Enquanto
a minha mãe conversava com a minha tia, ansiava por me encontrar com a minha
prima Belita. Subi as escadas e encontrei-a a estudar. A primeira coisa que me
ocorreu foi pegar nos seus livros e fugir. A perseguição dela, os gritos e
depois o choro nervoso alertaram os meus tios. Devolvi-lhe os livros com um
estranho sentimento de prazer por a ver sofrer.
Não
demorámos muito tempo, despedimo-nos enquanto o meu pai anunciava que iríamos
brevemente para Lisboa. Terminou com a sua habitual frase:
-
Nunca mais chove!
Durante
mais uns tempos permanecemos no Crucifixo, sempre com a fome na nossa
companhia. Até que o meu pai finalmente chegou e fomos para Lisboa.
CAPÍTULO II
LISBOA
Ficámos
alojados numa barraca de madeira. Para entrarmos tínhamos que subir uma escada
- também de madeira - com alguns degraus a ameaçarem ruir. Não demorou muito
tempo que nas escadas caísse devido ao desabamento de um degrau O pulso direito
ficou com uma entorse que a minha mãe curou com água quase a ferver e sal
durante muitos dias. Banhava-me o pulso, depois colocava uma moeda no osso e
uma ligadura para obrigá-lo a voltar ao seu lugar.
Junto
à nossa barraca havia outra também de madeira que servia de mercearia. Os
clientes tinham direito a crédito, e passavam os tempos livres a beberem.
Via-se claramente que o local fazia parte de uma montanha, porque para lá chegar
tínhamos que subir por uma rua muito íngreme.
Quase
a um quilómetro de distância, lá em baixo no início da montanha, ficava a rua
principal onde existiam algumas casas de tijolo. Havia também uma mercearia com
paredes de tijolo que tinha televisão. A cem metros à esquerda uma barbearia
que tinha muitas revistas onde passava a maior do tempo a lê-las. Como eram
quase todas de caubóis li-as rapidamente. Para ler mais, consegui fazer amizade
com o filho do barbeiro e esgotei a leitura… não havia mais nada para ler. Não
era necessário chover muito para que as ruas ficassem enlameadas, o que nos
dificultava o caminhar.
O
meu pai conseguiu emprego na Tap-Transportes Aéreos Portugueses, como empregado
de limpeza nos aviões. Começou então a trazer várias coisas que eram utilizadas
a bordo, especialmente comida e bolos. A fome finalmente despediu-se de nós.
Na
televisão passava o filme, Danger Man, com o actor Patrick McGoohan.
Para conseguir entrar na mercearia tinha que ser muito sorrateiro, porque o
proprietário não queria que ocupássemos espaço em vão. Das poucas vezes que
conseguia ver um bocado desse filme de espionagem, quando regressava a casa, e
como não havia luz, amedrontava-me imenso com as sombras que pensava serem
espiões que me queriam matar.
As
nossas condições de habitação melhoraram porque o meu pai conseguiu que
fossemos morar para as vivendas que estavam bem próximas. Eram de tijolo e as
condições de higiene muito melhores. Mas não seria por muito tempo, porque o
proprietário ia proceder à sua demolição para construir prédios. Entretanto, o
meu pai comprou um rádio portátil, o nosso primeiro rádio. Foi uma festa. Até
se construiu uma prateleira de propósito só para ele, e a minha mãe fez-lhe uma
cobertura de tecido para o proteger. Era tratado como se fosse um tesouro do
outro mundo.
Acabei
por saber que a localidade onde vivíamos tinha o nome de Prior Velho. Era um
local onde ainda existiam muitas oliveiras. Devido ao êxodo rural, muita gente
como nós vinha para os arredores de Lisboa, e as oliveiras a pouco e pouco
desapareciam, dando lugar a construções por todo o lado. Mudámos outra vez de
casa e fomos para um grupo de três vivendas situadas num cume próximo à
mercearia de tijolo.
O
proprietário era o mesmo de todas as residências próximas, e já construía mais
um prédio junto delas, mas estas também seriam demolidas para construir mais um
prédio. O homem apesar de já estar rico era muito austero. Não bebia, não
fumava, comia pouco, andava com roupas pobres, não tinha mulher, apenas uma
criada, porque conforme confessava não queria gastar dinheiro com mulheres e residia
nos prédios inacabados para poupar.
Um
dia chamou-me e começou a aliciar-me para transportar tijolos para o segundo
andar. Em troca receberia algumas moedas, o que para mim parecia ser uma
pequena fortuna. Na minha ignorância pensei que pouco demoraria a carregar os
tijolos e receber o meu dinheiro. Mas por mais esforços que fizesse a
carregá-los, parece que nunca mais acabavam. Vi a aldrabice que me tinha sido
feita. A minha mãe quando soube, foi muito aborrecida ter com ele e disse-lhe
se não tinha vergonha de andar a explorar crianças. E que era por isso que
estava rico, e porque andava sempre a enganar as pessoas. Como resposta ele
apenas se limitou a rir com aquele riso dos seres humanos que nos considera a
todos idiotas.
Como
só apareciam livros de caubóis, continuava a lê-los. Quando conseguia alguns do
Brick Bradford com o seu pião do tempo, deslumbrava-me. Comecei a gostar muito
de ficção científica. Entretanto, com os meus amigos fazíamos grandes batalhas
de caubóis e índios.
Consegui
improvisar um arco de aço muito potente. As flechas eram varetas de
guarda-chuvas também de aço. Tornei-me exímio no seu manuseamento, até ao dia
que decidi apontar a uma galinha de uma distância considerável. Lancei a flecha
e acertei em cheio no pobre animal. Entrei em pânico e corri atrás dela para
retirar a flecha, para que ninguém soubesse do sucedido, mas ela parecendo
querer incriminar-me fugiu na direcção da minha mãe. Acabou-se o arco e flechas
para sempre, mas não, porque escondi-os no meu esconderijo pessoal.
Nas
proximidades construíam uma auto-estrada, o tal progresso da civilização
moderna. Alguns amigos disseram-me que tinham feito uma grande descoberta.
Pediram-me para que os acompanhasse. Partimos, chegados ao local havia uma
abertura na terra. Um deles tinha uma lata com azeite e um bocado de pano ao
qual pegou fogo. Com essa luz improvisada avançámos. Eram grutas escavadas na
terra, com algumas ramificações e quanto mais avançávamos mais grutas surgiam.
Alguém teve a ideia de marcar os locais para não nos perdermos. Num ponto do
trajecto com receio de estarmos perdidos decidimos regressar.
Vendedor de banha da cobra, Lisboa, 1957.
Fotografia: Eduardo Gageiro, in Lisboa no Cais da Memória.
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