terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

SONHO DE UMA NOITE TROPICAL (10)


- Não devemos admirar-nos destas coisas porque o ser humano nasce para ser ditador. – Apoiou o Poeta.
- Uma boa e bela coisa que devemos seguir são o não ligar ao que os governantes dizem. Tudo não passa de mentiras. – Disse o Vodka.
- Todos sabemos disso. Mas como sair desta grande anedota? – Perguntou o Filósofo.
- Mudar as pessoas. São sempre as mesmas que falam. Trinta anos de um pesadelo de palavras. Sempre com o mesmo verbo. – Disse agastado o Poeta.
- O nosso máximo quando raramente fala utiliza sempre o mesmo discurso. Fala em projectos que nunca se concretizam. Conversas em família para manutenção política. Para lembrar que existe. Não é como o Rei Sol da França. É como um rei do eclipse total. – Disse o Filósofo.
O Almirante pega num Angola combatente. Costuma dizer que é o melhor do mundo. Acende-o e começa a fumar. Elucida o auditório:
- Quem domina o mundo são as empresas petrolíferas, e como têm imensas fortunas compram tudo. No fim acabamos por sermos empregados de uma única empresa. Melhor ainda: escravos e esfomeados desses donos do mundo. Sempre foi assim e assim será. As revoluções que surgiram, e vão surgir mais, acabam por lhes dar mais força. No princípio fingem que aceitam as novas condições, depois acomodam-se e rapidamente fazem lances como num leilão. Voltam a dominar. Foi assim na Revolução Francesa. Como no Pregador da Bíblia: de modos que nada há de novo debaixo deste petróleo. Nascemos para sermos escravos de um ditador, de um rei ou de uma democracia. Nesta somos livres de exprimir a nossa opinião. Por incrível que pareça somos escravos da liberdade. Somos escravos daqueles em quem votámos. Como o eleito não cumpre o que prometeu ficamos a aguardar por novas eleições. Elas chegam, tornamos a votar e as coisas não se resolvem. Pelo contrário complicam-se ainda mais. É por isso que as pessoas estão frustradas com a democracia. Estão cansadas e anseiam por mudanças. Estão cheias de tédio, doentes. O nome correcto seria tédiodemocracia.
O Almirante faz uma pausa. Sente a garganta seca. Pega no copo e bebe. A voz está um pouco rouca. Prossegue:
- Não matar, não roubar, não cometer adultério. Eis a suprema verdade. Depois destes males cometidos, o ser humano ousa pedir perdão. Como o obtêm, volta a pecar. Novamente pede perdão. Como nas guerras em que se matam milhares, milhões de pessoas. Os vencidos são culpados e os vencedores proclamados inocentes. Mas os vencedores também mataram e contudo não são julgados.
O Presidente sente os erros que se cometem. E recorda:
- O processo de produção, segundo nós o concebemos, deve ser feito em proveito de todo o Povo. Os camponeses devem deter nas suas mãos a terra que cultivam. E do mesmo modo que ninguém tem direito nem pode vender o ar que respira, também, na nossa Angola popular, a terra deve estar ao dispor daquele que a utiliza. A terra não pode mais ser a propriedade de alguns homens para que outros a façam produzir em seu proveito. Assim, tudo o que existe debaixo da terra ou sob o mar ou o ar, tudo o que é natureza, pertence ao Povo. Entendem que devem destruir os bens do Povo. Esses são ainda os que estão impregnados duma mentalidade de escravo. Agostinho Neto. 23 De Maio de 1976. Discurso no encerramento do 1º curso de activistas do MPLA.
Alguns clientes chegam acompanhados por jovens mulheres da noite. Em troca dos serviços sexuais pagam-se com comes e bebes. Ainda conseguem levar algum dinheiro para ajudar à sobrevivência da casa. Enquanto observa a devassidão o Almirante prossegue:
- Por exemplo, a África nunca conseguiu sair da escravidão, e duvido que o consiga. Os seus dirigentes são impostos pelas multinacionais. Como necessitam de dinheiro, são vulneráveis a qualquer coisa, tornam-se puros vassalos. Vejam o que se passa no Golfo da Guiné. Chego a acreditar que têm ordens para exterminarem os seus povos. Aliás os governantes nem sequer confiam nos governados. Quando necessitam de executar um projecto, chamam as empresas estrangeiras, as suas bem-fadadas. E pagam-lhes bem, a pretexto de que não têm quadros. Estes nunca são bem-vindos, porque são considerados perigosos, subversivos para o poder. Edificámos a nossa independência sob o pretexto de que fomos roubados. Defendendo isso, hoje roubamos tudo e todos. Daí o nosso hábito de ainda continuarmos a roubar. Roubamos o ar que respiramos e roubamos qualquer rua para construirmos qualquer coisa neste canteiro de obras sem livros.
