quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

As Aventuras de Akalesela (09). O Mistério do Prédio Enfeitiçado




«Noutros ordálios fica inocente quem consegue extrair uma agulha do fundo de uma panela de água a ferver. Outras vezes, submetem-se à «prova da agulha»: se não sai sangue depois de picar a língua, o lóbulo da orelha ou as pálpebras, fica provada a sua inocência. Também é inocente quem consegue pisar com lentidão, várias vezes, as brasas, sem queimar os pés.
Mais perigosa, aterrorizante e frequente a prova do veneno, usada sobretudo para esclarecer a acusação de feitiçaria. Em muitas regiões de Angola denominam-se «mbambu». Só o adivinho conhece as propriedades altamente venenosas de certas plantas.
Outras vezes, dependuram o cadáver, atado de pés e mãos a um pau ou colocam-no numas andas. Dois ou quatro homens passeiam-no pela aldeia. Diante de toda a assistência silenciosa e aterrada, o adivinho pergunta ao cadáver: - Quem te matou?
O cadáver quase sempre se detém diante duma pessoa e se move bruscamente. Não há dúvida, aquele indivíduo foi o feiticeiro.
Estas práticas originam vinganças, arbitrariedades, abusos e um medo generalizado. É que o acusado não pode apelar, visto que o bantu admite um tipo de feitiçaria inconsciente, como vimos, e, além disso, nunca pode demonstrar a sua inocência ante uma prova tão irrefutável prestada desde o além-túmulo por um defunto ou seus antepassados.
Acusam em especial os indivíduos anti-sociais, misantropos, apáticos, defeituosos, irascíveis, a quem os familiares ou o adivinho odeiam, e os mais ricos. Realizam assim uma assepsia social e uma circulação de bens.» In Cultura Tradicional Bantu. Pe. Raul Ruiz de Asúa Altuna. Ed. Paulinas

