Um
café foi inaugurado. De pequenas dimensões, mas devido à grande afluência de
clientes depressa cresceu. Uma esplanada considerável foi construída, o seu
interior aumentado, um anexo com bilhar e matraquilhos nasceu. O café não tinha
nome, não tinha letreiro que o identificasse, e nós demos-lhe um, o do seu
proprietário, Café do Frederico. A sua fama era tal nas redondezas que absorvia
clientes de outros cafés. Um outro café nasceu próximo. Considerado de luxo
porque uma pessoa mal vestida não podia entrar. Tinha anúncio luminoso muito
bonito, Café Três Portas, porque tinha três portas de entrada. Primava pelo
silêncio absoluto, um local ideal para estudar, trocar ideias sem ninguém
incomodar.
Um
investimento vultuoso. Muitos saíram do café do Frederico por vingança, porque
como só existia o café dele, tratava-nos como bem entendia, até com desprezo em
algumas situações. Assim convencemo-nos que ele iria à falência. O Três Portas
em pouco tempo começou a ficar cheio e o Frederico vazio. As semanas iam
passando e de repente todos começaram a voltar para o Frederico. O Três Portas
ficou às moscas e acabou por falir por falta de clientes. Porquê? Esta era a
questão que se comentava. Quem trabalhava no Frederico era o proprietário, a
sua esposa e filha e à noite o Antunes, que depois do seu serviço diário vinha
fazer um biscate como empregado de café. Já idoso, tinha cerca de cinquenta
anos, era muito simpático e brincalhão, e quando algum de nós não tinha
dinheiro para pagar a despesa, não havia problemas, no outro dia pagava-se.
Claro que existia sempre um de nós mais ousado que entendia de vez em quando
aborrecê-lo. Um desses era o Luís. Sentava-se, o Antunes aproximava-se e
perguntava o que queria, e o Luís:
-
O jornal de hoje e o de ontem, um palito para os dentes, um copo de água e um
pano para limpar a mesa
-
E não deseja mais nada?
-
Sim, acenda-me o cigarro.
-
Deseja mais alguma coisa?
-
Sim, que horas são?
-
É tudo?
-
Não. Avise-me quando começar a chover.
O
Antunes impávido e sereno servia o seu cliente com muita solicitude. Até que
preparou a sua vingança. O Luís no outro dia sentou-se e repetiu os pedidos,
mas o Antunes já estava devidamente preparado para o receber e gritou:
-
Liguem a mangueira e tragam um tambor com água.
E
o Luís levou um grande banho.
Os
dias passaram. Luís veio com alguns amigos, juntaram duas mesas e fizeram uma
despesa considerável. Mais tarde as mesas estavam cheias de cadáveres de
garrafas de cerveja. Eram quase horas de fechar e pediram a última rodada.
Beberam e o Antunes apareceu com a conta para pagar. Luís pegou num saco cheio
de moedas de valor mínimo, que parecia não ter fundo e entregou-as ao Antunes,
este calmamente sentenciou:
-
Grandes filhos da puta!.
Quando
o Luís aparecia ficávamos atentos, porque nunca sabíamos qual era a partida que
ele iria fazer. Numa das vezes alguém estava concentrado a ler o Diário de
Noticias – as páginas eram gigantes – sentado, o corpo ficava quase todo
tapado. O Luís acendeu o isqueiro e sorrateiramente aproximou-se da base do
jornal junto aos pés do leitor e pegou-lhe fogo. Quando a chama se elevava
gritou:
-
Eh Pá! Estás a arder!
-
Hã! Hã!
Quando
ele queria beber um galão e não tinha dinheiro, sentava-se ao pé de alguém com
um. Utilizava a ponta do guarda-chuva como colher para espalhar o açúcar, como
o galão já não dava para beber, ele bebia-o assim mesmo. Há gente capaz de
tudo.
O
Frederico de vez em quando sentava-se à nossa mesa. Trocava opiniões, dava
conselhos, jogava aos matraquilhos, ao bilhar, era quase – podia-se dizer -
como um pai. Quando alguém tinha um comportamento indigno não tinha meias
medidas. Chegou ao ponto de expulsar clientes seguros pelas orelhas, pelo
vestuário e até com um pontapé no rabo. Quando surgia um possível desordeiro
nós sabíamos que não demoraria muito que ele não mantivesse o ambiente salutar.
Dono de forte compleição física e de altura pouco comum, a sua presença era
suficiente para impor respeito. A sua esposa era bastante humilde e seguia os
mesmos princípios. A filha quando começou a namorar tinha vergonha de servir os
clientes, de levar a bandeja às mesas. Pedia-nos por favor em voz baixa para os
servirmos quando eram ocasionais. Isto só se verificava durante o dia porque à
noite não era necessário. Em suma, o êxito do Frederico deve-se à intimidade
que mantinha com os seus clientes, o que acho digno de realce para quem
pretenda manter o seu futuro no negócio.
Depois
veio uma sapataria, e antes uma pequena tabacaria que também vendia jornais e
algumas revistas. Era aqui que comprava o Diário de Lisboa ou o República. O
Diário de Lisboa porque preferia este a qualquer outro, devido à sua linha
editorial. Acho que era o mais educativo. Voltando à sapataria, esta tinha
muitos modelos de sapatos o que para nós era motivo de satisfação. Depressa
angariou muitos clientes e as vendas eram consideráveis. Mas, na parte baixa
dos Olivais-Sul existia uma pequena área que devido ao comportamento dos seus
habitantes passou a chamar-se aldeia dos macacos.
Lixo
e normas de convivência não se ajustavam com os outros moradores. E a sapataria
começou a sofrer assaltos. Porta arrombada, caixas de sapatos vazias. A
situação de semana a semana mantinha-se. Ninguém sabia quem era, mas
suspeitávamos que eram os da aldeia dos macacos. Até que depois as nossas
suspeitas se confirmaram. Um grupo de jovens sem meios surge no Café do
Frederico. Com bons sapatos, a fumarem boas marcas de cigarros, a jogarem
bilhar durante horas, a comerem sandes de fiambre e de presunto e com vestuário
caro. Estava desvendado o mistério dos assaltos, eram eles. Pouco depois a
Policia Judiciária aparece. Foram todos presos. Pouco tempo depois foram soltos
devido aos pais pagarem as despesas correspondentes e o motivo de serem
menores. Mas os assaltos aumentaram. Já não era só a sapataria, as vivendas
mais luxuosas que circundavam o bairro entraram em pânico devido à onda de
assaltos. E lá surgiam eles no Frederico quase como novos-ricos. E a Policia
Judiciária também. Como solução para acabar com a onda de assaltos foram os
jovens enviados para o reformatório. Os assaltos acabaram. O bairro voltou à
normalidade.
Imagem: O Bairro dos Olivais Sul começou a ser construído em 1959. De
promoção municipal, abrange uma área de 186 hectares destinada a 38250 habitantes,
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