Chegámos em Agosto de 2014. Vínhamos com medo,
receios e expectativas muito em baixo. O que nos diziam sobre Angola era
aterrador, com assaltos e crimes violentos a acontecer frequentemente. A poeira
era horrível, o lixo e as crateras no alcatrão invadiam todas as ruas, o
trânsito era diário, extenuante e interminável, a pobreza era visível em todo o
lado e o luxo de uma minoria chocava e convivia lado a lado com este cenário de
degradação social e humana. Tudo isto dava muito que pensar em casa.
Os dias passaram, a rotina instalou-se e
naturalmente “entranhámos” nesta vida tão própria e cheia de vicissitudes. Ao
princípio, custou muito o facto de não termos a família e amigos por perto e o
acesso a muitas das coisas que estávamos habituados. E se aliarmos a isto o
facto de não podermos andar na rua à vontade, a falta de organização e limpeza
da cidade, a insegurança e o trânsito sempre caótico, ao fim do dia pensávamos nos
miúdos e se tínhamos feito a opção correta. Não é fácil explicar a crianças
porque andam tantos pobres e miúdos na rua, quase sem roupa, sujos e a mendigar
por comida. Hoje percebem o porquê, não aceitam, mas sabem a importância de
terem coisas e de dar um pouco de nós e do que temos, a quem nada tem.
Confesso-vos que muito atenuou o facto de termos
vindo para uma boa casa num bom bairro, carro e ajudas para pagar algumas
despesas. Estas são condições que muitos expatriados e amigos meus não têm. Por
isso conheço outras realidades. Mas nem estes benefícios aliviaram o que se vê
ao nível de degradação da condição humana. Depois de um certo tempo
“habituamo-nos” e deixamos de ver tudo o que no princípio nos perturbava. E os
novos amigos que aqui encontrámos foram muito importantes nesta adaptação.
Amigos na mesma situação que nós e que foram o nosso suporte e nós o deles.
Aqui partilhámos os mesmos sentimentos, alegrias, angustias e preocupações. E
isso inevitavelmente une as pessoas.
Por outro lado, começámos a ligar-nos também às
nossas “gentes angolanas”, amigos e colegas. Vou de coração apertado, sabendo
que deixo pessoas de um valor enorme e que já moram no meu coração. As saudades
já apertam e vocês sabem quem são. Pessoas que ajudámos e que em retorno nos
deram a sua amizade incondicional. Através da minha página, conheci pessoas que
nunca pensei virem a ligar-se a mim como o fizeram, primeiro de forma virtual e
depois pessoalmente em Luanda. Deixo cá algumas e sei que em breve as vou
encontrar em PT. Falo também pelas minhas filhas que deixam amigas do coração e
que já arquitectam reencontros. Vejo o sofrimento delas. São amizades puras,
naturais, sem maldade ou interesse. Podia ser sempre assim, não?
E agora, o que dizer deste País? Só se conhece
Angola, vivendo cá, sentindo e vivendo o seu dia-a-dia. Impossível explicar
esta realidade em palavras. Sei que se pudesse ficava a viver aqui mais uns
anos pois desde que cheguei, sempre senti pertencer a este Sol e a esta
realidade. Aqui vive-se a vida intensamente, com vontade, com alegria e sem
presunção. Tal como devia ser. E é o que dizem, ou se ama ou se odeia Angola.
Não há meio termo! E por isso ajudamos quando podemos e criticamos o que está
mal porque nos preocupamos, como se sempre tivéssemos pertencido aqui, pois
queremos o bem deste País de forma sincera. Vou ter tantas saudades dos meus
filhos poderem andar à vontade, com roupa simples, pé descalço, sem stresses,
críticas ou necessidade de justificarem aparências. Ser e viver apenas.
Aqui ficamos doentes quando os nossos filhos
adoecem e quando vemos a nossa impotência e a dos médicos para os curarem. E
ainda mais doentes ficamos ao ver a mortalidade deste povo com uma simples
gripe. Revolta saber que têm de pagar por um frasco Parte superior do formulário
Parte inferior do formulário
Autora da página de Facebook Os 5 em Angola, que
relata as experiências de uma família portuguesa de cinco elementos que imigrou
para Angola.
