Estávamos no início da aula a aguardar pelo
aspirante. Chegou e ocupou o seu lugar. Olhou-nos quase todos um a um e
perguntou:
- Quem é que é casado?
Apenas três lhe responderam.
- E as vossas esposas são-lhes fiéis?
Responderam que sim.
- Têm a certeza?
Pelos vistos ele queria embaraçar-nos, ou
demonstrar o que a religião tem por lei nas falsas concepções do casamento,
pois na religião tudo é composto de falsidade. E nesse mundo só existe o reino
da hipocrisia que a Igreja criou e dele se alimenta e nele pretende obrigar-nos
como se as nossas cabeças não pensassem. Os velhos e estúpidos tempos que a
todo a custo nos querem impingir, deles não querem sair.
- Não, não temos. Elas estão longe e não sabemos
o que estão a fazer neste momento.
- E se forem traídos o que farão?
Ninguém respondeu. Então virou-se para mim e
pelo olhar vi que me obrigava a uma resposta. Pensei, mas porquê eu? Suspeitei
que já lhe teria chegado algo aos ouvidos dos nossos diálogos na caserna.
- Meu aspirante, se eu apanhar a minha esposa
com outro… não lhe faço mal nenhum.
- Continua a viver com ela como cornudo?
- Não, meu aspirante. Separamo-nos e cada um
segue a sua vida.
- Pois eu dou-lhe uma carga de porrada que
ficará internada no hospital durante várias semanas, ou mato-a.
- Mas, meu aspirante, não sou dono da vagina
dela. Ela é que sabe o que fazer com ela.
O homem ficou vermelho:
- Você não passa de um parvalhão. São vocês que
estão a estragar o país. Com essas visões progressistas estão a inundar-nos com
o vosso marxismo. Estão a adulterar os nossos costumes. Todo o homem traído tem
direito a defender a sua honra. Você devia era ir já para a prisão.
Fiquei apreensivo. Acho que a partir de agora
ele seria meu inimigo. Na caserna, o Neves deu-me alento dizendo-me que
enquanto existirem indivíduos destes o país nunca iria para a frente.
Na caserna facilmente se notava o quanto a
humidade era alta porque até nas paredes escorria. E logo pensei que era devido
a isso que os vinhos do Porto são excelentes. A minha respiração começou a ser
afectada, e lá veio a bronquite. Lembrei-me da minha mãe quando um irmão ainda
pequeno caiu na Ribeira do Caldeirão, lá no Tramagal, e foi – segundo ela –
salvo graças a um xarope de nome bronquitina. Fui comprá-lo. Mas a bronquite
piorava com o frio e com a humidade. Todos na família tínhamos bronquite
congénita e um irmão e uma irmã eram asmáticos. A dificuldade de respirar
aumentou. Mesmo assim tentei ir para o refeitório buscar o leite com café
quente que me faria bem. Cheguei a meio da subida e a respiração faltou-me. Não
conseguia respirar. Entrei em pânico, senti que ia morrer. O meu pensamento de
despedida foi para a minha mãe, depois para o meu pai. Recuperei um pouco a
respiração. Embrulhado numa manta e a arrastar-me consegui chegar. Quem estava
de oficial de dia era o nosso aspirante. Disse-lhe o que me estava a acontecer
e com o recipiente na mão pedi-lhe autorização para o encher. Olhou-me com
desprezo e vi nos seus olhos desejos de vingança.
- Não! E saia daqui imediatamente!
Ainda hoje esses momentos me perseguem a
recordar-me o quanto da maldade humana ainda nos persegue. De facto existem
pessoas cuja malvadez serve de passatempo apenas para fazerem mal. Sentem-se
felizes com o infortúnio dos outros. Mas o xarope fez-me bem. Melhorei e voltei
à normalidade.
Nas últimas aulas práticas com os rádios, o
primeiro-sargento ensinava-nos a tirar os “bigodes” do assobio do som até obter
uma boa sintonia. Na caserna, o Neves disse-me em segredo que se preparava para
fugir. Não iria sozinho. Outros o acompanhariam. Iria para o exílio.
Convidou-me também para o acompanhar na fuga. Que a guerra estava perdida. Era
só ver o que estava a acontecer na Guiné. E como éramos anti-fascistas o nosso
dever era defender os povos das colónias, e não combater contra eles. Disse-lhe
as razões porque não iria. Expliquei-lhe o que o Quitério me tinha dito. Fez-me
prometer que guardaria segredo, e pediu-me a minha morada para depois me
escrever. Em pouco tempo seríamos mobilizados para combater os patriotas das
colónias, e até lá já estaria bem longe. Poucos dias depois não apareceu mais.
Alguns comentavam: «Mais um que fugiu».
Mais um amigo que nunca mais veria. A sua fuga
estava consumada. De novo me senti só e melancólico. Pressenti que seria sempre
assim durante a minha vida.
Novamente fui atacado pela amigdalite crónica.
Tinham passado vários meses que tal não acontecia. A doença devia-se à
profissão de electricista, por causa do pó constante que me acompanhava, quando
tinha que alargar os sulcos das paredes para colocar os tubos plásticos que
depois receberiam os condutores eléctricos. O ambiente que me cercava estava
sempre muito saturado de pó. Cheguei ao ponto de passado um mês ter novamente
esta doença. O médico disse-me para fazer operação às amígdalas no Hospital do
Trabalho. Tudo estava preparado para isso. Esperei três horas no hospital e
ninguém me dizia nada. Esperei mais um bocado. Abandonei o local. Acho que
ainda hoje devem estar à minha espera.
Consegui curar-me por meios próprios. Um deles
foi justamente abandonar os ambientes de pó. Mas cá estava outra vez, três dias
prostrado na cama da caserna. O ouvido já me doía. Mastigar ou engolir o que
quer que fosse provocava fortes dores. Não conseguia comer nem beber. Já tinham
dito ao aspirante o que se passava comigo. Ele não tomava nenhuma decisão.
Pensei que devido aos acontecimentos me deixaria morrer. Perante a pressão dos
meus colegas veio ver-me. Enviou-me para a enfermaria. Viram que o meu estado
de saúde merecia internamento. Fui enviado para o Hospital Militar do Porto
onde fiquei internado. Devido ao meu aspecto perguntaram-me porque razão só
agora cheguei. Falar era-me doloroso. Mas pelo sim pelo não, preferi guardar
silêncio devido às represálias que o aspirante poderia exercer sobre mim.
Permaneci lá cerca de duas semanas. O ambiente
era militarizado. Não podia sair do local onde me encontrava. A única
distracção que tinha era olhar pela janela e ver o pátio que havia lá em baixo,
creio que me encontrava num sexto andar. Infelizmente não tinha ninguém com
quem conversar. Como sempre as conversas habituais eram sobre futebol. Confesso
que nunca perdi tempo com essas coisas. Sempre considerei e considero que é uma
pura perda de tempo. Mas é necessário para os governos entreter os seus povos e
desviar a sua atenção dos imensos problemas que um país tem. Afinal de contas é
bom recordar que o futebol é um império empresarial. É necessário embrutecer as
populações. E quanto mais futebol melhor.
Imagem: autor desconhecido
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