segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

A EMBAIXADA DA BANCARROTA


Perseguido pelo calor, teimava na subida da rua da embaixada portuguesa em Luanda. O suor escorria-me pelo corpo dando-me a sensação de que me liquefazia. Vi uma esplanada bem sombreada, por ela entrei e me sentei para me refrescar com um refrigerante Sumol laranja. Aliviado, respirava fundo como se acabasse de regressar ao meu paraíso interior. Foi então que vi bem à minha frente um amigo angolano que já não via há muitos anos. Experimentámos o que ainda restava das nossas forças num caloroso aperto de mãos. Ele perguntou-me o que fazia por tais bandas e logo lhe narrei a minha desventura.
Há muitos anos que não navegava para a Embaixada Portuguesa em Luanda, porque só de pensar em lá ir me fazia adoecer, é que as coisas por ali são tão horripilantes que deixei caducar o bilhete de identidade e o passaporte. E como necessitava de renovar o bilhete de identidade para obtenção de um certificado de residência, lá fui na terrífica aventura, como se fosse para um campo de concentração nazi. Até lá eram cerca de três quilómetros que percorri a pé, de carro nem vale a pena pensar, o trânsito está sempre engarrafado, mas mesmo assim o número de veículos aumenta todos os dias sem a existência de locais para estacionamento. Enquanto caminhava via como a rua se tinha alterado, melhor dito, adulterado, nos vários anos que por ela não circulava. Vi chineses a serrarem ferros, o barulho constante de partir paredes de quem acabou de alugar ou comprar a casa ou o estabelecimento comercial. Cada um que se acaba de instalar parte o que o anterior inquilino deixou e assim sucessivamente. Partir paredes, significa fazer obras, dar nas vistas de que se têm dinheiro, de que se é rico. Os passeios das ruas que os chineses repararam tinham lombas, altos e baixos, o olhar tinha que ser feito para o solo porque senão uma queda era inevitável. Nalguns locais sobressaíam fissuras que revelavam o amadorismo do trabalho. Geradores instalados nos passeios, taipais de obras paradas, alguns trechos ocupados para ganhar mais espaço, um tubo de esgoto que atravessava o passeio, um cano de água rebentado que já formava um pequeno poço e que se notava muito bem que já há longo tempo vivia. Noutros pontos do percurso o passeio já não existia porque mais um edifício se não erguia. O taipal estava canibalizado, também abandonado. Regra geral não existia passeio, o que nos obrigava a circular pela rua no constante receio de atropelamento. Senti-me como Martin Sheen no Apocalyse Now. Cheguei ao objectivo cerca das oito horas. O mar de gente era impressionante, lembrava-me imagens de um campo de refugiados. Senti-me mal disposto e lembrei-me dos horríveis momentos de quem foge da guerra, e comparei se isto é a embaixada de Portugal em Luanda ou a embaixada americana durante a evacuação da guerra do Vietname? Tinha combinado na véspera com um português conhecido de uma empresa de construção civil que me guardasse o lugar, para apanhar a célebre ficha numerada. Ele estava com mais dois portugueses, gritou-me, aproximei-me e encostei-me a eles. Alguns angolanos não gostaram e apontaram-me: «Como é isso, mal agora chega e já está nos primeiros lugares da bicha?!. Assim não dá, assim não pode!» Os outros portugueses disseram-lhes que não, que o meu lugar estava marcado, o que corroborei, claro, mas eles não acreditaram e ficaram naquela de que os portugueses estão sempre a gozar com os mwangolés. Estávamos todos concentrados numa bicha para os mais diversos assuntos, o que revela a mais profunda desorganização à portuguesa. Pelo menos que separassem as bichas em: uma bicha para registo civil, outra para bilhete de identidade, outra para passaporte, outra para vistos, etc. Mas não, quando a cabeça não funciona. Dois mil anos depois ainda estamos em plena Idade Média portuguesa?
No rés-do-chão estavam dois jovens polícias angolanos da protecção às embaixadas. Entrei e disse-lhes, conforme indicações dos outros portugueses: «Vou tratar do bilhete de identidade.» Não me colocaram qualquer objecção. Subi até ao segundo andar e aguardei durante duas horas que me chamassem. Apreensivo, notei que na embaixada do meu país os idosos não têm direitos. Horrorizado, regressei quase dois meses depois ao inferno. Consegui mais uma vez atingir o objectivo, cumprir a missão. Cheguei por volta das dez horas. Deparo-me novamente com o espectáculo confrangedor de muita, muita gente, era como se tentassem abandonar o campo de refugiados de Darfur. Desta vez não era necessário estar na bicha, bastava chegar e o bilhete de identidade levantar. Assim parecia. Logo à entrada, depois de muitos com licenças pelo amontoado de angolanos que aguardavam a sua sorte, informei mais uma vez os jovens polícias que ia levantar o BI, entrei, avancei e oiço um deles com voz brutal: «É PÁ, PÁRA, ONDE É QUE VAIS?!» Parei estupefacto, mas não surpreendido, e respondi que ia tratar do BI. Com ar marcial interroga-me a gritar: «NÃO SABES QUE TENS DE PARAR?!» De repente compreendi: era encenação para me meterem medo, e para mostrar aos mwangolés presentes que nós quando queremos enxovalhamos os portugueses. «MOSTRA O DOCUMENTO!» Mostrei-lhes um documento qualquer e mandaram-se subir, mas sem antes me advertirem: «E NUNCA MAIS FAÇAS ISSO!» Como a coisa já era demais, ripostei-lhes: «TENHO SESSENTA E DOIS ANOS. NÃO LHES ADMITO QUE ME FALEM ASSIM, SENÃO JÁ SABEM COMO É!» E virei-lhes as costas, subi as escadas, parei confuso no primeiro andar e perguntei a uma funcionária se o BI era ali. Ela presenteou-me com um olhar gélido e apontou para cima. Já no segundo andar, falo a outra funcionária que vinha levantar o BI. Ela logo me respondeu para aguardar pela sua colega que não tardaria a chegar. Passou-se uma hora de espera e nada. Voltei a interrogá-la, e ela dá-me a mesma resposta. As doze horas aproximam-se, então começo por concluir que ela está no gozo comigo.