Ya, sou eu, na minha ultima crónica em Angola.
Vai ser uma crónica muito real, muito sincera e muito directa. Não espero que
todos gostem da forma como a vou escrever, mas pelo menos, ficam a conhecer-me
um pouco melhor e a entender a forma como eu sou, vejo e levo a vida. Se
quiserem, podem vir comigo para Lisboa, na minha nova página:
Aqui ficamos doentes quando os nossos filhos
adoecem e quando vemos a nossa impotência e a dos médicos para os curarem. E
ainda mais doentes ficamos ao ver a mortalidade deste povo com uma simples
gripe. Revolta saber que têm de pagar por um frasco de sangue ou de soro
para se salvarem, não terem dinheiro para os medicamentos prescritos e que até
a água para lavarem os seus defuntos tem de ser a família a fornecer.
Isto
se conseguirem enterrar os seus mortos pois o preço do caixão e do funeral é elevadíssimo.
E a hora do parto parece um jogo de roleta russa, sem sabermos se as mães ou os
bebés saem com vida dessa experiência.
Revoltam-me estas situações pois nem as
condições mínimas este povo tem direito. Já comprei medicamentos
para ajudar as “minhas pessoas” angolanas, dei o meu almoço a meninos de rua,
paguei aulas de faculdade, e ajudei noutras tantas situações. Sei que foi pouco
e podia ter feito muito mais, mas tenho de me ir embora. Fazia de novo, fazia
mais, mas não chega, nunca é suficiente a ajuda. E revolta-me tudo isto. Não
merecem, estas pessoas e este “mundo” simplesmente não merecem.
Em todo o lado há pessoas boas e más e aqui não
é excepção, mas em regra, os angolanos são pessoas puras, sinceras e muito
prestáveis, que nos aceitam de coração aberto sem altivez ou ideias
pré-concebidas. Vê-se que gostam de nós naturalmente e se precisarmos, ficam
contentes em poder ajudar. Ainda me lembro do espanto da minha empregada quando
viu água a sair da torneira da cozinha, do medo dela ao aspirar e do que tive
de lhe ensinar na limpeza da casa. E do quanto ela gostava de comer os meus
bolos, em especial os de chocolate, as nossas trocas de receitas e de
ensinar-me a fazer funge. Via amigas minhas protestarem porque as suas
empregadas não sabiam limpar. Mas como podiam saber, se elas próprias não
viviam em casas, mas sim em barracas? Como podiam saber limpar uma cozinha ou
uma casa de banho, se nunca viram algo do género? Complicado, não?
Se quisermos saber o valor da vida humana por
aqui, basta entrar num musseque, num hospital publico ou andar nas estradas. Nos
hospitais públicos pode-se esperar dias no chão por um médico e morrer de uma
infecção provocada por falta de condições de higiene. Nos musseques, vive-se
sem luz ou saneamento. As únicas luzes que se vêm são as dos carros que passam
pela via principal. Os bebés brincam à beira da estrada sem protecção, os
doentes mentais deambulam pelas ruas quase nus com a sua casa em sacos enquanto
os meninos de rua continuam a pedir dinheiro para comprarem um saquinho pequeno
de whiskey. Recuso-me a dar. Compro pão para mim e para eles e
apesar de no princípio ficarem chateados, sabem que no dia seguinte estou lá e
há novamente um pedaço de comida que podem pôr no estômago. Mas mesmo isto que
faço já não é simples pois o custo dos alimentos aumentou de forma quase
insustentável. Até para ajudar está difícil. Fazendo as contas, além da minha
família, “alimento” mais 4 ou 5 pessoas pois não conseguimos ficar
indiferentes. Abdicamos de nós e das nossas coisas para, de
certa forma, tentarmos aliviar a injustiça que sentimos no nosso coração,
sabendo o que temos e vendo outros, mesmo aqui ao lado, sem um tecto, cama ou
comida para alimentar a sua família.