À hora do almoço ela apresenta-lhe um prato e sugere:
- Querido, se o jindungo não chegar, está aqui mais.
Depois do almoço sentaram-se com os olhos na TV. Viam-se imagens de Taiti, depois Hiva Ao. Falavam de Paul Gauguin e mostravam pinturas dele: Mulheres do Taiti na Praia, Mulher com uma Manga, Boatos Fúteis, e Quando é que você se casa? Gauguin, que desprezava a civilização porque isso significa destruir. A civilização da espoliação para ganhar dinheiro. Arrasar com povos, civilizações que apenas amavam a natureza e não davam valor ao ouro e diamantes, a não ser para enfeites cerimoniais. Os considerados inferiores eram na realidade superiores. Ainda hoje essa condição se mantém, basta observar o que se passa com a exploração das populações onde existem petróleo e diamantes.
Ele, sem tirar os olhos da TV enceta um diálogo: 
- De manhã naquela praia do Taiti, uma gaivota acreditava que estávamos sós. Como se o mar não existisse. Aproximou-se a gaivota confiante. De repente lembrou-se que nós éramos humanos. E voou aterrorizada prolongando a sua fome. Deixando-nos a pensar que depois dela, já antes lá estava.
Ela alinha solidária no mesmo tom, alia-se na mesma irmandade:
- Desfilava o cortejo de um funeral imbecil, com um caixão imbecil, contendo um imbecil morto. Dizem que em vida foi um hábil negociante. Enganou este mundo e agora vai enganar o outro. O funeral era acompanhado por uma grande multidão à qual ele muito prometera, mas nada lhes deixou. Meia dúzia de nobres que com ele muito lucraram e todos os seus lacaios tentavam passar despercebidos. Mais adiante seguia outro funeral, o de um HOMEM que durante a sua vida nunca se cansou de ensinar. Hoje ninguém liga aos ensinamentos, só se preocupam com petróleo e diamantes, por isso acompanhavam-no apenas meia dúzia de pessoas. Aquelas que aproveitaram o que ele ensinou.
Ele lastima-se:
-Deixem-me ver as aves voarem e poisarem nas árvores. Deixem-me voar onde não há estradas.
Ela corrige-o:
- As estradas são necessárias para o bem da humanidade. São também óptimas para a passagem de exércitos que depois as destroem, para que o inimigo não as possa utilizar.
Ele segue-lhe o raciocínio:
- Sim… vendem-se armas a prestações. Qualquer ditador pode assim garantir o fornecimento do seu exército. E os fabricantes terem incentivos para produzir mais. É uma guerra feita a prestações. Deve-se encorajar o fabrico de armamento pois há sempre alguém que diz: as armas são necessárias para o desenvolvimento do nosso país. Onde há guerra não existe amor.
Ela lembra algures já passado:
- Encontrámo-nos por acaso e tudo surgiu por acaso. Primeiro amámo-nos numa eternidade de silêncios. Depois o mar estava tão próximo, tão debaixo de nós. Como a esteira onde nos deitámos e ficámos desfeitos pelo universo do amor. Prometemos depois que o nosso amor seria uma sinfonia eterna. Podemos nas noites escuras ser claros, transparentes nos nossos diálogos, então as noites escuras podem ser claras.
Ele rejubila:
-Vemo-nos, vejo-te todos os dias, sempre tão íntima, sempre tão distante. Como sol protegido pelas nuvens do teu ser. Como bem-querer e ficar quase desfeito nas escarpas dos teus cabelos. Como ver o teu corpo vestido na nudez do teu vestuário.
Ela mostra o seu esplendor:
- Sentado olhavas para o infinito do teu rosto, no teu canto silencioso como o teu olhar. Os teus cabelos quase dispersos no quase infinito do teu tempo. Olhavas para dentro de ti e não te encontravas. Perdido nas tuas manhãs da tua busca sempre ansiosa. O teu cabelo caía como flores acariciadas nas minhas mãos. Lutei contigo para colher uma. Consegui colhê-las todas finalmente.
Ele sente uma visão repentina:
- E finalmente Deus lançou os últimos raios de fogo sobre a Terra, e já não havia ninguém para os receber.
Mas os anseios e devaneios em Jingola depressa se desvanecem, porque há um chamamento, um apelo contante ao demónio.
- Que barulho é este? O que é que eles estão a fazer agora? Parece que estão a rebentar granadas. Kakulu-Ka-Humbi vai lá ver.
Ela subiu, falou com os vizinhos e desceu:
- Estão a derrubar a parede que construíram na sala. Dizem que estão sempre a chegar mais visitas e precisam de mais espaço.
- Santo Deus! Quando acabará este tormento?!
- São os ala mu muxitu. (Estão na mata, na selva, no bosque, na floresta.)
Injandanda faz-lhe o serviço de segurança, posta-se na sua trazeira e tranquiliza-a:
- Vou ficar mais afastado, estou com medo dos destroços.
Akalesela acha preferivel abandonar o ambiente desolador, de destruição permanente. Do colocar Jingola como depois de uma grande tormenta climática.
- Vamos investigar o prédio enfeitiçado.
Já estavam a caminho, ela previne-o:
- Vou sozinha, deixa-me em casa da minha avó. Como é próximo, vou a pé. Não vale a pena esperares. Nesta cidade já não se pode andar de carro. Depois apanho um táxi para casa.
Ma Yuan esperava-a porque foi prevenida com antecedência da visita. Mirou Kakulu-Ka-Humbi de alto a baixo e observou:
- Querida, quem me dera ter o teu corpo.
- Um não te chega?
Ma Yuan parece não ter gostado do comentário. E rápidamente mudou de conversa.
- Já avisei os vizinhos que virias, podes começar o trabalho.
A inspecção terminou quase duas horas depois. Ao sair do prédio pára porque próximo está o que parece uma força-tarefa.
Dois carros fortificados e cinco homens bem armados com coletes à prova de bala preparam-se para a recolha das receitas do dia de uma operadora de telemóveis. Um está no interior do estabelecimento, outro no passeio, outro na esquina, outro mais afastado e finalmente outro encostado nos carros da escolta. O que transporta as receitas move-se rápido. Os outros preparam-se para disparar. Não deixam ninguém aproximar-se. O perigo é intenso porque ninguém sabe se a qualquer momento sairá um disparo acidental, e mais uma vítima inocente deixará de viver. Os carros partem parecendo uma cena de um filme. Num repente, Kakulu é cercada por quatro jovens. Um deles entoa ameaçador:
- Passa o telemóvel.
Ela prepara-se para se agachar e morder-lhe os testículos. Desiste porque vê que estão armados. Deixa que lhe tirem o telemóvel. Eles retiram-se rapidamente do local. Ela não se dá por vencida e exclama:
- Akúlu Tutulukisenu! (Antepassados mandem ficar mudado.)
De repente transforma-se em águia. Sobe e mira facilmente os malfeitores. Paira sobre eles e ataca com uma garra o que tem o telemóvel. Retira-o e com a outra garra livre aperta-lhe o pénis. Os meliantes fogem. Ouvem-se dois comentários:
- Nunca vi um telemóvel enfeitiçado.
- Avisei para não fumarmos a droga que veio da Nigéria.
A águia eleva-se e voa para casa. O Joaninho miava muito agitado. Akalesela ouviu um guincho conhecido no exterior. Abriu as portas da varanda completamente. A majestosa águia entra e poisa no poleiro. Depois de fechar as portas o mais rápido que lhe é possível, volta-se e vê que Kakulu-Ka-Humbi já está sentada no sofá. Batem à porta de entrada, ele abre-a, é Injandanda. Este anuncia:
- Ala mu muxitu quer falar com o vizinho.
O vizinho vem com uma menina.
- A minha filha diz que viu entrar uma águia e quer brincar com ela.
- Deve ser engano.
- Desculpe vizinho, esta criança só tem oito anos e já mente assim.
Dá-lhe uma chapada na cara e ameaça-a:
- Você está a ficar feiticeira, vamos queimar-te e atirar-te para a lixeira.
- A luz foi-se. – Lamentou ela.
- Sem electricidade a fome é! – Exclama ele.
- Certa! – Juntou ela.

Imagem: João Stattmiller

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