Um português preenche um formulário, e onde deveria escrever 890, escreveu 800 e 90. E o outro português repreende-o: «Já estás angolanizado?!.»
A funcionária deve ter para aí vinte e cinco anos, acabadinha de chegar porque se nota muito bem pela pele que parece leite. Sondo-a com o olhar e ela retribui-me com desprezo. O tempo vai-se gastando, as treze horas chegaram e a tal colega dela não passa de uma torpe mentira. Que gozo lhe dará, a não ser o da maldade, martirizar durante três horas um sexagenário que vem apenas levantar o seu BI? Já com os serviços da embaixada encerrados entram em acção os serviços da corrupção. Algumas pessoas amigas entram e ela atende-as e eu continuo a aguardar, a ver até onde ela ia chegar. Entra outra senhora com cerca de vinte passaportes e é atendida por outra funcionária dos passaportes. Afinal há corrupção, sim senhor. Depois de já não existir mais ninguém para atender, chamou-me, mandou-me sentar, e prepara-se para a entrega do BI, mas sem antes me estender o martírio: «Mostre-me o recibo!» «Mas, pelo email que me enviaram isso não é necessário, respondi-lhe.» E ela ameaçadora: «Nós não entregamos BI a ninguém sem o recibo!». Pensei: «Porra! Esta gaja é louca, foi educada pelos nazis, é terrível, monstruosa, vai-me fazer voltar amanhã, puta que a pariu.» Então, mostrei-lhe a cópia do email que recebi: «O seu Cartão de Cidadão e a Carta dos Códigos já chegaram. Deverá levantar pessoalmente para validar as suas impressões digitais. Horário de atendimento é de Segunda á Sexta das 8h ás 12:30. Se já tem Bilhete de Identidade Português, deverá trazer consigo para ser inutilizado. A presença dos menores de idade também é indispensável, e deverão estar acompanhados por um familiar adulto, desde que esteja devidamente identificado com um documento que tenha fotografia.» Ela informou que o email não tinha nenhuma validade, e que ia verificar no computador se eu tinha pago ou não. Depois de confirmar o pagamento entregou-me o BI, e lá fui à minha vida cogitando que isso de ser cidadão português é a mesma coisa que ser cidadão da selva.
Já no regresso, quase no fim do caminho, assusto-me quando um segurança - são cinco - fazem recolha das receitas de uma, são apenas duas e não se permite concorrência, operadora de telefonia móvel, me aponta a arma e manda-me parar, e se não obedecer, dispara-me a matar sem hesitação. Depois os fiscais do GPL – Ingombota, com o seu novo uniforme preto, para meter medo?, a prepararem-se para espoliar mulheres indefesas que não têm direito a nada, excepto a escravidão. Pouco depois observo dois portugueses a efectuarem manutenção numa caixa de comunicações a beberem cerveja.
Como se torna cada vez mais difícil a fuga do inferno, que existe sim senhor, continuamente, e o paraíso prometido afasta-se à velocidade da luz, inalcançável.
Uma embaixada que obriga as pessoas a perder noites para tratarem de um vulgar documento, como um passaporte ou um bilhete de identidade, em circunstâncias típicas das célebres bichas leninistas de 1975 e alguns anos seguintes, mais até parecendo fuga à guerra do Vietname. Com cenas incríveis como se de mais um campo de refugiados se tratasse, de autêntico horror, só revelam o colapso de um país que nem os seus cidadãos respeita, muito pelo contrário, despreza-os. Se faz isto aos seus nacionais, que fará aos outros que o não são? Isto aconteceu em Angola, na Embaixada Portuguesa, ou melhor, na Embaixada do Pavor Português. Têm que trabalhar noite e dia até atenderem todas as pessoas. Manter o sistema da bicha para conseguir por milagre uma ficha para incrementar a gasosa da corrupção, só pode ser, existirá outra explicação? Creio que não. Isso faz-me lembrar que Portugal é o castelo medieval da Europa.
A lua não se movia, e por isso nada acontecia. Os políticos com as suas políticas oprimem as margens das nossas vidas, e tudo o que é mostrado, tão desencontrado. Onde se finge que existe democracia, o nosso destino decide-se com um agrafador que agrafa os nossos documentos e que se acumulam nas secretárias de funcionais nazis, que nos enviam para os comboios sem destino.
A voz de um português cansado da democracia ecoa-me: «Ontem disseram-me para vir hoje para me dizerem que o meu passaporte ainda não está pronto: «Espero que o PSD, agora que ganhou as eleições, mude isto, assim como está, é impossível!»
Agora compreendo porque é que Portugal se exporta outra vez para além das suas ocidentais praias lusitanas, pelos ares agora muito navegados, está na bancarrota.
Imagem: População escala muro da embaixadanorte-americana em Saigon, hoje chamada ...
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