Por exemplo, na minha casa, as garrafas
vazias não vão para o lixo, são para ajudar famílias a encherem com água, numa
qualquer fonte e levar para casa, por vezes em trajectos de muitos quilómetros.
Os sapatos e roupas dos meus filhos que não servem têm destino certo. O que vai
acontecer às minhas pessoas e a outros tantos angolanos quando os expatriados
forem embora? A crise afecta-nos a nós, mas de forma pior a eles, que por cá
ficam. De certa forma, sempre tinham emprego, ajudas extra e acesso a bens que
sozinhos nunca podiam adquirir. Como vão ficar? Alguém pensa nisto?
As ratazanas e as baratas quase dominam
Luanda e em conjunto com as melgas são um flagelo pois basta uma picada ou
mordedura certa e apanhamos a maior parte das doenças mortíferas que ainda
matam às centenas. O lixo já faz parte integrante da paisagem de certas ruas
que mesmo com a sua recolha, deixam ficar um rasto de mau cheiro e restos, onde
os miúdos insistem em brincar, descalços e sem ninguém a tomar conta. É um
milagre as crianças aqui chegarem aos três anos de idade. E se os angolanos têm
muitos filhos são para poderem ter acesso aos subsídios dados pelo Estado e que
muitas vezes são o seu único meio de subsistência.
A agricultura já devia estar plenamente
desenvolvida, não fosse a fixação pelo negócio do petróleo. A terra é fértil e
pelo que soube, muitas culturas oferecem colheitas duas vezes por ano. No
entanto, ainda falta o principal e essencial para poder produzir e inclusive
exportar. Só agora se soube da primeira exportação de bananas para Portugal. As
infraestruturas não existem e os bens alimentares demoram horas a chegar à
cidade. A crise teve um efeito positivo, começou a despertar o interesse na
agricultura e já há fazendas bem organizadas a produzir e a enviar os seus
produtos em condições para todo o lado.
As estradas de Luanda estão cada vez mais
temerárias e os assaltos mais frequentes. Já se assaltam casas com justificação
“in loco”, dizendo que é para alimentar a família. Sinceramente, com os preços
aqui praticados, e a constante desvalorização do kwanza, não me admira esta
onda de violência. Nunca fomos assaltados, nunca incitámos a que isso
acontecesse ou talvez não estivéssemos destinados a isso. Já vimos muitos
acidentes de mota, e entre eles, alguns muito graves, onde se podia ver o corpo
já sem vida e os miolos da vitima espalhados pela estrada. Ficámos chocados e
ainda mais tristes com o facto da nossa filha mais nova ter visto, pois
provocou-lhe pesadelos durante dias. Aprendeu o valor da vida humana da pior
forma possível.
Vou ter saudades das quitandeiras, à porta do
ESCOM, a vender a sua fruta, tamanho XXL, do seu cheiro e sabor único. Não vou
descrever, não consigo, pois é simplesmente maravilhosa. Nunca me esquecerei da
imagem do nascer do sol às 05h30, da sensação do quente na pele logo pela
manhã, da alegria de poder usar sandálias e roupa fresca todo o ano, do facto
de não saber o que é uma constipação dos meus filhos, da sensação de ver em
alguns dias (poucos) um céu azul, saudades dos almoços de Cozido à Portuguesa e
da Francesinha no São João no Maculusso, saudades de dançar na varanda com as
minhas filhas graças à musica alta do Moments até de madrugada, saudades do meu
cabeleireiro Gonçalo e das suas conversas eruditas sobre tudo. Ali podia
descontrair e rir sem “maka”. Acho que nunca encontrei ninguém como ele e levo
daqui a sua amizade sincera e o carinho dele pelos meus filhos.