- África é o berço da humanidade! – Exclamou o Filósofo.
- É por isso que estagnou. – Retorquiu o Almirante.
O seu Angola combatente chegou ao fim. Atira-o para o chão e diz peremptório:
¬- Temos que ficar entendidos de uma vez para sempre. As democracias desprezam os outros povos, mas os seus não, e claro que quem se lixa são os esfomeados. Na verdade não se executam sanções contra governos, mas contra os desgraçados, a população, à espera que estes se revoltem. A realidade diz-nos que quando isto acontece, as ditaduras se unem, procuram auxílio mútuo. Isto significa que as sanções não funcionam. A democracia ainda está muito longe da perfeição.
O Filósofo dá uma achega:
- A África servia perfeitamente, e ainda serve para refazer, copiar a Revolução Francesa. Basta citar com outras palavras os seus belos poemas, e os esfomeados acreditam. Destruir tudo o que foi erguido em nome da revolução. Mata-se tudo, nem os animais escapam, porque são reaccionários. Basta atirarem-nos uma isca como engodo e aí temos o que merecemos. Depois ordenar que todos os que não estão do nosso lado, devem ser aniquilados, enviados para a guilhotina. É isto a beleza das revoluções africanas. Continuar a escravidão secular em nome da dependência, nunca da independência.
O Poeta argumenta:
- E também a corrupção, a venalidade, os desvios de fundos e as especulações de todo o tipo, as conjurações, as traições, a degenerescência cultural e moral, a perversão dos costumes, as ambições desmedidas.
- Pelo menos uma coisa boa aconteceu com a nossa revolução. – Replicou o Hepatite.
- Qual? – Perguntou o Almirante.
- Somos livres para bebermos à vontade, e não há nenhum branco que nos incomode.
- Incomodam sim. Enviam-nos bebidas estragadas que nos fazem dores de estômago, e pensamos que são algumas comidas estragadas que comemos. – Informou o Vodka.
- Mas pelo menos temos a liberdade de escolher, antes não tínhamos esse direito. E quanto mais álcool tiver essa bebida melhor. – Disse com satisfação o Hepatite.
- Com álcool ou sem ele as populações são dizimadas. Porque são chamadas em nome da revolução e da nação para a salvarem. E os poetas revolucionários compõem belos poemas, dizem que os heróis morreram por uma causa nobre. – Defendeu o Filósofo.
- Sim. São os tais poemas do punhal enterrado, que de vez em quando se limpa o sangue enferrujado. – Corroborou o Poeta.
- Novembrinos e setembrinos nas paredes sem tijolos. – Calculou o Filósofo.
- Quem disse que uma parede precisa de tijolos? Basta areia. – Rouquejou o Almirante.
- Está certo. Para o vento arrastar e ninguém mais se lembrar, a não ser pelo menos uma vez em cada ano. – Asseverou o Poeta.
- E como se chamarão os poetas desses cantos? – Cantou o Filósofo.
- Poetas que o vento da religião da areia levou. – Certificou o Poeta.
- Na religião da nossa tradição éramos os mais criativos do mundo. – Lembrou o Almirante.
- Acabámos com Adão e Eva? – Surpreendeu-se o Filósofo.
- Não! Inventamos uma nova religião todos os dias. – Rematou o Poeta.
- Nada há de novo debaixo da escuridão. – Pregou o Filósofo.
- Perdão! Debaixo do sol. - Esclareceu o Filósofo.
- Debalde. Porque construíram e estão a construir paredes, de tal modo que durante o dia já não vejo a luz do sol. – Findou o Poeta.
- Sem eleições vão votar… não vão votar. – Não sabe o Eleitor.
- Pelas oito pragas que nos afligem. – Aumentou-as o Pragador.
O Presidente sente que foi traído. Por isso chama a atenção:
- Pensa-se ainda que o confisco de bens dos colonialistas não é senão a transferência de bens do patrão para as mãos de um outro patrão. Quem dirige um país, dirige um Povo. Não podemos, não devemos travar guerra entre nós. É preciso preservar a unidade nacional. Nós somos um Povo que desde há séculos tem uma maioria de pretos, mas também milhares de mestiços e brancos. O que importa é neutralizar qualquer pretensão de grupos raciais que desejam manter uma supremacia económica ou social no País. Agostinho Neto. 23 De Maio de 1976. Discurso no encerramento do 1º curso de activistas do MPLA.
Imagem: A revista "Foreign Policy" saudava Angola por seu "espectacular crescimento ...
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