terça-feira, 25 de março de 2014

O Paraíso Perdido a Ocidente (05)






Enquanto a minha mãe conversava com a minha tia, ansiava por me encontrar com a minha prima Belita. Subi as escadas e encontrei-a a estudar. A primeira coisa que me ocorreu foi pegar nos seus livros e fugir. A perseguição dela, os gritos e depois o choro nervoso alertaram os meus tios. Devolvi-lhe os livros com um estranho sentimento de prazer por a ver sofrer.
Não demorámos muito tempo, despedimo-nos enquanto o meu pai anunciava que iríamos brevemente para Lisboa. Terminou com a sua habitual frase:
- Nunca mais chove!
Durante mais uns tempos permanecemos no Crucifixo, sempre com a fome na nossa companhia. Até que o meu pai finalmente chegou e fomos para Lisboa.

CAPÍTULO II
LISBOA

Ficámos alojados numa barraca de madeira. Para entrarmos tínhamos que subir uma escada - também de madeira - com alguns degraus a ameaçarem ruir. Não demorou muito tempo que nas escadas caísse devido ao desabamento de um degrau O pulso direito ficou com uma entorse que a minha mãe curou com água quase a ferver e sal durante muitos dias. Banhava-me o pulso, depois colocava uma moeda no osso e uma ligadura para obrigá-lo a voltar ao seu lugar.
Junto à nossa barraca havia outra também de madeira que servia de mercearia. Os clientes tinham direito a crédito, e passavam os tempos livres a beberem. Via-se claramente que o local fazia parte de uma montanha, porque para lá chegar tínhamos que subir por uma rua muito íngreme.
Quase a um quilómetro de distância, lá em baixo no início da montanha, ficava a rua principal onde existiam algumas casas de tijolo. Havia também uma mercearia com paredes de tijolo que tinha televisão. A cem metros à esquerda uma barbearia que tinha muitas revistas onde passava a maior do tempo a lê-las. Como eram quase todas de caubóis li-as rapidamente. Para ler mais, consegui fazer amizade com o filho do barbeiro e esgotei a leitura… não havia mais nada para ler. Não era necessário chover muito para que as ruas ficassem enlameadas, o que nos dificultava o caminhar.
O meu pai conseguiu emprego na Tap-Transportes Aéreos Portugueses, como empregado de limpeza nos aviões. Começou então a trazer várias coisas que eram utilizadas a bordo, especialmente comida e bolos. A fome finalmente despediu-se de nós.
Na televisão passava o filme, Danger Man, com o actor Patrick McGoohan. Para conseguir entrar na mercearia tinha que ser muito sorrateiro, porque o proprietário não queria que ocupássemos espaço em vão. Das poucas vezes que conseguia ver um bocado desse filme de espionagem, quando regressava a casa, e como não havia luz, amedrontava-me imenso com as sombras que pensava serem espiões que me queriam matar.
As nossas condições de habitação melhoraram porque o meu pai conseguiu que fossemos morar para as vivendas que estavam bem próximas. Eram de tijolo e as condições de higiene muito melhores. Mas não seria por muito tempo, porque o proprietário ia proceder à sua demolição para construir prédios. Entretanto, o meu pai comprou um rádio portátil, o nosso primeiro rádio. Foi uma festa. Até se construiu uma prateleira de propósito só para ele, e a minha mãe fez-lhe uma cobertura de tecido para o proteger. Era tratado como se fosse um tesouro do outro mundo.
Acabei por saber que a localidade onde vivíamos tinha o nome de Prior Velho. Era um local onde ainda existiam muitas oliveiras. Devido ao êxodo rural, muita gente como nós vinha para os arredores de Lisboa, e as oliveiras a pouco e pouco desapareciam, dando lugar a construções por todo o lado. Mudámos outra vez de casa e fomos para um grupo de três vivendas situadas num cume próximo à mercearia de tijolo.
O proprietário era o mesmo de todas as residências próximas, e já construía mais um prédio junto delas, mas estas também seriam demolidas para construir mais um prédio. O homem apesar de já estar rico era muito austero. Não bebia, não fumava, comia pouco, andava com roupas pobres, não tinha mulher, apenas uma criada, porque conforme confessava não queria gastar dinheiro com mulheres e residia nos prédios inacabados para poupar.
Um dia chamou-me e começou a aliciar-me para transportar tijolos para o segundo andar. Em troca receberia algumas moedas, o que para mim parecia ser uma pequena fortuna. Na minha ignorância pensei que pouco demoraria a carregar os tijolos e receber o meu dinheiro. Mas por mais esforços que fizesse a carregá-los, parece que nunca mais acabavam. Vi a aldrabice que me tinha sido feita. A minha mãe quando soube, foi muito aborrecida ter com ele e disse-lhe se não tinha vergonha de andar a explorar crianças. E que era por isso que estava rico, e porque andava sempre a enganar as pessoas. Como resposta ele apenas se limitou a rir com aquele riso dos seres humanos que nos considera a todos idiotas.
Como só apareciam livros de caubóis, continuava a lê-los. Quando conseguia alguns do Brick Bradford com o seu pião do tempo, deslumbrava-me. Comecei a gostar muito de ficção científica. Entretanto, com os meus amigos fazíamos grandes batalhas de caubóis e índios.
Consegui improvisar um arco de aço muito potente. As flechas eram varetas de guarda-chuvas também de aço. Tornei-me exímio no seu manuseamento, até ao dia que decidi apontar a uma galinha de uma distância considerável. Lancei a flecha e acertei em cheio no pobre animal. Entrei em pânico e corri atrás dela para retirar a flecha, para que ninguém soubesse do sucedido, mas ela parecendo querer incriminar-me fugiu na direcção da minha mãe. Acabou-se o arco e flechas para sempre, mas não, porque escondi-os no meu esconderijo pessoal.
Nas proximidades construíam uma auto-estrada, o tal progresso da civilização moderna. Alguns amigos disseram-me que tinham feito uma grande descoberta. Pediram-me para que os acompanhasse. Partimos, chegados ao local havia uma abertura na terra. Um deles tinha uma lata com azeite e um bocado de pano ao qual pegou fogo. Com essa luz improvisada avançámos. Eram grutas escavadas na terra, com algumas ramificações e quanto mais avançávamos mais grutas surgiam. Alguém teve a ideia de marcar os locais para não nos perdermos. Num ponto do trajecto com receio de estarmos perdidos decidimos regressar.

Vendedor de banha da cobra, Lisboa, 1957. Fotografia: Eduardo Gageiro, in Lisboa no Cais da Memória.

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