Vou ter saudades do convívio escolar, das
reuniões de inicio do ano lectivo, das festas, barraquinhas e brincadeiras dos
miúdos, dos balões de água, das sardinhas assadas e do caldo verde no Arraial
do Colégio Português. Saudades do Dia de África onde as mulheres angolanas
exibem orgulhosamente os seus trajes típicos, dos almoços de trabalho com vista
para a Marginal de Luanda e das danças de kizomba no Jango Veleiro. Saudades da
confusão da estrada para Viana onde além do trânsito caótico, se pode ver de
tudo, entre carros novos, outros prontos para a sucata, carrinhas de caixa
aberta com grupos de musica, de igreja ou do futebol a cantar, das poças de
água enormes e perigosas que uma noite de chuva pode deixar, da confusão
provocada pelo comércio à beira da estrada. Ir às compras ao Mercado do 30 com
o W. e os meus filhos e afundar-me em lama de 30 centímetros com o Vicente ao
colo a rir, mas contente por seremos os únicos “pulas” ali, ver o comboio
passar cheio de grafittis e às escuras, a quantidade de pessoas a passar nas
pontes aéreas e a confusão gerada pelo comércio e pelos táxis. Saudades de ir
ás compras ao Kinda e devido aos móveis, levar os meus filhos dentro do carro
das formas mais incríveis que se possa pensar. Saudades de experimentar
restaurantes e sítios novos, lembrar a primeira vez que comi funge no meu local
de trabalho e durante a refeição, dar uma notícia em que alguns crocodilos
tinham comido umas lavadeiras do rio, constatando que ninguém tinha ficado
chocado, a não ser eu!
Vou lembrar-me de quando estive quatro horas
parada no trânsito com os meus filhos por causa da visita de um alto dignatário
estrangeiro e da importância de se ter um tablet no carro para os entreter. E
que dizer da primeira visita do Vicente ao hospital e do pânico que senti por
não saber como iriam tratar o meu filho, quando no final, os meus receios eram
infundados?
Vou ter saudades de ver a alegria das minhas
filhas quando as ia buscar às festas de anos e de vê-las naturalmente a
conviver com os amigos angolanos e suas famílias, como se ali pertencêssemos
desde sempre. E os angolanos sabem dar festas de anos fantásticas, ok? Nunca
tinha visto nada igual! Vou ter saudades das diferentes vistas de Luanda e de
parar no Eixo Viário para contemplar o pôr do sol num dia de Verão. Saudades
das competições de natação no Clube Náutico e na Escola Internacional de
Talatona ao Sábado de manhã e depois ir comer uma pizza quadrada e gigante à
Galeria dos Pães. Vou lembrar-me daquela vez que regressámos de viagem num dia
à noite e no outro bem cedo, fomos “correr” a meia maratona de Luanda com
colegas de trabalho e amigos? O ambiente foi fantástico e inesquecível, com
angolanos e estrangeiros a partilhar a Marginal de Luanda. Vou ter saudades das
viagens de barco a caminho do Mussulo e das idas a Cabo Ledo com amigos. A paz
e liberdade que se sente, quando se chega a estes locais é mágica. Por momentos
“esquecemos” os problemas e podemos por momentos, fortalecer a mente e respirar
um pouco, ganhando fôlego para mais uma semana de trabalho, numa das cidades
mais duras de se viver. Adorámos a visita ao Parque Kissama na companhia de
amigos espectaculares. E não esquecerei a alegria dos meus filhos ao ver chegar
o pai das suas reuniões em Lisboa, com a mala cheia de pedidos especiais para
eles e de encomendas para os nossos amigos.
Aqui há pessoas que se levantam às 4h30
da madrugada para chegar ao trabalho às 08h00 e saem às 17h30 para tentar
chegar a casa para jantar, porque se houver chuva, de certeza que há trânsito
garantido e que só o fazem depois das 22h00. No dia seguinte, a mesma rotina. É
fácil criticar quando estamos longe, certo? E quando falta a luz e a água? Se
não se tiver um gerador de apoio, arriscamos a estar dias na escuridão. E nem
pensar em fazer compras semanais ou mensais, pois com as constantes faltas de
luz, não há alimento no frigorífico e arca que resistam. Isto é a realidade da
maioria dos meus colegas expatriados. Pela parte que me toca, apenas me posso
queixar de faltas de luz constantes, mas logo repostas ao fim de minutos. Sim,
só tenho a agradecer, mas não invalida sentir empatia pelos outros e ajudar no
que é possível.
