domingo, 2 de março de 2014

O Paraíso Perdido a Ocidente (04)





Ainda com todos os acontecimentos bem gravados na minha memória, no outro dia, todas as pessoas que via inchavam-me de medo, porque os meus pais diziam que as bruxas eram demónios que viviam na Terra para nos matarem, e depois beberem o nosso sangue, e assim sobreviviam. Como os meus pais eram muito religiosos – era tudo religioso – começaram a rezar o terço muito concentrados e com muita intensidade. Depois a minha mãe chamou a minha avó para ajudar nas preces a Deus, para que nos livrasse dessa terrível bruxaria.
Numa carroça de bois que o meu pai conseguiu arranjar, transportámos os nossos parcos haveres e rumámos para uma aldeia próxima de nome, Crucifixo. A habitação era pequena mas servia-nos bem. Tinha também um pequeno espaço de terra, e no centro uma figueira. Algumas habitações idênticas contíguas lembravam uma imensa carruagem de um comboio. Eram as habitações típicas dos mais pobres e miseráveis.
Em frente havia um vasto pinhal que se espaçava para muito além, e no seu mais profundo nascia uma verdadeira floresta.
A fome continuava a assolar-nos, de tal modo que nem um pouco de pão havia para comer. A minha avó conseguiu montar um pequeno forno e começaram a sair os primeiros pães de milho, grandes e pesados. Trazia-nos alguns, e durante meses foram a nossa única alimentação.
Crianças para brincar eram raras e assim continuei sozinho. De vez em quando ouvia a minha avó falar com a minha mãe de que tinha havido uma grande guerra, mas eu não fazia ideia do que isso era.
Numa tarde decidi aventurar-me pela floresta de pinheiros. Andei, andei o mais que pude e não consegui atingir o fim. Pensei que a floresta era interminável. Vi plantas pequenas que brotavam, brancas, acinzentadas, com uma sombrinha, rodeadas de musgo. Apanhei algumas que depois entreguei à minha mãe. Mas ela assustou-me:
- Não apanhes mais dessas plantas nem as comas, porque algumas são venenosas… chamam-se cogumelos. Os que servem para comer são os brancos, mas mesmo assim alguns são venenosos. Estes aqui são bons para comer fritos ou cozidos, mas quando fores apanhar mais, tens que me mostrar.
Continuando, aprendi a distinguir os que eram bons para comer, até que me fartei e fiquei enjoado. Também havia muitos espargos que fritos eram deliciosos.
Claro que o único local onde me podia divertir era na floresta de pinheiros. Decidi aventurar-me pelo seu mais profundo sem parar. Andei, andei até me sentir cansado, até ouvir o vento uivar nos ramos dos pinheiros, até sentir o que nunca antes experimentei, e pareceu-me que os pinheiros falavam entre si. Pareciam vozes humanas a murmurarem que havia um estranho no seu seio. Comecei a sentir medo, a querer fugir receando que estivesse perdido num outro mundo.
Distingui muito no profundo da floresta, um local muito escuro e pareceu-me ouvir vozes humanas. Vi que afinal não estava só. Pensei que eram trabalhadores que cuidavam da floresta. Aproximei-me e vi uma pequena clareira com luz muito intensa. Vi um senhor de idade avançada sentado numa cadeira, e ao seu redor o que pareciam ser anjos rodeados de estrelas. Tomado de grande pânico iniciei uma grande correria de regresso a casa. Não contei nada à minha mãe nem à minha avó. Nessa noite dormi muito mal, carregado de pesadelos, com imagens que não me deixavam dormir. Senti muito medo.
De manhã, ao acordar, decidi que pela tarde iria ao mesmo local para ver com mais pormenor o que seria aquilo. Demorei-me, já era quase fim de tarde, o céu ameaçava chuva, mas mesmo assim fui. Quase ao chegar, a escuridão veio de repente, do céu desabou uma grande chuvada, e os raios que a acompanhavam iluminavam tudo ao meu redor. Faziam os pinheiros e a vegetação parecerem horrendas criaturas que se moviam, como querendo agarrar-me. Já encharcado até aos ossos vi a tal clareira. A mesma luz intensa mantinha-se, e o cenário também. Consegui esconder-me debaixo da vegetação, o que para além de observar sem ser visto, também me ajudava a proteger da chuva.
Lá estava o mesmo senhor idoso rodeado, do que pareciam ser anjos. Tinham auréolas à volta das cabeças, círculos de luz pairavam-lhes, estrelas de luz muito intensa subiam e desciam, e quando estavam prestes a tocar o solo transformavam-se em pessoas iguais às que via em alguns quadros religiosos, e que me diziam serem anjos. De repente tudo escureceu. Pensei que fosse o causador dessa desdita. Aterrorizado, pensei que descobriram o local onde estava. Só tive um pensamento, fugir. Ajudado pelos raios da trovoada que iluminavam de vez em quando o local, fugi muito rápido, o quanto as pernas me permitiam. E já estava muito escuro devido ao avanço da noite.
Quando me aproximei da saída da floresta ouvi alguém gritar pelo meu nome. Era a minha avó que decerto preocupada com a minha ausência temia o pior. Receoso, respondi ao seu chamado e quando se aproximou de mim pegou-me pelas orelhas e assim quase me arrastou. Tirou um dos tamancos e bateu-me bem até quase se cansar. Fui-me deitar com o rabo bem dorido.
De manhã, a minha mãe e a minha avó muito preocupadas disseram-me para nunca mais ir para esse local, para brincar apenas ao pé de casa, porque mais para longe, lá na floresta era muito perigoso, e que as outras pessoas também tinham medo. Ganhei coragem e falei-lhes do que vi na clareira, lá muito no fundo da floresta. Olharam uma para a outra, e limitaram-se a responder-me que nunca mais fosse para esse local, porque aí era morada do demónio. Por mais que tentasse saber nos dias seguintes o que ali se passava, nunca ninguém me explicou nada, mantinham-se sempre no silêncio.
Já tínhamos mais algo para comermos, porque a minha avó começou a vender tremoços, e como sempre nunca se esquecia de nós.
Durante este tempo, o meu pai andava por Lisboa a tratar de arranjar melhores condições para nós. E quando chegou levou-nos de visita ao meu tio no Tramagal. Era proprietário de uma barbearia, e pelo caminho o meu pai dizia que ele era um grande comunista, e que tinha muito medo de falar com ele, porque arriscávamo-nos a sermos presos. Nunca consegui saber se era militante ou não, apesar de o meu pai dizer que mantinha reuniões com os comunistas na sua casa.
Mas pelos diálogos que mantinha, notava-se que tentava aumentar os adeptos do Partido Comunista Português.
Chegados à barbearia fomos recebidos pelos meus tios e pela minha prima Belita. Enquanto o meu pai se sentava na cadeira para o meu tio lhe cortar o cabelo, ele diz-lhe que ouviu na Rádio Moscovo que os comunistas de todo o mundo deveriam unir-se para acabar com a exploração do homem pelo homem. E que Salazar deveria deixar o poder porque Portugal estava muito atrasado. O meu tio insistia que a língua Esperanto deveria ser a língua universal. Assim, o comunismo seria mais facilmente entendido em todo o mundo. Tentou oferecer um exemplar impresso em Esperanto ao meu pai que o recusou de modo brincalhão:
- Nunca mais chove!


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