À
noite depois do jantar fui como habitualmente para o Café do Frederico. Lá
estava todo o grupo. Muito animados, comentavam uma pequena crónica do
suplemento literário Juvenil do Diário de Lisboa. Quitério era o alvo das atenções.
Pensei que estava outra vez metido em sarilhos, porque adorava polémica. Já me
preparava para o apoiar, e sempre que necessário, se tivesse argumentos, claro.
Mas não. Eram elogios devido a ele ser o autor da crónica que falava do abate
de uma árvore. Aqui ganhei-lhe uma grande admiração. Afinal não só dizia o que
bem sabia, como também escrevia. Para publicar trabalhos nesse suplemento o
rigor era enorme. Aproveitei e cumprimentei o Quitério de modo não habitual.
Fiz-lhe uma grande vénia com a cabeça muito inclinada. E todo o grupo em coro
me agradeceu:
-
Chegou o Zé Maluco!
-
Meus senhores acabem com isso. Acho que já é tempo de acabar com o andarmos
assim a maltratar o homem. – Lamentou o Quitério.
Ouviu-se
na plateia:
- Aplaudido, aplaudido por maioria silenciosa.
E
o Quitério:
-
Da discussão nasce a luz ou funde-se a lâmpada. Proponho que a partir de agora
o chamemos de fusível.
Foi
assim que o meu nome foi alterado para fusível. Perguntei ao Quitério o porquê
deste novo nome. Explicou-me que eu andava sempre em risco de queimar os
fusíveis e daí o nome. Fiquei-lhe com uma grande raiva e apeteceu-me bater-lhe.
Mas ele a rir levou-me à certa. Que fusível sempre era melhor que Zé Maluco.
Depois pensando bem, não me preocupei mais com isso. Achei até que era um bom
elogio, porque o Quitério elucidou-me que provinha de um grande filósofo da
antiguidade, um grego de nome Platão.
Quando
os outros intervinham eram interrompidos sistematicamente porque os argumentos do
Quitério eram arrasadores. Deixava-os prostrados no terreno das ideias tal era
a força de conhecimentos que possuía. A nossa admiração por ele aumentava a
cada dia porque já ninguém ousava fazer-lhe frente. Passou a ser o nosso líder
incontestado. Acho que se aproveitou dessa circunstância quando anunciou sem
meias medidas, como uma ordem:
-
Tive uma ideia. Vamos fazer teatro. Vamos começar com Ionesco. Já consegui
reunir alguns actores. Os ensaios vão começar dentro em pouco. É importante que
saibam que quem nunca esteve nos bastidores, nunca saberá o que é teatro, por
isso estudem muito bem as obras de Ionesco.
Aproveitei
para saber qual seria o meu papel.
-
Como és o fusível vais ficar com a responsabilidade da iluminação. Os ensaios
vão começar na próxima semana.
Seguindo
as instruções fui ver no Instituto Superior Técnico uma peça de teatro amador
que salvo erro tinha por título, As Guerras de Arlequim e o Mangerão, de
Bertolt Brecht. Tentei o impossível. Não consegui saber quase nada. Os meus
conhecimentos eram muito limitados. Mas insistia. Estava com os Sequestrados de
Altona de Sartre. Convencido de que quanto mais estudasse e quando chegasse a
hora da nossa representação teatral decerto teríamos êxito considerável.
Mas
o Quitério como todos os seres humanos não resistiu aos encantos do amor, da
São. Ela era muito encantadora, disso todos sabíamos. Nunca namorou com ninguém
e foi uma grande surpresa para todos quando isso aconteceu. Creio que não era
muito atraente porque a barriga parecia estar sempre grávida. Os seios ousavam envergonhar
o resto do seu corpo porque eram pequenos para um porte tão avantajado. Mas o
seu rosto era agradável como uma estátua grega a que alguém tinha eliminado o
resto do corpo. Conseguia manter qualquer diálogo com quem quer que fosse.
Surpreendia-me tal talento porque nunca a vi ler nenhum livro. No fundo parecia
quase Afrodite renascida nos Olivais-Sul. Houve festa na sua casa quando o Quitério
foi pedir a sua mão, para surpresa geral. Ela que tinha sido desprezada por
todos e quase já na despedida da juventude a caminhar para o templo perdido da
gerontologia e por isso mesmo deixava o seu pai muito preocupado, porque
ninguém gostava nem queria a sua filha.
De
repente o Quitério conseguiu com que a São fosse o alvo de todas as nossas atenções.
Passou a ser a nossa Deusa. Quando ela surgia no nosso seio, ele pegava-lhe nas
duas mãos e beijava-as com inusitada ternura. A partir daí deixou de conviver
connosco, só ocasionalmente. Ela, quando ele foi chamado para cumprir o serviço
militar apresentou-se com uma vestimenta de princesa medieval. Parecia um filme
sobre a Guinevere. O cabelo longo guardado nas costas. Um vestido transparente
que lhe chegava aos pés e deixava a descoberto o seu corpo que ela queria que
todos vissem que afinal era sensual. O decote apertado mostrava os seus seios
virgens, ávidos para as aventuras do amor. No fundo pretendia demonstrar-nos
que era bela e que a sua beleza seria sempre para o Quitério. Sempre à espera
dele. Que ele regressasse vivo da guerra do Ultramar.
O
Quitério sentenciou:
-
E depois de um regresso vertiginoso que encetámos à Idade Média a partir de...
A
São interrompeu e exclamou:
-
Meu amor não fales agora dessas coisas, o meu coração não suporta tal!
-
Sim é verdade, as mulheres são conservadoras por natureza. Não entendo porque é
que os governos não as colocam no poder. Acho que o mundo seria bem melhor se
elas nos governassem. Mas apesar de tudo, o nosso maior erro foi termos ficado
fora da guerra. Deveríamos ter participado na segunda guerra mundial, foi um
erro a nossa neutralidade. Orgulhosamente sós na destruição irremediável do
nosso dia-a-dia. Destruindo o nosso futuro. Quebrando os restos do espelho dos
nossos antepassados.
Entretanto,
mantinha correspondência regular com a Belita. Já fazíamos promessas de amor. A
nossa correspondência pelo correio, as cartas que enviávamos era muito regular.
Quando a imprensa noticiava que chovia muito e que o Tramagal estava a ser
afectado, ficava muito preocupado e escrevia logo uma carta. Perguntava como
estava a situação. Ela respondia que o Tramagal estava no mesmo sítio. Que o
comboio não circulava porque árvores tinham caído sobre a via, e que também
alguns desabamentos de terras pioravam mais a situação.
Fotos:
Da grinalda: comquemsera.com
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