Vou com a mágoa de nunca ter conseguido visitar
Benguela, Lobito e outros locais de extrema beleza em Angola. Talvez numa
próxima visita o consiga fazer, sem compromissos escolares ou outros
impedimentos maiores. Tenho em mim esse compromisso!
E o que dizer do Colégio dos meus filhos?
Lembro-me da primeira vez que o visitei. Achei-o pequeno, mas muito típico e
com pormenores encantadores. Adorei o ambiente, a amabilidade dos educadores,
dos auxiliares e a protecção dos vigilantes para com as crianças. Os
professores são fantásticos, muito prestáveis e atenciosos com os alunos,
parecendo exercer mais a figura de irmãos mais velhos que professores. E a sua
dedicação e carinho via-se em reuniões, festas escolares ou numa exposição
emotiva acerca da Segunda Guerra Mundial apresentada pelo carismático professor
de História. Também vi essa dedicação na adaptação do Vicente à turma, à
professora e às auxiliares. O grupo foi fantástico, muito unido e as
actividades super giras reflectiram-se no seu desenvolvimento. Tenho o descanso
de saber, como mãe, que o meu bebé teve a educação, atenção, o colo e carinho
que mereceu. Todos os professores são exemplos para as crianças e jovens que
ali estudam. Já tenho saudades vossas, sabiam? Vou ter boas lembranças dos
recreios, da rua do Colégio com as suas árvores centenárias, do cheiro das flores,
das visitas surpresa dos macacos na escola, das diversas actividades promovidas
pelo colégio e das pessoas que aqui deixo. A maior parte dos professores são
portugueses, residentes há anos e que também já “pertencem” a Angola e que
apesar da crise, não querem regressar, pois gostam disto. Fundámos uma amizade
com base nas nossas raízes e cultivada pelas inúmeras actividades e vivências
em conjunto. Impossível esquecer o ano passado em que fomos campeões de natação
à frente a uma mega escola de Talatona. A alegria e a cumplicidade de todos
levaram-me às lágrimas ao ver os alunos a comemorar com os professores. Um
parabéns especial aos incansáveis professores de natação.
Vou ter saudades da babá do meu Vicente, apesar
de lhe fazer todas as vontades. Dizia sempre que não conseguia pô-lo de castigo
pois custava-lhe muito e que por isso, deixava-o fazer tudo o que quisesse pois
adorava o seu sorriso e boa disposição. Adoravam-se um ao outro. As canções que
lhe cantava enquanto o “banhava”, as horas passadas a entretê-lo e as
expressões típicas que lhe passou, marcou a vida do meu pequenino de uma forma
muito particular e por isso a levamos connosco na memória e no coração. Foi
connosco que a nossa babá, com quase 30 anos e dois filhos pequenos, comeu pela
primeira vez uma fatia de pizza. E adorou. Percebem a importância de darmos
valor ao que temos?
Do pouco tempo que aqui estivemos, sei o quanto
foi importante para nós e para os nossos filhos a experiência de Angola. O ver
e viver outra realidade fez-nos relativizar muita coisa, ainda mais num país
com um elevado nível de pobreza. Damos valor a um dia sem doenças e com tudo a
correr bem. Deliramos com um molho de agriões desaparecido há meses, com pão
acabado de sair do forno na Casa dos Frescos, deliciamo-nos com uma fatia do
melhor bolo de chocolate com gelado após um dia de praia, um gin ao fim de
tarde entre amigos, o desfrutar de um dia de piscina ou as brincadeiras da
minha filha uma tarde inteira a brincar com a melhor amiga. Tudo coisas
simples, mas que aqui, têm uma dimensão enorme.
Bem sei que a oferta de sítios e o que fazer
ainda é escassa, mas os existentes são bons ou fantásticos. Não há nada melhor
do que passear na Marginal da Ilha de Luanda com o pôr do sol no horizonte. A
luz criada é do mais lindo que já vi na vida e como fundo, podemos ver os
miúdos a brincar na areia, a confusão dos vendedores de peixe e a simplicidade
da vida ali, fazem do local um sitio especial para mim. Nada como um belo dia
de sol e praia, almoçar na ilha, ver ao longe os barcos contentores e os barcos
pesqueiros lado a lado, os miúdos a brincar na água e os vendedores de arte a
venderem as suas peças. Tudo isto são calmantes naturais para mim e para
qualquer um que aprecie a envolvente de Luanda.
