determinada. O seu radiotelegrafista comunicou-nos que havia intenso tiroteio. Ficámos atentos ao rádio à espera do pior.
Depois, quando chegaram, as informações que nos deram eram muito confusas. Tiveram recontros com o inimigo. Mas que na realidade era apenas um pobre velho que foi abatido. Um dos batedores do pelotão baralhou tudo, de tal maneira, que como era noite confundiram o velho com um grupo muito numeroso. As guerras têm destas situações. Alguma frustração apoderou-se de nós.

Algures ouvi o som de uma viola. Era muito agradável. Fez-me lembrar o Zeca Afonso. Dirigi-me na sua direcção intrigado de quem seria. Fiquei surpreendido, era o Tchipalanca, um dos integrantes do pelotão Angolano. Era natural do Huambo e professor na vida civil. Perguntei-lhe que música estava a tocar e a cantar. Disse-me que era uma balada da zona leste de Angola.
- Gostei muito de ouvir, toca mais por favor.
A melodia dava-me um grande contentamento. De vez em quando ia para junto dele e pedia-lhe para me tocar alguma música.

Uma mensagem acabada de chegar dizia que vinha para a nossa companhia no próximo MVL- movimento de viaturas ligeiras, com castigo, um soldado. Ele chegou e os seus registos diziam que passava a vida a ser punido. Já tinha acabado o seu tempo de comissão. De punição em punição nunca mais sairia da tropa. Era considerado um elemento perigoso. À mínima altercação ameaçava de morte quem quer que fosse. Tinha socado oficiais com tiros à mistura. Rapidamente o nosso ambiente alterou-se com algumas cenas de pancadaria na caserna. Poucos dias depois numa noite fomos surpreendidos com uma grande algazarra no telhado da caserna. Ele estava com uma granada descavilhada e ameaçava lançá-la. Por mais que se lhe falasse não dava ouvidos a ninguém. Alguém sugeriu que era melhor abatê-lo, mas surgiu o furriel do seu pelotão que enquanto falava meteu bala na câmara:
- Saia já daí é uma ordem!
A resposta foi:
- Meu furriel não se meta nisto, vou matá-los a todos!
 O furriel gritou:
- Vou aí em cima ter consigo e se você tiver coragem pode matar-me. Enquanto o furriel se dispunha a subir ele de repente saltou. O furriel aproximou-se e gritou mais una vez:
- Caralho dê-me a merda da granada!
Ele afastou-se e lançou a granada para o pequeno vale que circundava as nossas instalações sem causar quaisquer estragos. Chegou junto do furriel a chorar copiosamente, e enquanto pedia desculpas abraçou-se ao que foi correspondido pelo furriel. Pareciam pai e filho. Depois foi transferido para outra companhia. Nunca soubemos o que lhe aconteceu depois.


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