Vou sentir falta de estar no Cais de 4 ao cair
da noite e ver no horizonte a Marginal de Luanda com os seus prédios novos e
luzes brilhantes, o prazer que sentia ao caminhar e fazer exercício na marginal
com amigos. Aprendi que um local não é especial por si. São as pessoas que nos
acompanham nessa caminhada e que estão presentes nesse momento, connosco, que o
tornam especial.
E os candongueiros e as motos? Obrigada pela
experiência que me deram. Daqui para a frente vou estar mais atenta a motos,
mesmo quando andar no passeio. E quando estiver a conduzir, hei-de lembrar-me
sempre de olhar atentamente para todos os lados da estrada pois apesar de
existirem cruzamentos e regras de trânsito, temos sempre de estar atentos às
motas que vêm de frente na nossa faixa, às ultrapassagens feitas em todos os
sentidos, à circulação de carros em contra-mão, a outros veículos a transitar
sem luzes ou stops, dia ou noite, aos peões que atravessam em todo o lado e aos
sinais vermelhos que nada significam aqui. Tudo isto, nenhuma escola de condução
ensina e permitiu que, seja a conduzir ou a andar, tenha desenvolvido uma
atenção extra para tudo o que se passa à minha volta. Quem conduzir aqui em
Luanda de certeza que conduz em todo o lado!
No meu local de trabalho deixo conhecidos e
amigos verdadeiros, portugueses e angolanos que, sem me conhecerem bem,
apoiaram-me nos piores dias e estiveram comigo nos bons momentos, sem pedirem
nada em troca. Quanto é que isto vale? Para mim, muito!! A promessa de um
reencontro em Lisboa está feita e selada entre nós pois criámos um vínculo que
tem de ser continuado e vivido também fora de Angola. Quem já emigrou, sabe que
nos podemos adaptar ou não ao País que escolhemos. Mas a forma como nos
adaptamos, só depende de nós. E muitas vezes, o facto de estarmos longe de tudo
e de todos, leva-nos a escolher portos de abrigo e amigos de forma a
suportarmos as saudades de casa e das nossas pessoas. E foi isso que aconteceu
aqui, neste lugar. Chegámos, aos poucos fomos observando as suas regras e
formas de funcionamento, entrosámos nele com vontade, persistência e sem
reservas e conseguimos adaptar-nos. Somos assim! Angola não é a casa perfeita,
penso que nenhuma é na sua totalidade. Mas tem pormenores que a tornam única e
inesquecível para quem tem a mente e o coração aberto a novas realidades e
formas de viver.
Avaliando estes últimos dois anos e no
meu entendimento, poucos conseguiriam viver aqui. Há muitas coisas más e
impossíveis de esquecer, coisas que vemos todos os dias que nos revoltam o
estômago de uma forma brutal e que nem a beleza de alguns sítios, por vezes
alivia. Ver a pobreza desta forma e exposição diária, as injustiças, a
incapacidade de ajudar, e ao mesmo tempo, lidar com o facto de não se ter mesmo
certas coisas, básicas e naturais para nós, transforma-nos, faz-nos crescer e
aceitar as coisas tal como elas são. E o que fazemos? Aprendemos a lidar com
isso, com discernimento e aceitação, sabendo que há quem não tenha mesmo nada.
A primeira vez custa, as seguintes nem tanto, mas depois habituamo-nos a não ter
e a dar valor a outras coisas mais importantes, como ter saúde, família,
amigos, estudos, pão na mesa e um sitio onde dormir. Há muitos que não têm
mesmo nada e ainda sorriem...
Angola ensinou-nos muito e só temos a agradecer
por tudo o que fez por nós e ao quanto nos permitiu crescer como pessoas!
Vemo-nos em Lisboa ya?
Sem comentários:
Enviar um comentário